A interjeição ah no português europeu contemporâneo: aspectos fonéticos e funções discursivas

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INFORMAÇÃO-PROVA. MODALIDADE Escrita (peso de 70%) + Oral (peso de 30%) DURAÇÃO MATERIAL OBJETO DE AVALIAÇÃO. Escrita: 90 minutos Oral: 25 minutos

Transcrição:

A interjeição ah no português europeu contemporâneo: aspectos fonéticos e funções discursivas Fabíola Santos, ILTEC, fabiola.santos@iltec.pt Tiago Freitas, ILTEC, taf@iltec.pt Resumo As diferentes funções discursivas de ah no português europeu estão associadas a diferentes realizações fonéticas e sequenciais da interjeição: quando esta é produzida com um pico de intensidade e de tom, no meio de um enunciado, geralmente introduz discurso directo; se apresentar um contorno tonal plano ou descendente aliada a uma duração média servirá para indicar compreensão por parte do falante; ao passo que, se tiver duração longa e surgir em contexto isolado, terá uma interpretação exclamativa. 1. Introdução O uso da interjeição ah em português é tradicionalmente associado à expressão de emoções como admiração e alegria. É pelo menos essa a definição que encontraremos em obras de natureza lexicográfica como o Dicionário Houaiss. Se, contudo, observarmos o modo como a palavra é usada no português dos nossos dias, em conversas familiares e triviais ou mesmo em diálogos transmitidos pelos meios de comunicação social, chegaremos à conclusão de que a interjeição não serve apenas para expressar esses valores de emotividade. A observação mais atenta dos contextos de realização da interjeição revelar-nos-á, por exemplo, que se trata de um recurso linguístico de que os falantes do português europeu se servem para marcar o início de discurso directo. Noutros casos, é usada pelo interlocutor para evidenciar compreensão do que foi dito, sinalizando que a informação transmitida antes foi devidamente processada. Verificam-se diferentes manifestações sequenciais desta última forma, algumas das quais comparáveis às que ocorrem com a interjeição do inglês oh (Heritage 1984, 1998 e 2002) e com a interjeição do japonês a (Ikeda 2007). Só em casos mais raros é que o ah usado em português europeu é interpretável como um vocábulo demonstrativo de admiração ou incredulidade. O termo interjeição é aqui adoptado para denominar este elemento linguístico apenas por razões de economia terminológica. Outras designações poderiam ter sido usadas, como a de marcador discursivo, usada por Fox Tree e Schrock (1999) e Bolden (2006), a propósito do oh do inglês, ou partícula, adoptada por Schegloff (2007), para denominar o mesmo. As ocorrências de ah examinadas não correspondem em todos os casos à realização de um marcador não-frásico de acto de predicação, que é, segundo Gonçalves (2002), aquilo a que corresponde o estatuto da interjeição. Foneticamente, ah demarca-se de outras interjeições do português por apresentar uma articulação com considerável abertura do tracto vocal, sem arredondamento e sem nasalidade. Essas características permitem-nos distingui-la de outras vocalizações como

as que correspondem a eh e hã ou hum, embora nem sempre os transcritores concordem em relação à representação de cada uma destas formas. É relativamente comum encontrar oscilação entre ah e oh, ou mesmo entre ah e ó, interjeições articulatoriamente próximas, mas já não será de esperar que os transcritores hesitem entre ah e eh, por exemplo, embora também tenham sido atestados alguns casos desse tipo. No que respeita à realização prosódica da interjeição, verifica-se uma grande disparidade de caso para caso, fenómeno que também observamos em relação às outras interjeições do português europeu. A hipótese defendida neste trabalho é a de que a essa disparidade estarão associadas as diferentes funções que ah pode desempenhar, sendo possível identificar a intenção discursiva do falante a partir da observação desses traços fonéticos. 2. Metodologia Os dados reunidos têm por base a análise de um corpus de fala espontânea do português europeu, o CORP-ORAL (Freitas e Santos 2008). Trata-se de conversas realizadas impromptu entre falantes do português europeu. Foram escolhidas apenas gravações de falantes com idades entre os 17 e os 30 anos, decisão tomada no sentido de poder observar directamente os usos mais recentes do português europeu. A elevada qualidade acústica das gravações digitais obtidas permite realizar análises acústicas detalhadas do material em questão. Usando o programa ELAN, em cujo formato se encontram transcritos os diálogos do corpus, foram listadas as ocorrências de ah ao longo das várias horas de gravação transcritas. Essas ocorrências foram depois analisadas com o programa Praat, tendo sido anotados aspectos como a configuração articulatória e laríngea e quantificados aspectos como a duração, a frequência fundamental e a intensidade com que a interjeição é produzida. 3. Contexto discursivo Quando corresponde à introdução de discurso directo, ah é produzido no mesmo turno de fala por um mesmo falante, e surge muitas vezes imediatamente após o verbo dizer. Consideremos um fragmento deste tipo: Exemplo 1. Discurso directo HC, C12, 3838, acidente 1 RF também não não o gajo não devia vir devagar [com uma chuva dessas é preciso] 2 HC [muito complicado sim ] 3 ele devagar não vinha ele disse ah eu vinha a uns cento e ele disse cento e vinte 4 cento e trinta qualquer coisa Este trecho faz parte de uma sequência na qual HC relata a RF os pormenores de um acidente de automóvel que lhe tinha sido anteriormente narrado. Na linha 2 podemos observar a introdução de discurso directo, correspondendo à fala do condutor envolvido no acidente, por intermédio da interjeição ah. Esta forma apenas ocorre uma vez, na primeira instância de discurso directo dentro do turno. Na linha 3, no decurso de uma

sequência de reformulação, HC volta a introduzir discurso directo mas nesse ponto já não produz a interjeição. Consideremos um segundo exemplo, neste caso uma sequência com um só falante: Exemplo 2. Discurso directo LB, C16, 1118, Póvoa 1 LB ele começámos na brincadeira 2 a dizer assim ah queres que te vá ver aí à (riso -) Póvoa (- riso) 3 (!= riso) 4 SB hum (riso -) hum (- riso) 5 LB e eu ah anda anda Trata-se de um trecho em que LB descreve a SB, sua irmã, uma conversa em que ela e o seu interlocutor fizeram algumas propostas um ao outro em tom brincadeira, donde resulta o riso de ambas as falantes LB e SB. A interjeição surge assim nas duas instâncias em que LB introduz discurso directo, na primeira ao reproduzir a proposta do interlocutor, na segunda ao reproduzir a réplica que havia dado a essa proposta. Neste caso, a ocorrência de um segundo ah poderá servir para evidenciar que o discurso directo corresponde a dois falantes distintos. Quando ocorre no início de um novo turno de fala, após mudança de locutor, a interjeição ah poderá denotar aquilo a que atribuímos um valor de compreensão: serve para que um falante possa indicar ao seu interlocutor que processou aquilo que este lhe disse imediatamente antes. Quando ocorre com este valor a interjeição poderá surgir em posição isolada, como no seguinte fragmento: Exemplo 3. Compreensão HC, C12, 5394, cinema 1 RF o que é chato no Saldanha é o Metro 2 (0,4) 3 HC ah 4 (0,2) 5 HC (riso) 6 RF não é? [um gajo está a ver assim um tu-tum tu-tum tu-tum iá um gajo] 7 HC [exactamente (riso) tu-tum tu-tum tu-tum ouves aquele ] ruído 8 [aquela coisa (riso)] 8 RF [he vem aí o metro (riso)] Trata-se de um contexto de produção de ah em tudo semelhante aos contextos em que oh ocorre em conversas no inglês indicando uma mudança cognitiva (Heritage 1984) no falante: ao produzir a interjeição, este acusa a recepção dos dados que lhe foram transmitidos imediatamente antes. Como poderemos depreender pela análise de todo o contexto acima, não é o caso que HC pretenda frisar uma atitude relativamente à opinião expressa por RF, ou manifestar qualquer tipo de emoção como alegria ou admiração perante o que foi dito. Quando muito, é possível constatar que HC se alinha com a

opinião de RF, logo depois, produzindo uma sequência em que reitera a ideia expressa por RF, socorrendo-se até da mesma onomatopeia usada por aquele. Este tipo de ah que denota compreensão surge muitas vezes acompanhado de reformulações parciais ou totais ou pedidos de confirmação, de maneira a que os falantes possam certificar-se de que fizeram a interpretação mais adequada daquilo que o interlocutor havia comunicado. Desta forma, o interlocutor fica em posição de aceitar ou infirmar a compreensão que foi feita. Consideremos um excerto ilustrativo: Exemplo 4. Compreensão SB, C16, 39, filme 1 LB então conta lá como é que foi o filme 2 (1,2) 3 SB ah de ontem? 4 (0,6) 5 SB foi giro eu eu gostei Perante a pergunta lacónica de LB, que usa um sintagma nominal definido cuja referência não é imediatamente acessível a SB, segue-se um momento de pausa após o qual SB logra manifestar a sua compreensão, produzindo contudo um constituinte interrogativo para que LB possa aceitar ou recusar a interpretação que fez. O facto de LB não se manifestar (linha 4) legitima a compreensão de SB, que assim já pode responder à pergunta inicialmente formulada. Observemos mais um fragmento em que ah denota compreensão, sendo desta vez acompanhado por uma reformulação total: Exemplo 5. Compreensão LB, C16, 985, amigo 1 LB é um amigo meu novo 2 (0,6) 3 SB (riso ) *eh eu sei ( riso) não é preciso dizeres 4 (0,3) 5 LB ah já se notava? 6 (1,3) 7 SB já Trata-se de um excerto conversacional em que LB se refere a uma pessoa que conheceu recentemente, desconhecida de SB. Esta, no entanto, já se havia apercebido dessa nova amizade de LB de forma indirecta. Deparando-se com uma primeira descrição, muito abreviada, dessa relação por parte de LB, SB dá a entender que já havia detectado a novidade. A interjeição ah de SB surge então neste ponto, seguindo-se uma reformulação da ideia manifestada por SB, a de que nova amizade de SB era óbvia, sob a forma de pergunta. Neste caso, a longa pausa que se segue leva mesmo SB a concretizar uma resposta afirmativa.

Em alguns casos ah também poderá ocorrer em posição medial dentro de um mesmo turno para marcar o início de uma estrutura de reformulação ou para sinalizar a fronteira inicial de uma parentética. Consideremos um exemplo do primeiro tipo: Exemplo 6. Reformulação LB, C16, 721, disciplina 1 LB e ela diz que não não atina com aquilo 2 (2,5) 3 SB isso é que é pior (0,6) ah mas às vezes é assim ela faz o primeiro ano reprova mas 4 depois no segundo [já tem ] 5 LB [ela já está a] pensar nisso Neste fragmento LB refere-se às dificuldades que uma amiga sua sente com uma disciplina específica da faculdade. Após um longo período de pausa, SB produz um comentário formulaico acerca da situação descrita, reformulando depois o seu discurso no sentido de apresentar uma perspectiva positiva sobre o assunto. Este tipo de ah compreende algumas semelhanças com as ocorrências da interjeição que observámos nos exemplos 3-5 no sentido em que corresponde a uma mudança manifestada por um dos falantes. No entanto, ao contrário do que acontece com os casos de compreensão, a mudança operada não decorre daquilo que foi imediatamente enunciado pelo interlocutor. Observemos agora um exemplo de reformulação que se traduz na introdução de uma parentética: Exemplo 7. Reformulação RF, C12, 3314, casa 1 RF fui ver a casa com aquela casa de Queluz 2 HC hum 3 RF com a Marina pá e o gajo foi de facto (1,2) superprofissional ah aquilo ainda tem 4 tipo arrecadação 5 HC excelente! 6 RF o gajo foi superprofissional Neste trecho RF comenta com HC como foi atendido num episódio de prospecção imobiliária. Interrompe, contudo, essa descrição, como se pode observar na linha 3, para referir um aspecto que antes não havia mencionado sobre a casa que tinha ido visitar durante esse atendimento. Logo após a menção do pormenor retomará a sua descrição, executando essa retoma pela repetição dos itens lexicais que estava a usar antes da breve digressão. As ocorrências de ah que podem ser consideradas demonstrações de admiração ou outros estados de espírito análogos, correspondendo a manifestações do uso tradicionalmente estabelecido desta interjeição, são relativamente raras. Surgem em posição isolada, e na verdade só se distinguem dos casos de compreensão pelo facto de apresentarem uma prosódia marcada, perfazendo um enunciado que na escrita seria representado com ponto de exclamação. O facto de recorrermos, neste ponto, a elementos descritivos de natureza fonética resulta das dificuldades encontradas em delimitar as ocorrências de tais ahs

emotivos com base em propriedades meramente distribucionais ou sequenciais. Consideremos um primeiro caso: Exemplo 8. Exclamação LB, C16, 82, Match Point 1 SB *eh casa com a irmã do amigo mas depois começa tem uma relação extraconjugal 2 lá com a ou[tra que entretanto] 3 LB [ah! ] 4 SB deixa de ser namorada do amigo e não sei quê SB faz uma descrição do enredo do filme Match Point até surgir um ponto em que LB produz a sua exclamação, a qual pode ser interpretada como uma manifestação de perplexidade perante os aspectos menos ortodoxos da trama descrita. Trata-se, com efeito, de uma forma de manifestar compreensão, mas com a adição de uma componente emotiva que não é detectada em ocorrências como a do exemplo 3. Consideremos uma outra ocorrência de tipo exclamativo: Exemplo 9. Exclamação MN, C44, 1140, bebedeira 1 MN sim foste ter com ela apanharam uma bebedeira 2 (0,9) 3 ML iá eh pá pronto uma vez mais 4 (1,5) 5 MN ah! 6 (2,0) 7 MN (riso) oh são conversas de jovens querem o quê? Este é um fragmento com uma análise potencialmente mais complexa no sentido em que a exclamação de MN pode ser interpretada não tanto como uma reacção ao facto relatado por ML, o de se ter embriagado com uma amiga, mas sim como uma reacção ao facto de MN e ML terem abordado um tópico desse tipo quando estavam a ser gravadas. O ah da linha 5, entre duas pausas de dimensão considerável, é assim analisado como uma manifestação emotiva de MN perante a constatação de um acontecimento conversacional que ambas as falantes poderiam considerar suprimível. O comentário que MN depois produz, visível na linha 7, aponta precisamente para essa interpretação. MN formula esse enunciado como se estivesse agora a dirigir-se aos potenciais ouvintes da gravação. 4. Configuração fonética As ocorrências da interjeição ah que servem para introduzir discurso directo surgem sistematicamente associadas a uma constelação de propriedades fonéticas que sintetizamos na seguinte lista: contorno tonal ascendente registo de tom superior ou muito superior àquele que o falante produziu imediatamente antes

duração média da vogal [a], regra geral entre os 100-200 ms No exemplo 1, podemos observar que o falante produz ah com um tom ascendente, com uma diferença de cerca de 3 semitons entre o início e o fim da vocalização com o dorso da língua recuado. O registo de tom eleva-se dos 120 Hz para os 200 Hz, correspondendo a uma subida de aproximadamente 8 semitons entre o segmento discursivo anterior e a interjeição. A duração da vogal neste caso é de 137 ms. No exemplo 2, a falante produz ah também com tom ascendente e igualmente com uma diferença de cerca de 3 semitons entre o início e o fim da vocalização com o dorso da língua recuado. O registo de tom eleva-se dos 226 Hz para os 320 Hz, correspondendo a uma subida de aproximadamente meia oitava entre o segmento discursivo anterior e a interjeição. A vogal tem uma duração de 180 ms. Nos casos em que a interjeição é usada para manifestar compreensão, verifica-se uma tendência para que a vogal seja articulada com: contorno tonal plano ou descendente registo de tom médio na gama do falante duração variável da vogal [a] consoante a posição dentro do enunciado No exemplo 3, podemos observar que o falante produz ah com um tom plano, apresentando uma frequência fundamental de aproximadamente 130 Hz. Trata-se de uma vocalização produzida no registo médio do falante. Repare-se que este mesmo falante havia produzido o ah do exemplo com F0 médio de 200 Hz. A duração da vogal neste caso é de 172 ms. No exemplo 4, podemos observar que a falante produz ah com tom descendente, com uma diferença de cerca de 4 semitons entre o início e o fim da vocalização com o dorso da língua recuado. Trata-se de uma vocalização produzida no registo médio da falante. Neste caso a duração da vogal é de 198 ms, o que está acima dos níveis médios verificados para a interjeição quando acompanhada de mais material. No exemplo 5, podemos observar que o falante produz ah com um tom plano, apresentando uma frequência fundamental de aproximadamente 315 Hz. Trata-se de uma vocalização produzida no registo médio-superior da falante. A duração da vogal neste caso é de 130 ms, o que está dentro dos níveis médios observados para a interjeição quando acompanhada de mais material. Quando a interjeição surge como precursora de estruturas de reformulação está normalmente associada às seguintes características fonéticas: contorno tonal plano ou descendente registo de tom médio na gama do falante duração curta da vogal [a], regra geral abaixo de 100 ms

No exemplo 6, podemos observar que o falante produz ah com um tom plano, apresentando uma frequência fundamental de aproximadamente 215 Hz. Trata-se de uma vocalização produzida no registo médio da falante. A duração da vogal neste caso é de 61 ms, o que está dentro dos níveis médios observados para a interjeição quando tem este valor. No exemplo 7, podemos observar que o falante produz ah com um tom descendente, com uma diferença de cerca de 3 semitons entre o início e o fim da vocalização com o dorso da língua recuado. Trata-se de uma vocalização produzida no registo médio do falante. A duração da vogal neste caso é de 116 ms, o que está ligeiramente acima dos níveis médios observados para a interjeição quando tem este valor. Nos casos em que a interjeição é usada com valor exclamativo, a vogal tende a ser articulada com: contorno tonal variável registo de tom superior na gama do falante duração longa vogal [a], superior a 250 ms No exemplo 8, podemos observar que a falante produz ah com tom ascendente, com uma diferença de cerca de 10 semitons entre o início e o fim da vocalização. Trata-se de uma vocalização produzida no registo médio-superior da falante. Neste caso a duração da vogal é de 541 ms. No exemplo 9, podemos observar que a falante produz ah com tom descendente, com uma diferença de cerca de 3 semitons entre o início e o fim da vocalização. Trata-se de uma vocalização produzida no registo médio-superior da falante. Neste caso a duração da vogal é de 438 ms. Ocorrem também alguns casos deste tipo em que a vogal se encontra desvozeada. 5. Discussão Nas gravações analisadas para este trabalho os diferentes tipos da interjeição ah surgem sistematicamente associados a características fonéticas próprias. Este facto vem de encontro à ideia de que os falantes fazem uso de parâmetros fonéticos para concretizar mudanças ou manifestar intenções discursivas, ideia já abundantemente defendida na literatura que procura conjugar a análise da conversação com a parametrização fonética, de que são exemplo Local e Walker (2005) e Wright (2005). Verificam-se alguns pontos de convergência no uso de ah em português para denotar compreensão ou reformulação e as instâncias de oh em inglês analisadas por Heritage (1984) e Schegloff (2007), assim como algumas instâncias de a em japonês (Ikeda 2007): a interjeição serve para evidenciar uma mudança cognitiva por parte do falante, indicando que este processou aquilo que foi dito anteriormente ou que pretende lançar no discurso

um trecho de informação indevidamente sonegado ou que julga não ter formulado da forma mais adequada. Já o uso de ah para introdução de discurso directo parece não ter correspondente imediato nessas línguas, ou mesmo na variedade brasileira do português (cf. Oliveira e Cunha 2004). Fica por determinar a motivação linguística exacta para a existência de um marcador desse tipo no português europeu, embora possam ser arriscadas algumas razões de eficácia de processamento como as que foram observadas Fox Tree e Schrock (1999) a propósito da presença oh em enunciados do inglês. Torna-se também relevante discutir a relativa escassez dos usos exclamativos da interjeição. É uma constatação que vem pôr em causa o estatuto tradicionalmente atribuído à interjeição, à semelhança do que acontece com outras expressões do português europeu (cf. M. H. M. Mateus e F. Bacelar do Nascimento 2005). As descrições lexicográficas existentes deverão também ser actualizadas no sentido de se compatibilizarem com os padrões de ocorrência que observamos na língua real. 6. Conclusão O trabalho de análise levado a cabo neste estudo preliminar demonstra que a interjeição ah é usada em português para marcar mudança: mudança de enunciatário, correspondendo à introdução de discurso directo, mudança cognitiva no falante, que demonstra por essa via ter alcançado compreensão daquilo que foi comunicado imediatamente antes pelo seu interlocutor, e mudança discursiva, quando é feita uma reformulação do que está a ser dito no momento. Em casos menos frequentes ah também poderá evidenciar uma mudança no estado de espírito do falante, manifestando emoção. As realizações de ah tornam-se contextualmente interpretáveis pelas características fonéticas e sequenciais com que os locutores as pronunciam: quando são produzidas com um contorno tonal ascendente e com um registo de tom superior ao que o falante havia produzido antes, correspondem à introdução de discurso directo. No caso de o contorno tonal ser plano ou descendente e o registo de tom médio, as hipóteses mais seguras são de que a interjeição estará a denotar compreensão da parte do falante. Se essas características estiverem conjugadas com uma duração vocálica média o mais natural é que estejamos perante o início de uma estrutura de reformulação. Já no caso de se observarem articulações particularmente longas, feitas num registo alto, deparar-nosemos com um uso exclamativo de ah. Mereceriam inclusão num estudo mais aprofundado sobre a interjeição algumas outras ocorrências que aqui não chegaram a ser afloradas. É o caso das articulações de ah com voz tensa que surgem no início de comentários depreciativos ou infirmativos. Mereceriam ainda atenção redobrada os casos em que a configuração prosódica não corresponde aos padrões gerais elencados, isto é, as realizações fonéticas atípicas, assim como as possibilidades de combinação de diferentes funções discursivas. Apenas poderemos remeter esse aprofundamento para futuros desenvolvimentos deste trabalho.

7. Referências Bolden, G. (2006) Little words that matter: discourse markers so and oh and the doing of other-attentiveness in social interaction. Journal of Communication 56, 661-688. Dicionário Houaiss Electrônico da Língua Portuguesa (2001), versão 1.0. Fox Tree, J. e J. C. Schrock (1999) Discourse markers in spontaneous speech: Oh what a difference an oh Makes. Journal of Memory and Language 40, 280 295. Freitas, T. e F. Santos (2008): CORP-ORAL: Spontaneous Speech Corpus for European Portuguese. In Proceedings of LREC VI. Gonçalves, M. (2002) A interjeição em Português. Contributo para uma abordagem em Semântica Discursiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Gonçalves, M. (2002) Redefinindo a interjeição. In Actas do XVII Encontro da APL, 215-225. Lisboa: APL. Heritage, J. (1984). A change-of-state token and aspects of its sequential placement. In J. M. Atkinson & J. Heritage (eds.), Structures of social action: Studies in conversation analysis, 299 345. Nova Iorque: Cambridge University Press. Heritage, J. (1998). Oh-prefaced responses to inquiry. Language in Society 27, 291 334. Heritage, J. (2002). Oh-prefaced responses to assessments: A method of modifying agreement/disagreement. In C. E. Ford, B. A. Fox, & S. A. Thompson (eds.), The Language of turn and sequence, 196 224. Nova Iorque: Oxford University Press. Ikeda, K. (2007) The change-of-state token a in Japanese language proficiency interviews. Second Language Acquisition - Theory and Pedagogy. In Proceedings of the 6th Annual JALT Pan-SIG Conference, 56 64. Mateus, M., e F. Bacelar do Nascimento (eds.) (2005): A língua portuguesa em mudança. Lisboa: Caminho. Local, J. e G. Walker (2005) Methodological imperatives for investigating the phonetic organization and phonological structures of spontaneous speech. Phonetica, 62, 120-130. Oliveira, M. e D. Cunha (2004) Prosody as marker of direct reported speech boundary. In Proceedings of Speech Prosody 2004. Wright, M. (2005) Studies of the phonetics-interaction interface: clicks and interactional structures in English Conversation. Dissertação de doutoramento apresentada à Universidade de Iorque.