ANÁLISE PRELIMINAR DE UM CASO DE VCAN QUE FAVORECEU A OCORRÊNCIA DE GRANDES ENCHENTES NO SUL DO BRASIL EM DEZEMBRO DE 1995 Guilherme Lauxe Reinke 1, Ricardo Lauxe Reinke², Carina Klug Padilha Reinke² RESUMO - Essa análise preliminar mostra que um Vórtice Ciclônico em Altos Níveis (VCAN) favoreceu a ocorrência de grandes enchentes no sul do Brasil em dezembro de 1995. A circulação do VCAN surgiu em altos níveis e induziu a ciclogênese nos baixos níveis da troposfera. Esse sistema era do tipo úmido, pois se estendeu de 250 hpa até a superfície. Verificou-se que nos dias 23 e 24 esse sistema esteve mais ativo em sua periferia, principalmente nos setores leste e sul, onde ocorreu precipitações intensas, como por exemplo, 254,1 mm em Camaquã e 411,9 mm em Florianópolis. A advecção de ar quente vinda da região tropical para o sul do Brasil e a convergência de umidade proveniente do Oceano Atlântico Sul contribuíram para o desenvolvimento e a intensificação da atividade convectiva na periferia do VCAN. ABSTRACT - This preliminary analysis shows that a upper level cyclonic vortex favored the occurrence of great flood in the south of Brazil in December of 1995. The upper level cyclonic vortex circulation appeared in high levels and induced the cyclogenesis in the low levels of the troposphere. This was a system of humid type, because it was extended from 250 hpa until the surface. We verified that in 23 and 24 of December this system was more active in its periphery, mainly in the east and south sectors, where occurred intense rain, as for example, 254.1 mm in Camaquã and 411,9 mm in Florianópolis. The warm air advection coming from the tropical region to the south region of Brazil and the convergence of humidity from South Atlantic Ocean contribute for the development and intensification of the convective activity at the upper level cyclonic vortex periphery. Palavras-chave: Enchentes; VCAN; Ciclogênese; INTRODUÇÃO Nos dias 23 e 24 do mês de dezembro de 1995, um Vórtice Ciclônico em Altos Níveis (VCAN) localizado sobre a Região Sul do Brasil favoreceu a ocorrência de chuva intensa tanto no Rio Grande do Sul (RS) como em Santa Catarina (SC). Nesses dias, a ocorrência de chuva intensa e constante arrasou a região da Grande Florianópolis, Sul de SC e leste do RS. Segundo o Diário Catarinense ocorreram 28 mortes e 18 desaparecimentos em SC, devido a esse evento (Pellerin, 2006). Nesse evento destaca-se o registro de 411,9 mm em Florianópolis, o qual ocorreu no dia 24 (climanálise, 1995). No RS, a chuva intensa também provocou enchentes e mortes no leste do estado, além de interrupções em rodovias. Segundo o 8 Distrito de Meteorologia do Instituto 1 Bolsista do Programa de Educação Tutorial (MEC/SESU) Grupo PET-Meteorologia. Universidade Federal de Pelotas UFPEL. Campus Universitário Capão do Leão. Caixa Postal 354, CEP 96010-900. Pelotas, RS. e-mail: g.reinke@gmail.com ² Ms. Meteorologista do Instituto Nacional de Meteorologia INMET, Eixo Monumental Via S1 Sudoeste CEP 70680-900, Brasília DF, Fone: (61) 3344-0500, Fax: (61) 3343-1619, e-mails: ricardo.reinke@inmet.gov.br e carina.padilha@inmet.gov.br
Nacional de Meteorologia (INMET), no dia 23 verificou-se um total de 254,1 mm em Camaquã, leste do RS. O VCAN é definido como sendo um sistema de baixa pressão atmosférica formado na alta troposfera, cuja escala é sinótica e sua circulação ciclônica fechada possui o centro mais frio que sua periferia (Gan e Kousky, 1982). Na literatura esse sistema também é conhecido como Baixa Fria, Baixa Desprendida, Baixa de Palmém, Ciclone Kona, etc. Os VCANs do tipo Palmém - aqueles de origem subtropical - formam-se em qualquer época do ano e geralmente desenvolvem-se sobre o Oceano Pacífico Sul. Muitas vezes, ao cruzarem os Andes, esses sistemas provocam chuva e ventos fortes e, dependendo da intensidade e permanência, causam sérios problemas locais e regionais no Uruguai, Argentina, Paraguai e Região Sul do Brasil. Quando um VCAN - oriundo do Oceano Pacífico Sul - penetra sobre o continente sulamericano, normalmente ocorre instabilidade atmosférica e precipitações nos setores leste e nordeste desse vórtice (Gan e Kousky, 1982). Esse sistema caracteriza-se por um movimento descendente de ar frio e seco no seu centro e um movimento ascendente de ar quente e úmido na sua periferia, ou seja, apresenta uma circulação termicamente direta. Isso ocasiona a transformação de energia potencial em energia cinética (Frank, 1970). Os VCANs que atingem os níveis baixos da troposfera possuem bastante nebulosidade, por isso, também são chamados de vórtices úmidos. A intensificação de um VCAN ocorre devido à conversão de energia potencial disponível em energia cinética, por meio da liberação de calor latente ao longo da periferia. Por outro lado, a desintensificação é causada pela destruição de energia cinética (Carlson, 1967). Nos continentes, a dissipação ocorre por causa do aquecimento por calor sensível da superfície e ao calor latente liberado pelas núvens do tipo Cumulunimbus, situadas perto do centro da baixa fria (Kousky e Gan, 1981). O objetivo deste trabalho é realizar uma analise sinótica preliminar sobre as causas das intensas precipitações ocorridas no Sul do Brasil em 23 e 24 de dezembro de 1995, as quais ocasionaram grandes enchentes principalmente no leste do RS e de SC. DADOS E METODOLOGIA Para a elaboração dos campos de vento, geopotencial, pressão ao nível médio do mar e umidade relativa do ar foram utilizadas as reanálises do National Centers for Research/Environmental Prediction (NCEP). Além disso, as imagens do satélite METEOSAT-5 no canal espectral infravermelho foram analisadas entre os dias 21 a 24 de dezembro de 1995.
RESULTADOS As Figuras 1 e 2 mostram os campos de linha de corrente e magnitude do vento em 250 hpa e 850 hpa, respectivamente. Destaca-se no dia 21 (Figura 1a), a presença de um cavado em altos níveis sobre a Argentina. Já no dia seguinte nota-se que há uma ruptura nesse cavado e conseqüentemente a formação de um VCAN sobre o nordeste da Argentina (Figura 1b). As Figuras 1c e 1d mostram que nos dias 23 e 24, respectivamente, esse sistema se intensifica e se desloca para o sul do Paraguai. A formação desse VCAN ocorre devido a diferença na velocidade zonal do escoamento do ar entre as latitudes médias e baixas. O cavado frio em 250 hpa ao penetrar em latitudes subtropicais no dia 21 sofre um desprendimento no setor norte, devido ao escoamento do ar sobre a América do Sul apresentar-se praticamente estacionário, enquanto que em latitudes médias o escoamento estava relativamente rápido. Isso pode ser observado pela rápida propagação da corrente de jato em altos níveis (ver Figura 1). Além disso, entre os dias 22 e 24 destaca-se a presença de uma crista, associada a Alta da Bolívia que está a norte de 10 S, que se estende até a costa da Região Sul do Brasil. Essa configuração em altos níveis deve-se a advecção de ar quente em baixos níveis da região tropical do Brasil para o sul do país. (figura não mostrada). A Figura 2a mostra que no dia 21 há sobre a Região Sul do Brasil um escoamento do ar vindo de noroeste. Esse escoamento apresenta um núcleo de velocidade máxima acima de 18 m/s, caracterizando assim, um Jato de Baixo de Níveis (JBN). Esse JBN tem sua origem na região amazônica, proporcionando advecção de ar quente e úmido para o Sul do Brasil (figura não mostrada). Esse mecanismo é fundamental para o desenvolvimento e intensificação do VCAN. A partir do dia 22 observa-se que esse VCAN se estende até baixos níveis, pois há uma ciclogênese sobre o Uruguai (ver Figura 2b e 4b). Essa circulação ciclônica surge em resposta ao vórtice em altos níveis, o que mostra a extensão vertical do sistema. Os campos de geopotencial em 500 hpa e de pressão ao nível médio do mar, Figuras 3b e 4b respectivamente, permitem verificar que o VCAN se estende de 250 hpa até o nível médio do mar, e também, que está praticamente barotrópico sobre a fronteira do Uruguai e da Argentina. Segundo Palmer (1951), a circulação dos VCANs surge inicialmente nas partes mais altas da Troposfera, estendendo-se gradualmente para baixo. No entanto, a maioria dos VCANs está confinada acima de 500 hpa, pois cerca de 60% não atinge o nível de 700 hpa e apenas 10% se estende até a superfície (Frank, 1966). No dia 23, o VCAN apresenta-se barotrópico, pois o centro do sistema localiza-se sobre o extremo oeste do RS em toda a coluna troposférica (Ver Figuras 1c, 2c, 3c e 4c). Nota-se que nesse dia, o escoamento do ar em 850 hpa continua sendo de noroeste, porém está deslocado mais para o norte da Região Sul do Brasil e se estende até o Oceano Atlântico Sul, convergindo no leste do RS (Figura 2c). Essa configuração contribui para a intensificação do VCAN, pois há um maior
transporte de umidade do oceano para o continente, e isso, associada a advecção de calor favorece a alimentação e o desenvolvimento das núvens do tipo Cumulunimbus na periferia do VCAN. No dia seguinte, o VCAN permanece barotrópico e sofre uma intensificação. Essa intensificação pode ser vista tanto nos campos de linha de corrente (Figuras 1d e 2d) como no campo de pressão (Figura 4d). Nesse dia observa-se em 850 hpa, um aumento na intensidade do vento vindo do oceano para a Região Sul do Brasil. A Figura 2d mostra um núcleo de velocidade máxima em 850 hpa entre 12 e 15 m/s sobre a costa leste do RS, e isso ocorre devido ao intenso gradiente de pressão sobre a costa (Figura 4d). Esse fluxo do ar vindo do oceano pode ser um dos fatores que favorecem a intensificação do VCAN no dia 24. A partir do campo de umidade relativa do ar em 850 hpa (Figura 5a) verifica-se que o leste da Região Sul do Brasil apresenta os maiores valores de umidade da região, acima de 85%. Além disso, nota-se que na periferia do VCAN estão os maiores valores de umidade, enquanto que, no centro desse sistema está mais seco (compare as Figuras 1d, 2d, 3d, 4d e 5a). Isso pode ser visto melhor por meio de um corte vertical em 30 S (Figura 5b). Nota-se que na periferia do VCAN (entre 53 W e 45 W), praticamente toda a coluna troposférica apresenta-se úmida, enquanto que, em seu centro (entre 58 W e 55 W) está relativamente seco. A Figura 6 mostra as imagens do satélite Meteosat-5, no canal infravermelho, entre os dias 21 e 24 de dezembro de 1995. Pode-se observar que entre o dia 21 (Figura 6a) e o dia 22 (Figura 6b) há uma intensificação da nebulosidade no norte da Argentina, Bolívia, Paraguai e Região Sul do Brasil. Nota-se também que essa nebulosidade apresenta uma circulação ciclônica sobre o norte da Argentina e sul do Brasil, a qual está associada ao VCAN. No dia 23, o centro do VCAN localiza-se entre o sul do Paraguai e o oeste do RS, apresentando maior atividade convectiva nos seus setores leste e sul, a saber, leste da Região Sul do Brasil e Uruguai (Figura 6c). No dia seguinte, a nebulosidade localizada na periferia leste e sul do VCAN intensifica (Figura 6d), sendo a região do sistema com maior atividade convectiva. a) b) c) d) Figura 1. Linha de corrente e magnitude do vento (m/s) em 250 hpa para às 12 UTC do dia: a) 21.12.95; b) 22.12.95; c) 23.12.95; d) 24.12.95;
a) b) c) d) Figura 2. Linha de corrente e magnitude do vento (m/s) em 850 hpa para às 12 UTC do dia: a) 21.12.95; b) 22.12.95; c) 23.12.95; d) 24.12.95; a) b) c) d) Figura 3. Altura geopotencial (mgp) em 500 hpa para às 12 UTC do dia: a) 21.12.95; b) 22.12.95; c) 23.12.95; d) 24.12.95; a) b) c) d) Figura 4. Pressão ao nível médio do mar (hpa) para às 12 UTC do dia: a) 21.12.95; b) 22.12.95; c) 23.12.95; d) 24.12.95; a) b) Figura 5. Umidade relativa do ar (%) para às 12 UTC do dia 24.12.95: a) em 850 hpa; b) corte zonal em 30 S.
Figura 6. Imagens do satélite METEOSAT-5 no canal espectral infravermelho às: a) às 18 UTC do dia 21 de dezembro de 1995; b) às 06 UTC do dia 22 de dezembro de 1995; c) às 12 UTC do dia 23 de dezembro de 1995; d) às 06 UTC do dia 24 de dezembro de 1995; CONCLUSÃO A partir de uma análise preliminar observou-se que um VCAN foi o responsável pelas grandes enchentes ocorridas no leste da Região Sul do Brasil em dezembro de 1995 (Figura 7). No dia 22 ocorreu a formação de um VCAN sobre nordeste da Argentina, o qual atuou sobre a Região Sul do Brasil por um período de 3 dias. Esse VCAN pode ser considerado do tipo úmido, pois atinge os níveis baixos da Troposfera e possue bastante nebulosidade em sua periferia, principalmente nos setores leste e sul. Além disso, em baixos níveis verificou-se um escoamento do ar vindo da região tropical do continente sulamericano, o qual proporcionou advecção de ar quente e úmido para a Região Sul do Brasil. Nos dias 23 e 24, o VCAN apresentou-se barotrópico desde 250 hpa até a superfície, centrado sobre o oeste do RS. Também verificou-se nesses dias que o ar quente vindo da região tropical do Brasil foi alimentado pela umidade do oceano, vindo a convergir sobre a Região Sul do Brasil. Essa configuração atmosférica foi importante para a intensificação da nebulosidade no setor leste e sul do VCAN nos dias 23 e 24, contribuindo assim, para as enchentes no leste de SC e do RS. A partir dessa breve análise, buscar-se-á um entendimento mais aprofundado sobre os fatores que contribuíram para a intensificação desse VCAN, o qual foi o principal responsável pelos totais
mensais de precipitação acima da média no leste de SC e do RS, com registros diários de 254,1 mm em Camaquã/RS e de 411,9 mm em Florianópolis/SC. a) b) Figura 7. Enchentes ocorridas entre os dias 23 e 24 de dezembro de 1995 em: (a) Camaquã/RS e (b) Araranguá/SC. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Carlson, T. N. 1967. Structure of a Steady-State Cold Low. Mon. Wea. Ver., 95(11):763-777. Climanálise. dez. 1995. Disponível em: < http://www.cptec.inpe.br/products/climanalise/1295/ aspec_sinoticos.html > Frank, N.L., 1966. The weather distribution with upper tropospheric cold lows in the tropics. U. S. Weather Bureau, Southern Region, out. (Technical Memorandum n 28). Frank, N.L., 1970. On the energetics of cold lows. Proceendings of the Symposium on Tropical Meteorology, American Meteorological Society, EIV I-EIV 6, Jun. Gan, M.A; Kousky, V.E, 1982. Estudo observacional sobre as baixas frias da alta troposfera nas latitudes subtropicais do Atlântico Sul e Leste do Brasil. São José dos Campos, INPE. (INPE -2579- PRE/227). Palmer, C. E. 1951. On high-level cyclones originating in the tropics. Transactions of American Geophysics Union, 32(5):683-965, out. Pellerin, jun. 2006. Disponível em: <www.labhidro.ufsc.br/eventos/dia%20da%20agua/ DIAGNOSTICO_ GEOMORFOLOGICO.pdf > Kousky, V.E.; Gan, M.A. 1981. Upper tropospheric cyclonic vortices in the tropical South Atlantic. Tellus, 36(6):538-551, Dec.