REFLEXÃO E TEMPO NA FENOMENOLOGIA HUSSERLIANA Para Husserl, a filosofia entendida em sentido rigoroso só é possível a partir de uma mudança de orientação (Einstellung) do pensamento. Uma mudança rumo a uma orientação estritamente fenomenológica. Após a elaboração fenomenologia (1905), obra que inaugura a sua fenomenologia transcendental, Husserl vê que esta mudança de orientação do pensamento exige uma suspensão (Ausschaltung) de todas as teses que afirmam de imediato a crença na existência de um mundo real (as teses abertas desde uma orientação natural e imediata de relação com o mundo). Para Husserl, ao colocarmos estas teses entre parênteses, não vivemos mais nelas, mas efetuamos atos de reflexão sobre elas, apreendendo-as, não mais como seres relativos e reais, mas como o ser absoluto e subjetivo que elas são: vivemos agora inteiramente nesses atos de segundo nível [reflexões], cujo dado é o campo infinito do conhecimento absoluto - o campo fundamental da fenomenologia (HUSSERL, Idéias I, 2006, p. 118). Se atentarmos para a obra Idéias I vê-se que o primeiro passo da epoché (suspensão) fenomenológica é aí realizado como uma redução eidética: a passagem do fato natural e contingente ao eidos, à estrutura geral e a priori do vivido. Descobre-se, então, como primeiro resíduo fenomenológico a intencionalidade enquanto a peculiaridade de todo cogito atual ser consciência de algo - a relação essencial da consciência, a compreensão de que a toda cogitatio, ato da consciência, corresponde necessariamente um cogitatum, objeto desse ato. É assim que tendo realizado o primeiro passo da epoché fenomenológica, Husserl oferece, no 77 das Idéias I, indícios para se pensar em que consiste a reflexão fenomenológica. Scheila Cristiane Thomé Doutorado Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Bolsista FAPESP scheilathome@hotmail.com de A idéia da Todo eu vive seus vividos, e nestes está realmente e intencionalmente uma variedade de coisas. Ele os vive, o que não quer dizer que os tenha sob o olhar, a eles e àquilo que está incluso neles, nem que os apreenda no modo da experiência imanente ou de uma intuição e representação imanente qualquer. Todo vivido que não se tem sob o olhar pode, por possibilidade ideal, passar a ser notado, uma reflexão se dirige a ele, ele se torna então objeto para o eu. (...) As reflexões são, mais uma vez, vividos e podem, como tais, tornar-se substrato de novas reflexões e assim in infinitum, em generalidade de princípio (HUSSERL, Idéias I, 2006, p. 168). - 156 - PPG-Fil - UFSCar
A reflexão é apresentada aqui como um modo de olhar, um modo de atenção do eu. Modo de olhar que tem como função, na visada, captar o vivido tal como este é enquanto tido e retido no fluxo subjetivo e absoluto que temporalmente se abre. Reflexão é propriamente a capacidade, expressa como um ato, que a subjetividade tem de voltar-se sobre si mesma, voltar-se sobre as suas vivências e captá-las como suas. Assim, o peculiar modo de visar da reflexão possui o caráter de modificação da consciência, uma mudançaa de olhar de algo dado num momento da consciência para a consciência desse algo, a unidade intencional desse vivido de consciência. O ato da reflexão é um ver e captar, e enquanto captação é também um modo de objetivar, pois na captação reflexiva o visado (vivido) é visto na sua plena unidade intencional que temporalmente perdura. Husserl nos diz que o objeto intencional só é possível de ser visado reflexivamente no interior de um fluxo (Fluss) absoluto de vividos. A vida subjetiva só se abre a partir deste fluxo de vivências, e nem mesmo o ato da reflexão escapa à dinâmica de perpétua abertura do fluxo, pois, como aponta o texto de Husserl supracitado, quando a reflexão penetra o fluxo de vividos para captar uma vivência retida, a mesma reflexão torna-se um vivido do fluxo, e torna-se substrato de novas reflexões (HUSSERL, Idéias I, 2006, p. 168). Todo vivido do eu está inserido numa esfera de liberdade fluente aberta desde o campo temporal, pois o campo do fluxo de vividos que se abre nos horizontes infinitos de passado e futuro desde um perpétuo presente - um presente que é sempre vivo -, possibilita ao vivido a liberdade para decorrer na fluência do presente, e ser visto e apreendido no interior deste mesmo fluxo, de modo atual pelas percepções, de um modo retido no passado, mediante as recordações, e esperado no futuro por meio das protensões. O território de fluência do vivido apresenta tanto um horizonte determinado, de atualidade, como tambémm um horizonte de inatualidade, mas passível de visualização e do qual o eu deve estar consciente como fundo irrefletido, um campo da consciência para o qual o eu transcendental não está atento, mas pode a qualquer momento voltar o olhar e captá-lo reflexivamente, pois este também é um campo intencional da consciência 229. Como Husserl sempre fez questão de reiterar: todo objeto é intencional e como tal pode ser apreendido reflexivamente, [...] não há nenhum objeto em si que o 229 Cf. Idéias I, 77: Ao surgir de novo ao olhar reflexionante, o vivido efetivamente vivido a cada momento se dá como efetivamente vivido, como sendo agora ; mas não apenas isso, ele se dá também como tendo sido há pouco, e porque não era notado, ele se dá justamente como tal, como tendo sido, mas de maneira irrefletida (HUSSERL, Idéias I, 2006, p. 168). - 157 - PPG-Fil - UFSCar
eu da consciência não alcance, que não lhe diga nada a respeito (HUSSERL, Idéias I, 2006, p. 112). A explicitação fenomenológica do campo irrefletido da consciência nos mostra que os vividos não são apenas vividos intencionais quando estamos voltados para eles e os apreendemos em experiências imanentes; se foram efetivamente vividos pelo eu, deve haver a possibilidade de mediante uma reflexão imanente penetrar no interior da retenção - da recordação primária (primäre Erinnerung) ou da recordação iterativa (Wiedererinnerung) - e ter-se aí ainda consciência de um vivido como tendo sido há pouco (segundo uma recordação primária) ou naquele momento (em se tratando de uma recordação iterativa).vê-se, assim, que todo vivido intencional irrefletido aberto no horizonte do passado ou do futuro, ou seja, todoo vivido que não está sob o olhar atento do eu, pode ser captado pelo olhar reflexivo do eu e tornar-se vivido intencional refletido. O fundo irrefletido da consciência guarda sempre a possibilidade de ser abarcado pela reflexão fenomenológica. Não há vivido que não possa ser explicitado em sua essência e sua estrutura de doação intencional. Neste sentido, a reflexão ocupa um lugar importante entre as peculiaridades eidéticas mais gerais da esfera do vivido, e isso em virtude da sua função metodológica universal: o método fenomenológico se move inteiramente em atos da reflexão (HUSSERL, Idéias I, 2006, p. 167). A função metodológica da reflexão refere-se a sua dinâmica de atuação que penetra de um modo apreensivo o fluxo absoluto de vividos e no interior deste realiza várias modificações de consciência (ao transformar vividos irrefletidos em vividos refletidos) possibilitando, mediante este exercício, explicitar tanto as estruturas eidéticas das vivências apreendidas no fluxo temporal, como também a própria dinâmica de temporalização do fluxo absoluto de consciência, ao captar os atos de consciência que temporalizam os vividos. É assim que, para a fenomenologia que pretende descrever a consciência pura em seus estratos puros de constituição, a reflexão aparece como a designação do método da consciência para o conhecimento da consciência em geral (HUSSERL, Idéias I, 2006, p. 171). É porque, aos olhos de Husserl, a reflexão garante a possibilidade de uma explicitação estrutural e eidética da consciência que o conceito de reflexão assume um papel fundamental na totalidade do seu projeto fenomenológico. Aqui a tarefa fenomenológica consiste em investigar sistematicamente todas as modificações de vivido que estão sob a designação de reflexão, junto com todas as - 158 - PPG-Fil - UFSCar
modificações com as quais estão em relação de essência, e que (HUSSERL, Idéias I, 2006, p. 172). as pressupõem Descobre-se aqui a importância do conceito de reflexão no pensamento husserliano, pois, para Husserl, é a reflexão que permite a captação da unidade e a retomada do sentido das vivências da vida subjetiva. Para Husserl, só há a possibilidade de elaboração de um conhecimento fenomenológico da consciência, fundado em reflexões, a partir do solo de evidências abertas pela epoché fenomenológica. Em se tratando de uma elucidação da consciência, até mesmo o conceito-limite de um Deus conhecedor deve obedecer a esta necessidade evidente: é evidente que, por essência [...] algo como consciência e conteúdo de consciência (no sentido real ou intencional) só pode ser conhecido por reflexão. Logo, até Deus está sujeito a essa necessidade absoluta e evidente, assim como à evidência de que 2 + 1 = 1 + 2. Tambémm ele só poderia alcançar conhecimento de sua consciência e de seu conteúdo reflexivamente (HUSSERL, Idéias I, 2006, p. 172). A explicitação fenomenológica da estrutura da reflexão põe aqui a questão do limite da apreensão reflexiva. Pois, se em Idéias I Husserl afirma a possibilidade de apreensão reflexiva integral dos vividos intencionais e das vivências (atos) que intencionalmente os doam, no entanto, resta como questão saber se há a possibilidade de uma reflexão fenomenológica vir a apreender a unidade do fluxo de vividos (o nexo intencional de vividos e suas vivências), unidade de fluência que é infinita 230, ou seja, o que está em questão, em última instância, é a garantia da possibilidade de execução de uma apreensão reflexiva total, uma reflexão sem restos, que apreenderiaa integralmente a subjetividade absoluta em seu infinito processo de temporalização de si mesma. Nas Idéias I Husserl já se dá conta do limite que a visada reflexiva apresenta: se o olhar do eu puro atinge um vivido qualquer em reflexão, e em apreensão perceptiva, subsiste a possibilidade a priori de dirigir o olhar para outros vividos, até onde haja nexo entre eles. Por princípio, entretanto, todo esse nexo jamais é algo dado ou a ser dado por um único olhar puro (HUSSERL, Idéias I, 2006, p. 188). Nas Idéias I Husserl pretende, no entanto, garantir a possibilidade de uma captação reflexiva da unidade do fluxo absoluto. Tal captação é apresentada como uma captação parcial, e mais ainda, uma captação que só pode ser efetivada de modo 230 Cf. Idéias I, 82. O fluxo de vividos é uma unidade infinita, e a forma do fluxo é uma forma que abrange necessariamente todos os vividos de um eu puro com diversos sistemas de formas (HUSSERL, Idéias I, 2006, p. 187). - 159 - PPG-Fil - UFSCar
incompleto e indefinido. Esta compreensão é exposta no 83 das Idéias I, onde Husserl anuncia que a unidade do fluxo absoluto só pode ser apreendida reflexivamente como uma idéia no sentido kantiano. O que Husserl retoma da compreensão kantiana de idéia é a progressão ilimitada desta: a essencial implicação da idéia tanto em relação a um constante progresso ao infinito como a um progresso ao indefinido. Enquanto progressão ao infinito, a idéia aponta para uma totalização, um todo que é anterior e fundante das partes. Aqui, a totalidade configura-se como um nexo essencial do horizonte de vividos. É propriamente este nexo que articula a totalidade de abertura do horizonte com os seus vividos singulares. Enquanto progressão ao indefinido, a idéia indica um indefinido ultrapassamento de um horizonte enquanto uma essencial abertura de um horizonte sempree aproximado, que, no entanto, nunca é completamente consumado. Neste sentido, a idéia traz consigo um caráter indeterminado com relação ao seu campo de efetivação, ela é no perpétuo exercício de abertura de possibilidades - que é sempre um horizonte de totalidade e um visar o nexo total de vivências que este horizonte traz consigo - um por fazer-se, seja no constante exercício de retomada de si (nas recordações), seja no constante exercício de projeção de si (nas protensões). Assim, cada realização do ego é sempre uma efetivação de uma idealização, mas cada realização é sempre uma efetivação parcial da idéia. A idéia não se deixa efetivar integralmente porque ela é uma esfera essencialmente aberta, é uma estrutura de puras possibilidades de realização, portanto, não pode ser realizada totalmente, pois, se fosse integralmente efetivada deixaria de ser uma idealidade, perderia o seu caráter ideal para ser, então, unicamente uma realidade. É justamente por a idéia ser abertura de possibilidades a serem realizadas que ela é a meta do esforço empreendido em cada realização do ego. Vê-se, assim, que segundo as Idéias I, a captação reflexiva da unidade do fluxo subjetivo é sempre incompleta e indefinida, pois aquilo que se pretende captar, objetivar com o olhar da reflexão, não se deixa de modo algum objetivar, porquanto é unicamente uma idéia, é mais ainda, uma idéia que veicula em si mesma um caráter infinito e indefinido: é uma idéia essencialmente ilimitada. Inapreensível e indeterminável na totalidade das suas possibilidades. Na progressãoo contínua de apreensão em apreensão apreendemos de certo modo, eu disse, também o fluxo de vivido como unidade. Nós não o apreendemos como um vivido singular, mas ao modo de uma idéia no - 160 - PPG-Fil - UFSCar
sentido kantiano. Ele não é algo posto e afirmado a esmo, mas um dado absoluto e indubitável num sentido amplo correspondente da palavra dado. [...] O que é justamente o peculiar da ideação na visão da idéia kantiana, que não perde, por isso, a sua evidência, é que a determinação adequada de seu conteúdo, aqui do fluxo de vivido, é inatingível (HUSSERL, Idéias I, 2006, p. 188). A apreensão da idéia da unidade do fluxo de vivido só é possível mediante uma evidência inadequada, pois aqui não se pode mais pensar em uma total adequação intuitiva do objeto com o seu modo próprio de doação. Quando se trata da intuição de idéia, falta o objeto com o qual esta possa se adequar. Assim, a idéia só é intuível enquanto atualidade do potencial, e, por isso, é necessariamente uma evidência inadequada: o seu conteúdo intuído nunca é pleno, nunca é integralmente dado, é indefinido e infinito porquanto é a abertura de uma perpétua fluência. Já Merleau-Ponty, na Fenomenologia da percepção, empreendeu uma dura crítica aos limites da reflexão no pensamento husserliano, ao apontar para a desatenção de Husserl quanto à compreensão do lugar próprio do irrefletido, o impensado que está na basee de toda reflexão, que, para Merleau-Ponty, ao contrário do que pretende Husserl (peloo menos nas Idéias I e nas Lições), é irredutível à toda e qualquer reflexão. Merleau-Ponty aponta como motivo pelo qual Husserl sempre empreendeu constantes processos de reformulação da redução fenomenológica, um mal entendido que nem leitoress e tampouco o próprio Husserl souberam resolver, a saber, que, se para ver o mundo é preciso romper com ele, logo, isto justamente nos ensina seu brotamento imotivado. Se fôssemos o espírito absoluto, a redução não seria problemática. Mas porque,, ao contrário, nós estamos no mundo, já que mesmo nossas reflexões têm lugar no fluxo temporal que elas procuram captar (porque elas sich einströmen, como diz Husserl), não existe pensamento que abarque todo o nosso pensamento (MERLEAU-PONTY, Fenomenologia da percepção, 1999, p. IX). É por isso quee Merleau-Ponty insiste em afirmar que a reflexão nunca apreende integralmente o objeto visado; ao contrário, o objeto aberto no mundo se furta a uma apreensão integral e se retira em sua transcendência, ele permanece sempre um irrefletido. Segundo Merleau-Ponty, o idealismo transcendental proposto por Husserl só seria verdadeiro se pudéssemos praticar uma reflexão capaz de despojar o mundo de sua opacidade e transcendênciaa para afirmá-lo como representação. No entanto, o irrefletido se furta a essa apreensão representativa, não há a possibilidade do sujeito reflexionante totalizar o objeto. O papel positivo da reflexão consiste na tarefa de permanecer no objeto e, por mais paradoxal que seja, buscar reencontrar desde a percepção do objeto a - 161 - PPG-Fil - UFSCar
experiência irrefletida do mundo. Neste sentido, a reflexão não nos leva a um conjunto de condições de possibilidades, mas ao jorro sempre imotivado do mundo. É nesse território de irredutibilidadee do mundo, segundo Merleau-Ponty, que se decide o caráter radical da reflexão fenomenológica distinto daquela radicalidade assumida por Husserl. Bibliografia BARBERO, C. Il problema dell infinito nella fenomenologia di Husserl, http://www.labont.com/public/papers/barbero/infinito.pdf. Acesso em 04/06/2008. HUSSERL, E. Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, Trad. Márcio Suzuki, Aparecida: Idéias & Letras, 2006. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo, Trad. Pedro M. S. Alves, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda. Zur Phänomenologie des inneren Zeitbewusstseins, Haag Martinus Nijhoff, vol. X, 1966. KORTOOMS, T. Phenomenology of time Edmund Husserl s analysis of time- Academic consciousness. in: Phaenomenologica, vol. 161, Dordrecht: Kluwer Publishers, 2002. LAVIGNE, J.F. Husserl et la naissance de la phénoménologie (1900-1913) _ Des Recherches logiques aux Ideen: la genèse de l idéalisme transcendantal phénoménologique, Paris: Presses Universitaires de France, 2005. MOURA, C. A. RIBEIRO DE. Sensibilidade e entendimento na fenomenologia, in Racionalidade e crise, São Paulo: Editora UFPR e Discurso Editorial, 2001. MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1995. Fenomenologia da percepção, Tradução: Carlos Alberto Ribeiro de Moura, 2º ed, São Paulo: Martins Fontes, 1999. MOUTINHO, L. D. SANTOS. Tempo e sujeito: o transcendental e o empírico na fenomenologia de Merleau-Ponty, in Revista Dois Pontos, vol. 1, n.1, 2004. SOTO, F. C. Temporalidad e intencionalidad pasiva en los manuscritos C, In Phainomenon, Lisboa, vol. 13, 2006. - 162 - PPG-Fil - UFSCar