Resumo POR UMA LEITURA PLURAL DO TEXTO LITERÁRIO Érica Antonia Caetano* Este artigo propõe uma leitura da obra clássica brasileira Dom Casmurro, de Machado de Assis, publicada no ano de 1899, considerada entre os críticos, a mais enigmática, tendo como base teórica o código hermenêutico de Roland Barthes, exposto em sua obra S/Z. Diante disso, o nosso objetivo consiste em verificar aspectos muitas vezes não revelados numa leitura superficial, isto é, significados ocultos aos olhos do leitor. Tendo em vista que grande percentual dos leitores de Dom Casmurro finalizam a leitura acreditando na infidelidade de Capitu, conforme propõe o narrador-personagem, almejamos, por meio da análise Pós-Estruturalista, evidenciar que a narrativa possui um leque de possibilidades de leitura, pois o texto não é algo pronto, acabado, mas sim um emaranhado complexo que aguarda ser atualizado. Palavras-chave: Leitura. Dom Casmurro. Código hermenêutico. Introdução Muitas obras, principalmente as machadianas, não são compreendidas pelo seu público leitor. É notório que quando não compreendemos um texto, a nossa primeira reação é deliberar que ele não é de boa qualidade. Em outras palavras, ditas na maioria das vezes por alunos, o texto é chato. É exatamente por isso que muitas leituras de textos literários são iniciadas, mas nem sempre concluídas. Tendo em vista que a leitura e a interpretação de obras literárias, ainda são consideradas problemáticas, não somente nas escolas do ensino fundamental e médio, mas também no ensino superior, justifica-se a realização desta pesquisa. É comum, ao adentrarmos numa escola, nos depararmos com o desgosto literário, seja ele por parte do aluno ou até mesmo por parte do professor. Isso acontece porque o conceito de leitura desses indivíduos é menor, ou seja, para eles a leitura nada mais é do que a decodificação das palavras. Contudo, ler exige muito mais do leitor. É preciso ler o que o texto deixa implícito, ler as suas entrelinhas. Dessa forma, nossa proposta com a realização deste artigo é demonstrar que uma obra traz para o leitor muito mais informações do que as já explícitas; para tanto * Mestranda em Letras pela UEL (Universidade Estadual de Londrina); especialista em Língua Portuguesa com ênfase em Artes e em Língua Estrangeira Moderna Inglês e Espanhol pela FAFIMAN (Fundação Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mandaguari); bolsista pela CAPES. E-mail: ericaantoniacaetano@hotmail.com. 177
nos apoiaremos nos ideais pós-estruturalistas propostos por Roland Barthes em sua obra S/Z (1980), mais especificamente, ao seu código hermenêutico. O corpus de nossa pesquisa trata-se da obra clássica da literatura brasileira, Dom Casmurro, de Machado de Assis, publicada pela primeira vez em 1899. Em Dom Casmurro, temos uma narrativa envolta na temática de uma possível traição. Nela Bentinho, o famoso Dom Casmurro, narra a sua triste história a partir de um flashback deixando os seus leitores com a pulga atrás da orelha devido a sua construção hermética. Uma Proposta de Leitura Pós-Estruturalista: A Valorização do Leitor na Perspectiva Teórica de Roland Barthes O crítico pós-estruturalista Roland Barthes ao publicar a sua obra S/Z em 1970 propõe um método de leitura no qual o leitor não é mais um mero decodificador de palavras, visto que o leitor completa a obra. Nesse trabalho Barthes dividiu o conto Sarrazine, de Balzac, em certo número de unidades menores e aplicou a essas lexias os cinco códigos nomeados por ele da seguinte forma: código hermenêutico, código sêmico, código cultural, código proiarético ou das ações o campo simbólico. Cada um desses códigos, segundo Roland Barthes, contribui consideravelmente para uma leitura plural do texto literário. O primeiro dentre os cinco códigos foi denominado por Roland Barthes de hermenêutico. Segundo ele, o código hermenêutico consiste em distinguir os diferentes termos (formais) ao longo dos quais se centra um enigma, se postula uma fórmula que depois se retarda e por fim se revela (às vezes faltarão esses termos, outras vezes repetir-se-ão; não vão aparecer numa ordem constante) (BARTHES, 1980, p. 22). Em outras palavras, o não revelado, o não desvendado num texto literário, ou melhor, os enigmas presentes no mesmo que ora são respondidos, ora não, é o que Barthes chamou de código hermenêutico. No texto literário há eventos que são aos poucos divulgados, a disposição da trama nem sempre é explícita, e por vezes, o narrador oferece pistas a serem descobertas pelo leitor. Trata-se de um verdadeiro convite para o leitor participar da obra, pois conforme destacou Umberto Eco... a obra de arte é uma mensagem fundamentalmente ambígua, uma pluralidade de significados que convivem num só significante (ECO, 1988, p. 22). Nesse sentido, é papel fundamental do leitor participar da concretização do texto literário. Levando em consideração os conceitos de Roland Barthes de código hermenêutico, procuramos, a seguir, levantar e discutir as dúvidas mais comuns instauradas na obra polêmica de Machado de Assis, Dom Casmurro, obra esta que exige de seu leitor uma participação mais ativa devido ao número significativo de enigmas presentes. 178
DOM CASMURRO: UM ROMANCE ENIGMÁTICO O Título da Obra A começar pelo título, Dom Casmurro, não há nada de específico, que automaticamente dê ao leitor a ideia do que se trata a história, isto é, não se sabe se Dom Casmurro é uma pessoa, coisa/objeto, animal ou lugar. Logo, o título vem sugerir uma variedade de hipóteses ao leitor. Diante dessa situação, o leitor se depara com um primeiro enigma a ser decifrado no decorrer da narrativa. Quem é Dom Casmurro? A resposta a esse primeiro enigma está bem próxima do leitor e pode ser encontrada no capítulo inicial da obra: Do Título, no qual o narrador esclarece: Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei (ASSIS, 1994, p. 17). Entretanto, é possível que mesmo depois de toda a explanação ainda permaneça a dúvida a respeito do significado da palavra Casmurro, fato este que pode ansiar o leitor na busca por um significado mais concreto nos dicionários. Todavia, o narrador-personagem assegura ao leitor já na sequência: Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão [...]. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para minha narração; se não tiver outro daqui até o fim do livro, vai este mesmo (ASSIS, 1994, p. 17, grifo do autor). Ao findar este capítulo o narrador-personagem revela também que o título Dom Casmurro servirá para mostrar ao poeta do trem que ele não guardou rancores, contrariamente, a alcunha serviu lhe de inspiração para redigir a história dos subúrbios : O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto (ASSIS, 1994, p. 17). Flash Back, o Discurso da Dúvida É muito comum os leitores de Dom Casmurro acreditarem (no final da leitura) que a personagem perversa, a insensível e a responsável por tanto sofrimento é unicamente Capitu, a dona dos olhos de ressaca. No capítulo intitulado Olhos de ressaca o narrador-personagem descreve o momento da partida (enterro) do amigo Escobar, acentuando as ações de agudo sofrimento de Capitu frente a tal situação, fato este que levou Bentinho/ Dom Casmurro a sentir ciúmes e desconfiança da esposa: Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. 179
No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas [...] (ASSIS, 1994, p. 183). Segundo os fatos narrados, Capitu é mesmo uma mulher adúltera. Esta afirmação está expressa em diversas passagens da obra, tomemos como exemplo o capítulo Segundo impulso, no qual, Bentinho mergulhado em dúvidas, ressentimentos e rancor acredita que o suicídio era a melhor opção, frente as suas suspeitas de que Capitu o traiu (para ele já era uma verdade a existência do adultério). Para tanto, Bentinho prepara uma xícara de café e adiciona a ele veneno. Estava prestes a beber o café envenenado, mas é interrompido pelo pequeno Ezequiel: Quando ia a beber, cogitei se não seria melhor esperar que Capitu e o filho saíssem para a missa; beberia depois; era melhor. Assim disposto, entrei a passear no gabinete. Ouvi a voz de Ezequiel no corredor, vi-o entrar e correr a mim bradando: -Papai! Papai! (ASSIS, 1994, p. 196). Neste momento Bentinho decide beber de uma vez o café envenenado, no entanto, mais uma vez foi interrompido, agora foi pelos beijos e carinhos do pequeno Ezequiel: Cheguei a pegar na xícara, mas o pequeno beijava-me a mão [...] (ASSIS, 1994, p. 197). Essa situação fez Bentinho sentir um forte impulso e por muito pouco não deu a Ezequiel a xícara de café envenenada: [...] me custa dizer aqui; mas vá lá, digase tudo. Chamem-me embora assassino; não serei eu que os desdiga ou contradiga; o meu segundo impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a Ezequiel se já tomara café (ASSIS, 1994, p. 197). Apesar da recusa do menino, Bentinho insiste para que ele tome o café a fim de matá-lo. Ele conta que Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo que quase a entornei, mas disposto a fazê-la cair pela goela abaixo, caso o sabor lhe repugnasse, ou a temperatura, porque o café estava frio [...] (ASSIS, 1994, p. 197). Porém, a permanência das incertezas acerca de sua paternidade o fez recuar: Mas não sei que senti que me fez recuar. Pus a xícara em cima da mesa, e dei por mim a beijar doidamente a cabeça do menino. - Papai! Papai! exclamava Ezequiel. - Não, não, eu não sou teu pai! (ASSIS, 1994, p. 197). É importante lembrar que a obra Dom Casmurro é construída com base em lembranças (flashback) de alguém que tem seu fim evidente. Como ele mesmo confirma: O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente (ASSIS, 1994, p. 18-19). Desse modo, considerando que a narrativa é organizada a partir da memória do narrador e que, segundo o mesmo relata, está velho e solitário, podemos acreditar que a história narrada pode ter apresentado falhas de memória. Em outras palavras, não estamos insinuando aqui que Capitu é inocente, queremos com isto dizer apenas que, o discurso em flashback é um discurso de dúvida. Quem Narra a História? É Bentinho, o ex-marido de Capitu, homem que crê na traição da mulher e que 180
se autointitula Dom Casmurro, quem ocupa a posição de narrador. Ele relata os acontecimentos de acordo com suas lembranças (flashback), ou, diga-se de passagem, que a história é relatada de acordo com o que ele quer contar, sob sua perspectiva: a de marido traído. Nas primeiras linhas do romance já podemos observar que este é narrado em primeira pessoa e tem caráter autobiográfico. Em vista disso, cabe ao leitor modelo a criticidade de ler a obra, lembrando que as características do narrador, homem velho, solitário e casmurro, como ele próprio destaca, nos leva a duvidar de sua integridade. Uma das maiores dúvidas: Capitu é inocente ou culpada? Muitos leitores e críticos de Machado de Assis questionam: Capitu é inocente ou é culpada? Houve mesmo adultério ou ele foi fruto da imaginação de Dom Casmurro? Eis aí um enigma que não é revelado na narrativa e que instiga o leitor a participar da concretização da obra. Afinal, todas as desconfianças e incertezas de Bentinho são transpostas para o leitor. A morte de Escobar proporcionou a primeira situação de desconfiança e ciúme em Bentinho, que julgou estranha a forma pela qual Capitu, sua esposa, contemplava o cadáver. Dom Casmurro descreve com detalhes o episódio que permaneceu vivo em sua memória durante muitos anos e serviu de inspiração para escrever o romance: Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas [...] (ASSIS, 1994, p. 183). Com esse acontecimento, o ciúme de Bentinho, que não era pouco, aumentou e o casamento entra em crise. Sua atitude, seu comportamento vai se alterando e Capitu logo percebeu a mudança brusca de humor do marido. A razão de tudo isso é agora a natureza ambígua (semelhança) entre o defunto (Escobar) e Ezequiel, filho de Capitu. Os primeiros traços físicos que vieram despertar tal semelhança foram os olhos do menino. Capitu percebendo isso pergunta a Bentinho: - Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esquisita? Só vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto Escobar (ASSIS, 1994, p. 189-190). Contudo, as semelhanças foram aumentando: Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iam-se apurando com o tempo. Eram como um debuxo primitivo que o artista vai enchendo e colorindo aos poucos [...] (ASSIS, 1994, p. 191). Torturado pela dúvida e pelo ciúme, Bentinho decide separar-se de Capitu; com a separação, mãe e filho viajam para a Europa e anos mais tarde por lá falecem. O fato da morte de Capitu e de Ezequiel faz com que a obra Dom Casmurro fique 181
marcada pela ambiguidade, pela incerteza, pela dúvida... e nos impossibilita de obter resposta concreta à pergunta: Capitu traiu ou não seu marido? Essa incógnita ultrapassou gerações e permanece viva até os dias atuais, e faz de Dom Casmurro uma das mais fascinantes obras da literatura brasileira, justamente por proporcionar ao leitor um leque de significações. Conclusão Chegamos ao fim deste estudo e, no entanto, muita coisa ainda não foi dita sobre Dom Casmurro. Muitos trabalhos foram, são e serão realizados tendo como corpus a obra mais polêmica de Machado de Assis, e mesmo assim as leituras, as significações, as interpretações desta jamais serão saturadas. Isso acontece porque o texto literário possui uma pluralidade de significados, logo, podemos ler uma mesma obra por várias vezes, e em cada nova leitura teremos novas significações, novos símbolos. Também é possível que uma mesma obra tenha diferente significado para duas pessoas, afinal toda escrita depende da generosidade do leitor (MANGUEL, 1997, p. 207). Ao nos apoiarmos no Pós-Estruturalismo para desenvolver este estudo, pudemos, com um olhar mais atento e observador, vivenciar detalhes da obra não vivenciados anteriormente. Assim, o Pós-Estruturalismo abre as portas da compreensão para o leitor. De acordo com o pós-estruturalista Roland Barthes, interpretar um texto é apreciar o plural de que ele é feito. Num texto ideal, as redes são diversas e há uma espécie de jogo entre si, sem que nenhuma fique encoberta pela outra, esse texto é um vasto conjunto de significantes e não apenas uma estrutura de significados. Por todo o exposto, reforçamos aqui a importância do desenvolvimento deste trabalho que teve por intuito mostrar que a obra de arte, especificamente aqui, a obra Dom Casmurro de Machado de Assis é passível de multileituras. Abstract FOR A PLURAL READING OF THE LITERARY TEXT This article proposes a reading of the Brazilian classic Dom Casmurro, Machado de Assis, published in 1899, considered among the critics, the most enigmatic, based on the hermeneutic code by Roland Barthes in his book S/Z. Therefore, our goal consists on verifying aspects many times not revealed on a superficial reading, that is, occult meanings to the reader s eyes. As a great percentage of readers of Dom Casmurro after reading it conclude believing in the infidelity of Capitu, according to the proposal of the narrator-character, we longed for, through the analysis Post-structuralist, to evidence that the narrative has a range of reading possibilities, because the text is not something ready, finished, but a complex tangled that awaits to be updated. Keywords: Reading. Dom Casmurro. Hermeneutic code. 182
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