A sociologia, a escola e as questões do género 1

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Transcrição:

A sociologia, a escola e as questões do género 1 Ana Nunes de Almeida 2 Gostaria de vos apresentar uma reflexão provocatória sobre a disparidade e distância entre os indicadores de sucesso escolar de rapazes e raparigas na escola portuguesa actual o que, não sendo um traço peculiar do nosso País, assume aqui contornos talvez mais vincados do que em muitas outras realidades da União Europeia. O meu objectivo é trazer a condição de género para o centro do debate sobre a escola inclusiva, quase sempre estruturado em torno das questões dos desfavores de classe ou de pertença étnica. Contudo, e na medida em que, diferentes, todos os jovens devem ser igualmente acolhidos pela escola, que dizer do tão actual, evidente e regular padrão de desigualdade na distribuição do sucesso académico entre rapazes e raparigas? Os seus contornos vincados, a contrariar qualquer acaso, não podem deixar de perturbar, em sociedades democráticas, o olhar dos profissionais da intervenção ou da investigação... Confesso que esta comunicação é assim inspirada num duplo papel que desempenho. O de socióloga, investigadora universitária, particularmente interessada pelas questões da família e do género, fascinada com as mudanças que têm atravessado a sociedade portuguesa nas últimas 3 décadas. Mas, também, o de mãe atenta de duas raparigas e um rapaz, todos alunos de escolas públicas, cada um deles actualmente num dos graus do sistema de ensino português (, secundário e superior). Mas é o exemplo do mais velho que me serve de inspiração para arrancar... Com 18 anos, ele é hoje aluno do 1º ano da licenciatura de Engenharia Informática do Instituto Superior Técnico. Concluindo o 12º ano numa turma A do 1º agrupamento, no ano lectivo 2000/2001, a sua experiência da sala de aula, no secundário, tal como no-la contava, em casa, foi particularmente sugestiva... A sua turma encontrava-se, desde o 10º ano, fortemente dividida em 2 blocos. Esta fissura era, de resto, fonte de preocupação para a directora de turma que procurou de várias maneiras, todas elas infrutíferas, ultrapassá-la 3. De um lado as raparigas, maioritárias, muito aplicadas e disciplinadas, exibindo um excelente comportamento, invariavelmente marronas por exemplo, estudavam no último dia de aulas, durante as férias e os períodos intercalares. Tinham vocações na área da saúde e da psicologia, algumas eram excelentes alunas 4 mas também, claro, eram indecentemente protegidas e amparadas pelas professoras 5. Do outro lado da barricada... encontravam-se os rapazes, em minoria, irreverentes e barulhentos, fanáticos de jogos de estratégia e de computador, menos aplicados ou estudiosos, em média com piores notas e piores resultados (excepto a Educação Física 6 ), sistematicamente repreendidos pelas professoras, com vocações para as tecnologias e as engenharias. Os prémios de excelência atribuídos no final do ano viriam a ilustrar o fosso: 6 raparigas e apenas 2 rapazes conseguiram a distinção...esta dicotomia, tantas vezes descrita e exemplificada em casa, pela voz do meu filho-rapaz, deu-me que pensar... Uma primeira constatação que podemos fazer tem a ver com a impressionante viragem que se deu neste domínio no Ocidente europeu e num curtíssimo espaço de tempo. Nos anos 60, a sociologia da educação constitui-se tendo como pano de fundo teórico as questões das desigualdades sociais de acesso à educação, as do papel da instituição-escola como reprodutora ou transformadora da hierarquia social, da estrutura dos lugares desiguais de classe. Neste cenário, à questão do sexo do aluno não era atribuída uma importância de primeira grandeza quando muito 1 Tendo em conta a natureza desta publicação, o texto que agora se apresenta mantém, propositadamente, a marca da origem e conserva o tom coloquial. A sua função, no Encontro, era aliás a de abrir polemicamente o debate em torno de uma das dimensões (muitas vezes ignorada) da realidade da exclusão na escola. 2 Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa. 3 Introduzir um sistema de quotas nos turnos e grupos das aulas de laboratório foi uma delas...a violenta reacção das mães das raparigas (que se mobilizaram em bloco numa reunião de pais...) contra esta medida, alegando que os rapazes perturbavam o trabalho das raparigas (e com isso as notas iam baixar), impediu que fosse posta em prática! 4 Batendo um verdadeiro record, duas delas nesse ano entraram em Medicina, outras duas em Medicina Dentária. 5 Haveria alguma verdade neste juízo masculino: no caso desta turma, a diferença entre a CE (classificação de exame) e a CIF (classificação interna final) foi sistematicamente maior no caso delas que no caso deles. 6 Onde elas, mesmo assim, eram muito benevolamente avaliadas... 14

(facto que de resto se confirmava empiricamente) era visto como um factor cumulativo: a um desfavor de classe juntava-se a da pertença à condição de género feminino. Ora a situação que se vivia em Portugal durante a Ditadura era particularmente sugestiva a respeito de desigualdades... A discriminação que pesava sobre as classes populares e as mulheres (comparativamente às classes favorecidas e aos homens) no acesso à escola eram flagrantes. Quadro nº 1. População total, segundo o nível de instrução, por sexos - 1970 (%) Níveis de instrução H M HM Não sabe ler, nem escrever 29,0 37,0 33,6 Sabe ler, escrever, sem grau ensino 4,5 4,4 4,4 Ensino primário 54,9 50,3 52,5 Ensino secundário 9,1 6,7 7,8 Curso médio (com., ind.) 0,24 0,06 0,14 Curso superior 1,9 1,0 1,4 Fonte: XI Recenseamento Geral da População, 1970 No Quadro nº 1 encontramos um retrato da população portuguesa em 1970, segundo o seu nível de instrução, por sexos. Num panorama nacional verdadeiramente confrangedor (note-se que apenas uma estreitíssima franja de população, abaixo dos 10%, possui um nível de escolaridade superior ao ensino primário!), a distância entre homens e mulheres perante a escola era mesmo assim expressiva: 37% das mulheres (contra 29% dos homens) são analfabetas; cerca de 8% de mulheres venceu a barreira da escola primária (contra 11% de homens). Por outro lado, e nos níveis superiores de ensino, vale a pena consultarmos a informação contida no Quadro nº 2: as raparigas constituem, em 1970/71, cerca de 44% do total de alunos matriculados na Universidade, e representam apenas 1/3 dos alunos que nela concluem uma licenciatura. Quadro nº 2. Ensino superior público e particular: alunas e taxas de feminização (%) Portugal Ano lectivo Percentagem total de matrículas Percentagem total de conclusões 1960-1961 29.1 24.5 1970-1971 44.4 33.5 1980-1981 45.0 50.0 1990-1991 55.5 65.7 Fonte: A. Barreto e C. Valadas Preto. A Situação Social em Portugal, 1960-1995. Lisboa: ICS, 1996, p.93 Trinta anos mais tarde, e após o impulso decisivo que a Revolução dá à democratização e massificação do sistema de ensino, constata-se uma inesperada reviravolta. As raparigas entram em força (e com sucesso) em todos os patamares académicos. Ora, curiosamente, este movimento social parece ter acontecido à margem ou mesmo dispensando políticas educativas especificamente dirigidas para a atenuação da desigualdade entre os sexos no campo escolar contrastando com o que sucedeu, por exemplo, com a preocupação recorrente e meritória dos sucessivos governos em promover a generalização do acesso à escola às classes que tradicionalmente lhe fugiam, em contrariar o abandono escolar precoce dos alunos provenientes de famílias socialmente menos favorecidas. 15

O contraste com o passado é portanto hoje muito vincado e esta mudança não só não deve passar despercebida aos que nela ou para ela directamente desenvolvem a sua actividade profissional (educadores, professores, animadores culturais, decisores políticos), como não pode deixar de interpelar a imaginação sociológica... Quadro nº 3. Nível escolar da população portuguesa com 15 e mais anos, 1997 (%) Graus instrução de H M HM Taxa de feminização Nenhum 12,9 24,5 19,0 68,1 1º ciclo ensino 2º ciclo ensino 3º ciclo ensino 36,4 32,2 34,1 49,7 15,6 11,0 13,2 44,0 16,4 13,1 14,7 47,3 Secundário 11,3 10,7 11,0 51,3 Médio politécnico 1,7 3,4 2,6 68,8 Superior 5,1 4,7 4,9 50,9 TOTAL 100,0 100,0 100,0 52,8 Fonte: CIDM, Portugal 97 Situação das Mulheres, Lisboa, CIDM, 1998, p.90 O Quadro nº 3 fornece uma síntese dos níveis escolares da população portuguesa, com idade superior a 15 anos, nos finais dos anos de 1990. Comparemo-lo com o relativo a 1970. O fosso tradicional em favor dos homens apenas se mantém de pé entre as franjas de analfabetos, aliás resultado da maior esperança de vida feminina: cerca de ¼ do total de mulheres não possui qualquer grau de instrução, contra 13% do total de homens. De resto, elas constituem mais de metade da população (51.3%) com o ensino secundário, estão em maioria (69%) no ensino médio e politécnico, em maioria também no superior (51%). Se voltarmos ao Quadro nº 2, constataremos este seu impressionante avanço na Universidade, o qual se consolida à medida que o sistema, através da imposição de numerus clausus, se vai tornando mais meritocrático e selectivo: no ano lectivo de 1990/91, as raparigas constituem 55.5% do total de alunos matriculados e 66% dos alunos que concluem a licenciatura. Em termos de vocações, é também interessante reconhecermos algumas inflexões: depois de uma orientação feminina quase exclusiva para as letras e as humanidades (típica nos 60), o leque diversifica-se significativamente. O predomínio das mulheres acontece em todos os ramos de ensino, mesmo naqueles que dão teoricamente acesso a profissões de poder e prestígio (caso do direito, medicina, economia e gestão). Ressalvam-se algumas excepções: arquitectura e urbanismo, matemática e informática, ciências da engenharia 7. A natureza peculiar destes ramos de ensino universitário não nos deve passar despercebida: alguns autores insistem no paradoxo que existe entre o melhor sucesso global das raparigas e a sua eliminação (ou auto-exclusão) daquelas fileiras de excelência científica. 7 e naturalmente a teologia... 16

Em conclusão, podemos afirmar que as tradicionais barreiras de género tendem a esbater-se e jogam hoje, surpreendentemente, a favor das raparigas. Dito de outra maneira: a escola portuguesa parece ser particularmente inclusiva para as raparigas, silenciosa e discretamente exclusiva para os rapazes. O que poderá explicar este sucesso escolar feminino, do ponto de vista das ciências sociais? Do lado da psicologia, é frequentemente invocado o argumento da maturidade mais precoce no crescimento das raparigas, facto que constituiria uma vantagem significativa sobre os rapazes, em anos de grande exigência e selecção académica; nessa fase decisiva de orientação e preparação da entrada para a universidade, elas estariam já munidas de uma visão adulta da realidade, enquanto os rapazes ainda procuram e constroem a sua. Deixemos, contudo, esta linha de interpretação, para nos colocarmos no terreno dos saberes que são os nossos... A leitura (quase amadora!) que tenho feito da bibliografia sobre o assunto 8 permite-me referir, para já, quatro grandes linhas de interpretação do fenómeno. Uma das primeiras consiste em ver nesta mudança um cruzamento fértil entre a novidade e a tradição, e em procurar contextualizar a sua explicação na confluência do papel de duas importantes instâncias socializadoras, centrais na construção das condições da infância a escola e a família. Segundo esta perspectiva, as raparigas actualizam e aplicam, no campo escolar em abertura democrática, competências tradicionalmente inculcadas ao longo do seu processo de socialização doméstica. Em casa e na família, o apreço e o treino de qualidades como a disciplina, arrumação e organização, obediência, uso limitado do espaço, contenção, capacidade de concentração e de antecipação do comportamento dos outros, fazem parte do pacote socializador feminino o qual se vem a revelar extremamente eficaz (em matéria de sucesso) no interior do sistema de ensino, tanto do ponto de vista do curriculum explícito como, sobretudo, do curriculum implícito. O mesmo não se passa com os rapazes, pelo contrário socializados pelos pais de um modo mais solto e distante, em relação às exigências quotidianas do universo doméstico e, posteriormente, escolar; gozam de uma maior liberdade de gestos e de experiências (fora de casa, fora da escola), neles apreciam-se comportamentos agressivos de competição, confronto e conquista, o domínio da força física, a afirmação do eu e o desafio da autoridade. Estes habitus adquiridos e reproduzidos na cultura de pares, não só afastariam os rapazes do estudo propriamente dito, como seriam negativamente avaliados pela grelha hegemónica dos critérios valorizados pelo actual sistema de ensino. A domesticação das raparigas pelas famílias revela-se, inesperadamente, um trunfo nas suas mãos para conquistar um lugar ao sol na nova ordem que se instala... Um segundo conjunto de argumentos assenta também na consideração da diferença que separa as estratégias familiares de socialização adoptadas para rapazes e para raparigas, nomeadamente no que se refere ao desigual papel que o trabalho (no sentido de emprego) desempenha na construção das identidades de uns e de outras. No que constitui um traço de continuidade com cenários e estereótipos tradicionais, típicos aliás de contextos de pobreza e iliteracia, a pressão instrumental para o trabalho e para a entrada precoce no mercado de emprego exerce-se sobretudo sobre os rapazes e mantém as raparigas-filhas mais duradouramente à margem do imperativo da sobrevivência material do grupo. O que perdem no não reconhecimento da sua efectiva ou potencial capacidade produtiva, ganham as raparigas em espaço, tempo e liberdade para se consagrarem ao estudo e à carreira na escola, numa altura do seu percurso de vida em que (ainda) não possuem responsabilidades familiares. Uma terceira ordem de argumentos faz-nos olhar para o lado de dentro da escola, enquanto organização e lugar ocupados por profissionais da educação. A natureza e qualidade da relação pedagógica, nas suas múltiplas vertentes, joga um papel crucial no sucesso (ou insucesso!) do processo de ensino-aprendizagem e extravasa em muito o estrito domínio académico. Num cenário (como o português) em que a feminização do corpo docente da escola secundária é tão acentuada, a partilha de uma condição de género pode favorecer a criação de um sistema de laços, cumplicidades e empatias implícitos entre professoras e alunas, desenhado segundo uma arquitectura feminina, de que beneficiam (pela compreensão, estímulo e protecção que nele recebem), sobretudo as raparigas. Não há, ao contrário, contrapartida deste casulo para os rapazes remetidos para uma posição de exterioridade face ao núcleo duro, estruturador, da interacção docentes-discentes na escola. 8 Devo dizer que descobri esta questão através de um livro que vi ao acaso numa estante de um aeroporto e cujo título me divertiu... Allez les filles!, de Ch. Baudelot e R. Establet. 17

Um último pacote de factores distingue-se dos anteriores por acentuar o carácter de ruptura que esta mudança traz relativamente a situações do passado. A ideia é a de que na escola de massas se reflectem em ponto pequeno, desde há duas décadas, os efeitos dos movimentos sociais de emancipação das mulheres. Fortemente encorajadas pelas mães (e também pelas professoras), as raparigas apostam na escola e no diploma que ela confere como instrumento de projecção futura e de conquista de poder no espaço público, por um lado, e de mobilidade na estrutura social, por outro. Além disto, é como se jogassem por antecipação e pusessem em prática um realismo social precoce: bem conscientes das barreiras e discriminações que terão de vencer, um dia mais tarde, no mercado de trabalho, procuram agora acumular o máximo de capitais escolares com que se procurarão defender dessas forças adversas. Perante esta nova realidade, que procurei caracterizar em pinceladas largas e muito gerais (propositadamente excessivas...), a investigação em sociologia dispõe de um aliciante campo de trabalho. As pistas deixadas em aberto são muitas e sugerem distintas abordagens. Lembro algumas... Numa perspectiva macro, a realização de levantamentos sistemáticos sobre a questão do sucesso escolar das raparigas no ensino secundário (com base em resultados da avaliação contínua das escolas, dos exames nacionais às diferentes disciplinas, comparando uns e outros, ao longo de vários anos), nas diferentes regiões do País, partindo dos indicadores estatísticos oficiais disponíveis. Na mesma óptica macro-social, e trabalhando com amostras (representativas ou qualitativas) de população escolar, caracterizar, distinguir e explicar a relação cruzada (de substituição? acumulação?) entre o efeito da pertença de classe e da condição de género do aluno na qualidade do seu percurso escolar; A realização de estudos de caso e em profundidade, qualitativos, de contingentes de alunos/alunas (de certas escolas, agrupamentos disciplinares ou turmas), com o objectivo de perceber, por dentro, estratégias e percursos de socialização (familiar e escolar), dando um realce particular à voz e ao ponto de vista dos jovens actores envolvidos nesses processos. Pensando agora na escola e na educação como campo de intervenção dos profissionais da acção (por exemplo dos nossos colegas professores do secundário), gostaria de relançar o debate com 3 perguntas: Como encaram, no pano de fundo da escola inclusiva, esta desigualdade de género que parece penalizar os rapazes? Consideram-na, ou não, um problema a merecer atenção de quem decide e intervém, de quem ensina e aprende? Como a representam, explicam e interpretam? Que estratégias podem desenhar para a combater? Bibliografia ALMEIDA, A. Nunes de e WALL, K. Família e quotidiano: movimentos e sinais de mudança in J. M. Brandão de Brito (coord.). O País em Revolução. Lisboa: Editorial Notícias, 2001, p.277-308. BARRETO, António (org.). A Situação Social em Portugal, 1960-1995. Lisboa: ICS, 1996. BAUDELOT, Ch. e ESTABLET, R. Allez les filles!. Paris: Seuil, 1992. CIDM. Portugal 97 Situação das Mulheres. Lisboa: CIDM, 1998. DURU-BELLAT, M., KIEFFER, A. e MARRY, C. La dynamique des scolarités des filles: le double handicap questionné. Revue Française de Sociologie, (42-2), 2001, p.251-280. FERRÃO, J. (coord.), ALMEIDA, Ana Nunes de, et. al. Saída prematura do sistema educativo: aspectos da situação, causas e perspectivas em termos de emprego e formação. Lisboa: Observatório do Emprego e Formação Profissional, 2001. 18