A Noção de Empréstimo em Mattoso Câmara*

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Transcrição:

Estudos da Língua(gem) Mattoso Câmara e os Estudos Lingüísticos no Brasil A Noção de Empréstimo em Mattoso Câmara* The Notion Of Linguistic Borrowing by Mattoso Câmara Eduardo GUIMARÃES** UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP) RESUMO Neste trabalho, discute-se como Mattoso Câmara toma a língua como elemento da cultura e, mais precisamente, como faz funcionar a concepção de empréstimo. Com isso, objetiva-se contribuir para o avanço da reflexão sobre a extensão e os contornos do pensamento desse autor, em um domínio muito sensível hoje, relacionado à observação das relações entre línguas. PALAVRAS-CHAVES Mattoso Câmara. História das Idéias Lingüísticas. Empréstimo lingüístico. Política de línguas. * Parte deste texto foi apresentado na 57a. Reunião da SBPC em Fortaleza no trabalho A Noção de Empréstimo e a Política das Línguas. ** Sobre o autor ver página 104. Estudos da Língua(gem) Vitória da Conquista n. 2 p. 95-104 Dezembro/2005

96 Eduardo GUIMARÃES ABSTRACT This work discusses how Mattoso Câmara considers language as element of the culture and, precisely, how this linguist uses the notion of linguistic borrowing. Thus, it has in view contributes to reflection about extension and contours of the thougth of this author, concerning this nowadays very important field, linked to observation of relationships between languages. KEY-WORDS Mattoso Câmara; The History of the Linguistic Ideas. Linguistic borrowing. Linguistic policy. Introdução A obra de Mattoso Câmara, por mais que a compreendamos hoje, merece e merecerá, por muito tempo, uma atenção específica de lingüistas e antropólogos, para falar o mínimo. Em outros trabalhos recentes (GUIMARÃES, 2002, 2004a), ocupei-me de certos aspectos de sua obra relacionados à relação da gramática e do sentido, e, assim, do modo de consideração do sujeito da linguagem que seu funcionalismo configura. Nestes momentos, não podemos deixar de levar em conta que, para Mattoso, a linguagem deve ser vista de um ponto de vista cultural. Ou seja, não é possível pensar a linguagem sem pensar que as línguas estão sempre relacionadas à cultura, sendo uma parte desta, e dela se destacando de modo específico (CÂMARA JR., 1954, 1955). Tomando agora este aspecto de seu pensamento, vou procurar, a partir de um olhar pontual, refletir sobre como ele trata uma questão muito particular ligada a esta posição que considera a língua como elemento da cultura. Vou deter minha atenção na sua concepção de empréstimo. Julgo que assim posso contribuir para o avanço da reflexão sobre a extensão e os contornos do pensamento de Mattoso Câmara, em um domínio muito sensível hoje, relacionado à observação das relações entre línguas. Especificando o objeto As relações históricas entre grupos sociais diversos são pensadas a partir de conceitos e noções como contato, interferência, cruzamento e

A Noção de Empréstimo em Mattoso Câmara 97 empréstimo. Esta última noção é de grande circulação nos estudos de linguagem. Nosso objetivo neste trabalho é, ao tomar a obra de Mattoso Câmara, refletir sobre um ponto preciso da história deste conceito na lingüística brasileira dos anos 1950/1960, dado o caráter fundamental deste lingüista no debate que levou ao desenvolvimento posterior da lingüística a partir da década de 1970. Como semanticista, e como interessado na história das idéias lingüísticas, vou observar o funcionamento deste termo na produção de Mattoso Câmara, tomando como termo de comparação, para efeito de ressaltar esta análise específica, a posição de Serafim da Silva Neto, seu contemporâneo. Procuraremos ver, pela constituição da designação deste termo no pensamento de Mattoso Câmara, como a aparência de neutralidade do termo significa. Por várias posições, poderíamos hoje mostrar o interesse deste aspecto do funcionamento histórico das línguas: elas tomam (recebem) de outras línguas elementos que as modificam. Em torno da questão do empréstimo, podemos encontrar posições que consideram que as mudanças lingüísticas são fundamentalmente motivadas pelas relações entre línguas. Esta posição contrapõe-se a uma outra para a qual a mudança lingüística se dá em virtude de alterações que uma língua sofre internamente. Nesta última, pode-se considerar que às modificações da língua podem-se acrescer outras que se devem a empréstimos que ocorrem em virtude da convivência das línguas. Meu objetivo aqui é discutir como Mattoso Câmara concebe esta questão do empréstimo. Vou tomar como base para este estudo seu texto sobre o assunto que está em Introdução às Línguas Indígenas Brasileiras. Esta escolha tem a ver com o fato de que a realidade multilíngüe do Brasil poderia, de algum modo, afetar sua posição. O empréstimo como tipo de mudança Nos estudos da história da língua portuguesa no Brasil, encontramos, como uma referência importante, o trabalho de Serafim da Silva Neto, contemporâneo de Mattoso Câmara, e de quem

98 Eduardo GUIMARÃES conhecemos muito bem Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa no Brasil, de 1950. Nesta obra encontramos, tal como procurei mostrar em estudo anterior (GUIMARÃES, 2004b), uma posição segundo a qual a relação de culturas e nesta medida de línguas, é dirigida pela civilização, enquanto valor universal. É por esta via que Silva Neto (1950) nos diz que a influência das línguas indígenas e africanas não foi, como não poderia ser, grande. O português, enquanto língua civilizada, não receberia a influência significativa de línguas primitivas. Tomando esta posição como elemento de comparação, vamos ao trabalho de Mattoso Câmara. O capítulo IV do seu Introdução às Línguas Indígenas Brasileiras ( A língua como fato histórico ) é onde ele trata do assunto que aqui nos interessa: o empréstimo. Neste capítulo, ele diz que vai tratar da língua como fato histórico (CÂMARA JR., 1965, p. 65). Tomada a posição, ele vai dizer que toda língua está sempre em mudança (p. 65). A partir disso, ele vai caracterizar o que é a mudança, ou como a língua muda. Mattoso distingue dois aspectos: a) a evolução; b) o empréstimo. Para caracterizar a evolução, ele fará uma crítica do conceito para restringir seu sentido. Apresenta, neste percurso, o conceito como tendo três características, apresentadas por reescrituração, como segue: A primeira é de que as mudanças são paulatinas e graduais: não há mudança brusca, o que é um dos pontos fundamentais do conceito de evolução em qualquer ramo científico. A segunda é de que essas mudanças graduais e paulatinas são encadeadas, isto é, umas dependem das outras, de sorte que vamos sempre ter uma cadeia de mudanças. E a terceira é de que assim se desenvolve uma marcha gradual, paulatina, em que cada passo depende do anterior para o fim de se atingir uma fase final de plenitude. Do ponto de vista das ciências do homem em geral, a plenitude era entendida como o advento de um estado de civilização superior, e os povos eram vistos como seguindo fases evolutivas até chegar a uma final, superior, que seria o ápice da sua evolução (CÂMARA JR., 1965, p. 66). Além de termos aí as três características desdobradas, esta seqüência termina por uma reescrituração, por definição, de plenitude : advento de um estado de civilização superior.

A Noção de Empréstimo em Mattoso Câmara 99 E é neste ponto que Mattoso opera sua restrição: o conceito de evolução não deve envolver o conceito de civilização. Em outras palavras, a civilização não é o termo, o objetivo, a finalidade da evolução. Deste modo, ele esvazia o sentido de evolução de qualquer valor ou diretividade. E é nesta medida que Mattoso vai dizer que a mudança tem os dois aspectos, já acima apresentados: a evolução e o empréstimo. A noção de empréstimo Qual o sentido da palavra empréstimo, o que ela designa no texto de Mattoso? De saída, empréstimo é um dos elementos que reescrevem mudança por especificação. Assim, o empréstimo é elemento de mudança. O que o caracteriza de modo específico? A palavra empréstimo aparece de modo mais específico, no texto considerado, a partir da p. 76. Um primeiro aspecto é observar que empréstimo é reescrito, metalingüisticamente, como um termo: Uma língua está sempre praticando o empréstimo...este termo tem sido uma ou outra vez criticado (CÂMARA JR., 1965, p. 76). Ou seja, Mattoso trata a palavra empréstimo como termo de um domínio específico, como um elemento de uma terminologia particular. De outra parte, empréstimo tem, logo de início, uma reescrituração por definição: O empréstimo é a intromissão de um elemento de um sistema estranho no sistema considerado (CÂMARA JR., 1965, p. 76). Dois aspectos a considerar: 1) a definição reescreve o empréstimo por a intromissão ; 2) o sentido de empréstimo se constitui diretamente na dependência de um conceito específico, o de sistema. Torna-se fundamental, então, compreender o que sistema designa. Embora não vá me deter sobre este aspecto aqui, lembramos que Mattoso trata desta questão no primeiro capítulo do livro, Conceito de Língua. Outra coisa a lembrar é que, nesta obra e em diversos

100 Eduardo GUIMARÃES textos seus, vemos que a noção de sistema aí está no sentido que a palavra tem a partir de Saussure, por exemplo. É interessante ainda observar que empréstimo não é, no decorrer do texto, reescrito por substituição. Normalmente o que aparece é a própria palavra empréstimo repetida, ou há, simplesmente, reescriturações anafóricas por ele. Mesmo a palavra intromissão, que predica empréstimo, aparece na definição e não numa substituição ao longo do texto. Uma reescrituração particularmente interessante de empréstimo aparece quando Mattoso se refere a Wilhelm Schmidt. Nesta passagem, pelo empréstimo é reescrito por pela difusão de traços lingüísticos de um sistema a outros (CÂMARA JR., 1965, p. 76). Como a difusão é atribuída a uma outra voz, mais significativa fica a predicação de empréstimo como intromissão que sua definição produz. O empréstimo como oposto ao purismo Em um certo momento de seu texto, Mattoso comenta a posição dos neogramáticos contrária à noção de empréstimo. Para ele, esta recusa dos neogramáticos acabou por tornar-se um esteio doutrinário para os puristas e uma sustentação para o combate aos estrangeirismos. Assim, a inclusão do empréstimo nas posições de Mattoso vai de par com sua posição que retira o aspecto civilizatório da evolução lingüística. Um último aspecto do texto de Mattoso Câmara. Ao mostrar a existência de empréstimo nas línguas, acaba por reescrever empréstimo por enumeração (particularização): Muitos lingüistas sustentam que esse é o único tipo de empréstimo que há de uma língua a outras, mas isso evidentemente é um grande exagero. Apesar dessa superabundância do empréstimo de ordem vocabular, podemos também ter empréstimos fônicos e empréstimos formais (CÂMARA JR., 1965, p. 79, grifo nosso). Mattoso, ao começar a mostrar a presença do empréstimo, um pouco antes da citação que acabamos de fazer, diz que a maior parte deles se dá no plano lexical (p. 78). Em seguida, reescreve tal como vimos na citação acima, empréstimo no plano lexical por esse (empréstimo), e o predica

A Noção de Empréstimo em Mattoso Câmara 101 como tipo de empréstimo. Na seqüência, reescreve empréstimo no plano lexical por empréstimo de ordem vocabular, que é uma reescritura, por particularização, de empréstimo. E esta reescritura é acompanhada de duas outras: empréstimos fônicos e empréstimos formais. Isto dá a seguinte reescrituração por enumeração: empréstimo pode ser lexical (vocabular), fônico, formal. Ou seja, o empréstimo diz respeito a qualquer funcionamento das línguas. Em outras palavras, considerar o empréstimo é colocar-se em oposição ao caráter civilizatório das línguas, e isto é próprio de toda a língua. O empréstimo e a divisão das línguas Se voltamos na obra de Mattoso Câmara, para observar seu Princípios de Lingüística Geral, vou tomar aqui a segunda edição, de 1954, podemos notar pequenas diferenças no modo de apresentar o empréstimo ao lado de uma diferença mais significativa. As pequenas diferenças podem ser consideradas se observamos que o empréstimo é apresentado em 1965, num capítulo intitulado A língua como fato histórico. Este capítulo se desenvolve em torno de dois conceitos, sobre os quais já falamos acima: o de evolução de um lado e o de empréstimo de outro. Esta distinção já está presente em 1954, mas não ainda completamente. Estes dois aspectos (evolução e empréstimo) são apresentados num capítulo que se chama Conceito da evolução lingüística (CÂMARA JR., 1954, p. 207), ou seja, o capítulo toma diretamente a evolução como tema, diferentemente do capítulo de Introdução às Línguas Indígenas Brasileiras. Dentro do capítulo, vemos que, ao apresentar o que seja a evolução lingüística, reescreve evolução enumerativamente por evolução propriamente dita e empréstimo. Deste modo, o empréstimo é significado como, de algum modo, parte da evolução. O texto de 1965 realiza, portanto, a operação de definitivamente distinguir o empréstimo da evolução. Em seguida, Mattoso Câmara reescreve, por definição, empréstimo. Numa primeira reescrita, diz que o empréstimo é o conjunto de mudanças que uma língua sofre em contacto com outras (CÂMARA JR., 1954, p. 208). Mas, imediatamente, reescreve esta definição por outra, trazendo a voz de

102 Eduardo GUIMARÃES Bloomfield: empréstimo é a adoção de traços lingüísticos diversos dos do sistema tradicional. Na segunda definição, a relação de empréstimo é vista como relativa a sistemas lingüísticos, especificando a noção de língua da primeira. E é esta segunda definição que lhe permite, e ele diz isso, melhor compreender a diferença entre a evolução e o empréstimo. E é por esta especificação que Mattoso nos traz um aspecto que não está diretamente presente no texto de 1965. Ele vai nos dizer que tomar a questão pela definição de Bloomfield nos permite levar em consideração não só a relação entre uma língua nacional e outras línguas estrangeiras, mas levar em conta o fato de que uma língua se divide, regionalmente, em línguas locais, os falares, e que estes falares, enquanto sistemas lingüísticos, podem receber empréstimos de outros falares. E os falares podem também ter formas suas emprestadas à língua comum. O autor lembra ainda que estas divisões da língua podem se dar não só regionalmente, mas também em virtude da diferença da língua popular e das línguas especiais. Também neste caso, pode haver empréstimos entre estas divisões. Comentários finais Na forma como Mattoso Câmara apresenta a questão, o empréstimo é, tal como a evolução, elemento de mudança, ou seja, ele é parte do funcionamento histórico das línguas. Se relembramos aqui a síntese que fizemos do pensamento de Serafim da Silva Neto, podemos observar duas coisas. A primeira é que a posição de Mattoso Câmara vê as línguas como sistema e, assim, como iguais no processo histórico em que línguas entram em contato. A segunda é que a posição civilizatória de Silva Neto considera que as línguas, quando entram em contato, não entram nesta relação em igualdade de condições. Assim, na história do pensamento brasileiro, a posição de Mattoso desarma a posição civilizatória em torno das línguas e formula uma posição de igualdade entre línguas (outras línguas ou divisões de uma língua), numa atitude basicamente descritiva, como é próprio de seu estruturalismo. Por essa via, Mattoso evita o purismo, o normativo, a divisão entre civilizado e primitivo (selvagem), mas, em contrapartida, não pensa o aspecto político das relações das línguas. Isto faz Mattoso não considerar,

A Noção de Empréstimo em Mattoso Câmara 103 por exemplo, a especificidade política da relação histórica no Brasil de línguas indígenas versus português, na obra de 1965; ou a não se dar conta, em 1954, do sentido de sua própria terminologia que nos fala de língua popular, de classes inferiores, versus línguas especiais, relativamente à língua comum. E, ainda, a não considerar o sentido social do impacto da gíria literária, preponderantemente escrita, sobre a língua comum. A redução que Mattoso Câmara faz do problema a seus aspectos descritivos não permite que ele possa considerar que o funcionamento da língua envolve seus falantes, no sentido que tenho usado este termo (GUIMARÃES, 2002). Ao desarmar o teleologismo da posição civilizatória, ele não pôde ver como esta relação atravessa politicamente o funcionamento das línguas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CÂMARA JR., J. M. Princípios de Lingüística Geral. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1954. CÂMARA JR., J. M. Introdução às Línguas Indígenas Brasileiras. Rio de Janeiro, ao Livro Técnico, 1977. Edição original: 1965. CÂMARA JR., J. M. Língua e Cultura. In: UCHÔA, C. E. F. (Org.). Dispersos de J. Mattoso Câmara Jr. Rio de Janeiro: FGV, 1972. Edição original: 1955. GUIMARÃES, E. Entre o Estilístico e o Gramatical: Mattoso Câmara na História da Lingüística no Brasil. In: ORLANDI, E. P.; GUIMARÂES, E. Institucionalização dos Estudos da Linguagem. Campinas: Pontes, 2002. GUIMARÃES, E. História da Semântica. Sujeito, Sentido e Gramática no Brasil. Campinas: Pontes, 2004a. GUIMARÃES, E. Civilização na Lingüística Brasileira no século XX. Matraga, Rio de Janeiro, n. 16, p. 89-104, 2004b. SILVA NETO, S. Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Presença/MEC, 1976. Edição original: 1950. Campinas, outubro de 2005.

104 Eduardo GUIMARÃES SOBRE O AUTOR Eduardo Guimarães é doutor em Lingüística pela Universidade de São Paulo (Usp). Professor da graduação e Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Líder dos grupos de pesquisa Enciclopédia das Línguas do Brasil; Núcleo de Jornalismo Científico; O Controle Político da Representação: uma História das Idéias. Membro dos grupos de pesquisa A produção do consenso nas políticas públicas urbanas: entre o jurídico e o administrativo; História das Idéias Lingüísticas no Brasil; Saber Urbano e Linguagem. Autor de mais de 50 artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais, entre os quais: A língua Portuguesa no Brasil; Apresentação: Brasil País Multilingüe, Civilização na Lingüística Brasileira no século XX; Bairro: a especificidade de um nome abstrato; A marca do nome; Designação e espaço de enunciação: um escrito político no cotidiano; Os estudos da significação no Brasil; Para uma história dos estudos sobre linguagem; Política de Línguas na América Latina; Uma política da língua em Said Ali; Os Estudos da Significação no Brasil: uma história entre o natural e o histórico no século XIX; Interpretar. Língua e acontecimento; La Formation D Un Espace de Production Linguistique; La Grammaire Au Brésil, Grammaires Brésiliennes. Autor de vários livros, entre os quais: História da semântica: sujeito, sentido e gramática no Brasil; Os limites do sentido: um estudo histórico e enunciativo da Linguagem; Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação; Institucionalização dos estudos da linguagem: a disciplinarização das idéias lingüísticas; Texto e argumentação. Autor de mais de 30 capítulos de livros, entre os quais: Argumentación y acontecimiento; Entre o estilístico e o gramatical: Mattoso Câmara na história da lingüística no Brasil; Relações entre pragmática e enunciação.