A QUESTÃO DO ABORTO NO BRASIL: a disputa entre os movimentos próvida e pró-escolha Bruna Quinsan Camargo Orientador: Dr. André Ricardo de Souza Um milhão de abortos no Brasil por ano Você vai me dizer que não sabia, que é engano? A cada sete mulheres, uma já fez aborto, Isso é estatística, não papo de louco Inseguro, feito de uma forma clandestina Acorda, Brasil, o nome disso é chacina. (Ventre livre de fato - MC Luana Hansen) RESUMO O artigo aborda a disputa entre os movimentos contrários à legalização do aborto, conhecidos como movimentos pró-vida, e movimentos que defendem a legalização do aborto no Brasil, os movimentos pró-escolha. Foca a relação entre política e religião no Brasil através da análise da militância dos movimentos pró-vida, das campanhas eleitorais de candidatos pertencentes a esse movimento e suas ações quando eleitos. São usados como amostra o Movimento Brasil sem Aborto, organização suprareligiosa, e o Movimento Mulheres em Luta, ligado à CSP-Conlutas. Palavras-chave: Aborto. Laicidade. 1 INTRODUÇÃO Com a entrada de grupos religiosos na política partidária e a migração da concorrência religiosa para a esfera pública (MARIANO, 2011), o debate acerca da laicidade do Estado se acirrou. Por um lado, movimentos sociais, como o feminista e o LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), exigem que a religião não seja um fator determinante nas decisões legislativas, principalmente no que se refere ao reconhecimento de seus direitos humanos, sexuais, sociais e reprodutivos. Do outro lado, católicos e evangélicos pentecostais defendem sua liberdade religiosa, utilizando-a para disseminar por toda a sociedade a moral cristã (MARIANO, 2011), assim como afirma, em entrevista, o deputado Marco Feliciano: Nós lutamos contra uma agenda
progressista, tudo aquilo que fere a família, tudo aquilo que fere a moral, tudo aquilo que fere a paz do nosso Ocidente. A moral deixada para nós pelo judaísmo e cristianismo, nós vamos sempre defender e vamos lutar contra os projetos que tentam destruir isso.. Os católicos justificam seu ativismo político o encarando como um dever moral, assim como descrito na cartilha de conscientização do Ministério de Fé e Política, ligado à Renovação Carismática Católica (RCC): Muitas vezes nos questionamos se é adequada a participação da Igreja na vida política. Para sanarmos essa dúvida, devemos lembrar que em sua militância apostólica, a Igreja tem uma missão profética de evangelizar todos os meios, sejam eles públicos ou privados. Nesse sentido, não podemos promover uma separação entre fé e política, uma vez que uma completa a outra. Já os pentecostais se alegam uma minoria religiosa que deve ser representada na esfera política, para justificar seu ativismo político. Seu ingresso na política partidária nacional se deu no processo de redemocratização do país, na Assembléia Nacional Constituinte, eleita em 1986 mediante o suposto temor de que a Igreja Católica ampliasse seus privilégios durante esse processo, até então eles defendiam que crente não se mete em política (FRESTON, 1993; MARIANO, 2011). 2 OS MOVIMENTOS PRÓ-VIDA E SUA INFLUÊNCIA NA POLÍTICA PARTIDÁRIA São chamados pró-vida os movimentos que têm seu ativismo voltado à não descriminalização do aborto por entender que a vida começa já na concepção, como conta, em entrevista, Mauro, da Pastoral da Criança de São Carlos e membro do Movimento Brasil sem Aborto: a vida é algo que tem que ser preservada em todas as suas instâncias, desde o ventre materno, ou seja, desde o embrião. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) sempre teve um papel importante no movimento, como diz o Marco Feliciano: A Igreja Católica tem um movimento muito forte, que é o movimento pró-vida, um movimento contra o aborto, só que a Igreja Católica, lá em Brasília, quando precisa de força, ela procura não os deputados católicos, ela procura os deputados evangélicos, pois essa já é nossa bandeira.. O movimento pró-vida busca eleger candidatos que defendam os valores cristãos
e criam campanhas para divulgar as candidaturas que defendam tais valores, como: A vida depende do seu voto, Voto pela vida e Voto católico, segundo a descrição deste último: Todos os candidatos aqui indicados são analisados e assinam Termos de Compromisso, se obrigando a defender a Família, o Direito à Vida, a Igreja e a Fé Católica, que, nos últimos anos, tem sofrido diversos danos. Com isso, teremos condição de acompanhar e cobrar o cumprimento destas promessas.. Hoje, a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Vida Contra o Aborto conta com 192 deputados, cerca de 37,4% dos 513 deputados. 3 SITUAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL O panorama nacional do aborto ilegal e inseguro é dado por pesquisas que encontram justamente na criminalização uma barreira que dificulta sua realização e legitimidade. Segundo Diniz e Medeiros (2010), realizadores da Pesquisa Nacional do aborto, pesquisadores não têm como garantir o sigilo das entrevistadas, o que dificulta e muito a veracidade das respostas pelo fato de o aborto ainda ser crime no Brasil. Dessa forma, tal pesquisa foi realizada pela técnica de urna, para garantir o anonimato das entrevistadas e dessa forma a legitimidade da pesquisa. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que um milhão de abortos sejam realizados por ano no Brasil e 22 milhões de abortos inseguros no mundo, acarretando a morte de aproximadamente 47 mil mulheres e disfunções físicas e mentais em outras cinco milhões. Vale dizer que a realização do aborto também acarreta distúrbios emocionais em mulheres, sendo outro o outro lado desse problema de saúde pública. A Pesquisa Nacional do Aborto, entretanto, foi realizada a partir de uma análise das mulheres que abortaram e não do número de abortos em si, considerando que tal estimativa é muito difícil de ser alcançada com precisão. Dessa forma, inicialmente, o resultado relatado na pesquisa é: Em 2010, no Brasil urbano, 15% das mulheres entrevistadas relataram ter realizado aborto alguma vez na vida (Tabela 1). Os resultados não se referem a números e proporções de abortos, mas sim a mulheres que fizeram aborto. Essas unidades de mensuração não são as mesmas, porque uma mulher pode abortar mais de uma vez ao longo da vida. O número de abortos é, seguramente, superior ao número de mulheres que fizeram aborto, mas os dados desta pesquisa não permitem estimar quanto. Além disso, o número total de abortos no país será maior que o indicado nesse estudo se as áreas rurais e a população analfabeta forem também contabilizadas.
A pesquisa também desmistifica algumas de senso comum sobre a realidade do abortamento. A interrupção da gravidez não é feita em sua maioria para impedir uma gestação cedo ou tarde demais - o pico de incidência é no centro da vida reprodutiva da mulher, o que evidencia quão comum é essa prática. A maioria das mulheres que já realizaram um aborto são religiosas, e dentre elas predominam as católicas. Outras pesquisas mostram que a maioria delas é casada e tem filhos. O perfil da mulher que aborta não é nem de longe o que muitas vezes se imagina. Tais resultados mostram que o aborto não é uma medida necessariamente tomada por uma adolescente de comportamento considerado promíscuo pela sociedade; ele é considerado como uma saída para mulheres angustiadas e indispostas de serem mães, geralmente de baixa renda e escolaridade, que por uma série de fatores se vêem numa posição de inviabilidade de mais uma gestação. A pesquisa da OMS relatou também que uma mulher morre a cada dois dias devido a abortos inseguros no Brasil, sendo a quinta maior causa de morte materna no país. A quantidade de mortes e complicações de saúde provenientes do aborto inseguro somada à recorrência com que isso acontece configuram uma questão de saúde pública grave que precisa de remediação urgente, algo que passa por um debate franco e profundo a respeito da complexidade do tema. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O aborto é crime no Brasil, mas também uma realidade. A criminalização do aborto e a consequente invalidação da decisão da mulher sobre o seu próprio corpo e sua vida é prejudicial a todas as mulheres, que mesmo quando sofrem um aborto espontâneo podem ser tratadas como criminosas em um hospital, mas é ainda mais violenta quanto menos renda a mulher em questão tem. Enquanto os movimentos que defendem a legalização do aborto exigem uma educação sexual para escolher contraceptivos de modo a não abortar e também acesso a aborto seguro, para não morrer, o movimento pró-vida, ao menos em sua versão mais radical, repudia a educação sexual, o uso de contraceptivos e o aborto em qualquer circunstância, sem apresentar propostas de enfrentamento do problema. Um amplo, sincero, desapaixonado e realmente profundo debate sobre esse tema precisa ser feito.
REFERÊNCIAS DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em <http://hotsites.pernambuco.com/2013/aborto-no-brasil/docs/pesquisa-nacional-deaborto.pdf> Acessado em: FRESTON, Paul. Protestantes e políticas no Brasil: da Constituinte ao impeachment. Tese de doutorado em ciências sociais. Campinas, Unicamp, 1993. LUNA, Naara. O direito à vida no contexto do aborto e da pesquisa com célulastronco embrionárias: disputas de agentes e valores religiosos em um estado laico. Rio de Janeiro, 2013. MARIANO, Ricardo. Laicidade à brasileira. Católicos, pentecostais e laicos em disputa na esfera pública. Civitas - Revista de Ciências Sociais, 2011. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil.. Pentecostais e política no Brasil: do apolitismo ao ativismo corporativista. In: Hermílio Santos. (Org.). Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea. 1 ed. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2010, v. 1, p. 101-124. ORO, Ari Pedro; MARIANO, R.. Eleições 2010: Religião e política no Rio Grande do Sul e no Brasil. Debates do NER (UFRGS. Impresso), v. 11, p. 11-38, 2010. Brasil Sem Aborto. Disponível em: <http://brasilsemaborto.com.br/> Acessado em: Clandestinas: Retratos do Brasil de 1 milhão de abortos clandestinos por ano. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2013-09-20/clandestinasretratos-do-brasil-de-1-milhao-de-abortos-clandestinos-por-ano.html> Acessado em: Frentes Parlamentares da Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/deputado/frente_parlamentar/384.asp> Acessado em: Lideranças e Bancadas da Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/deputados/liderancas-e-bancadas> Acessado em: Organização Mundial da Saúde. Abortamento seguro: orientação técnica e de políticas para sistemas de saúde. Ginebra: OMS, 2013. Disponível em: <http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/70914/7/9789248548437_por.pdf> Acessado em: Voto Católico 2014. Disponível em: http://votocatolico2014.com/> Acessado em: