Rachel de Queiroz: em busca da liberdade Elódia Xavier 1

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Transcrição:

Elódia Xavier 1 Partindo da oposição casa versus rua que, segundo Roberto DaMatta, se constitui numa oposição básica da realidade social brasileira sobretudo em se tratando de campos simbólicos, a obra de Rachel de Queiroz se apresenta com um traço marcante: suas personagens femininas transitam da casa para a rua. A narrativa de autoria feminina, e aqui nos referimos a contos e romances, desde seus primórdios, estabeleceu uma descontinuidade entre o privado e o público, com a mulher enredada no contexto familiar, enquanto o homem exerce suas funções de provedor e protetor. Sabe-se que com Clarice Lispector, na década de quarenta, essas relações de gênero são questionadas, surgindo, então, uma literatura de autoria feminina mais agressiva e transgressora. Porém, Rachel de Queiroz, na década de 30, mais precisamente com O quinze, constrói um romance em que a personagem feminina, Conceição, já rompe com o famoso destino de mulher, só evidenciado por Simone de Beauvoir, em 1949. A protagonista não se enquadra nas práticas sociais vigentes, porque não aceita o casamento como destino inevitável. Embora, em seu meio, mulher solteira seja considerada um aleijão, prefere se conservar só, apesar da atração física que sente por 1 Professora de Literatura Brasileira com pós-doutorado em Psicologia Social pela USP. Vem, sistematicamente, trabalhando com narrativas de autoria feminina com vários textos publicados nessa linha de pesquisa, com destaque especial para os livros: Declínio do patriarcado: a família no imaginário feminino (Record, 1998) e Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino (Ed. Mulheres, 2007).

Vicente, rapaz sem instrução. Diz o narrador: Pensou que, mesmo o encanto poderoso que a sadia fortaleza dele exercia nela, não preencheria a tremenda largura que os separava. (p. 51). Sua formação cultural ela é professora e leitora contumaz é responsável por essa atitude, que será, de uma forma ou de outra, seguida pelas demais personagens de Rachel. Conceição, decidindo manter-se solteira, não tem sua própria casa, pois mora com as Rodrigues. Dividida entre a problemática dos retirantes e seus conflitos interiores, ela inaugura o perfil de uma personagem feminina transgressora. Tenho certeza de que nasci para viver só... (p.96), diz ela. Noemi, de Caminho de pedras (1937), segue a mesma trajetória. Aqui, a militância política constitui o fundamento da trama, mas as questões de ordem pessoal e afetiva se sobrepõem à luta revolucionária, impregnando liricamente a narrativa. É um livro triste e amargo, em que o desencanto supera sonhos e ideais. O amor adúltero de Noemi e Roberto deixa um rastro de dor e destruição, como se o desvio da norma determinasse a punição dos culpados. Em As três Marias (1939), o esmagamento da protagonista ainda é mais contundente. No percurso de Guta, Maria Augusta, a busca de uma identidade não comprometida com os valores vigentes se dá através de um doloroso processo de desilusão, que acaba não conduzindo a parte alguma. Esse romance aprofunda o sentimento de vazio, amargura e desencanto que caracteriza essa etapa da ficção de Rachel. Guta, Glória e Maria José, lado a lado, compõem a tríade que dá nome ao romance. No microcosmo do internato, onde elas se conhecem, estão representados vários aspectos da condição feminina, como a repressão sexual e a falta de perspectivas existenciais. Sonhando com vidas aventurosas e grandes paixões, as personagens, ao tomarem contato com a realidade, defrontamse com a monotonia e a estreiteza do casamento burguês, como o destino de mulher. Fora disso, a vida monástica ou a prostituição. Glória, Maria José e Guta representam, respectivamente, esses três caminhos. A recusa de Guta ao padrão doméstico revela-se logo que sai do internato. O lar se lhe afigura aborrecido, monótono e intruso. Não lhe agrada o treinamento para ser boa esposa chocadeira e criadeira. O ideal é viver sozinha, viver de mim, viver por mim, livrar-me da família, livrar-me das raízes, ser só, ser livre (p. 43). É claro que isso não lhe traz realização. Depois de dolorosas experiências, o único caminho para Guta é a volta para a casa do pai, desencantada e desiludida. Dôra, Doralina (1975) representa uma evolução, sob esse aspecto. Aqui se o universo da casa é marcado pela hierarquia a mãe, uma 58

espécie de matriarca, sempre é identificada como Senhora, o universo da rua é ambíguo, sem limites rígidos entre a ordem e a desordem. O espaço social se apresenta livre de qualquer marcação hierárquica, leve, tolerante, chegando a beirar a anarquia sob alguns aspectos. Obra de cunho memorialista, como As três Marias, a narrativa se estrutura a partir das lembranças da protagonista narradora. Da mesma forma que Guta, Doralina busca a construção de uma identidade independente, através da ruptura com o ambiente de origem a casa. Mas, se ao final de As três Marias Guta retorna triste e desiludida, Doralina, ao contrário, regressando à fazenda Soledade, cumpre a trajetória de um ciclo, ao assumir o lugar da mãe morta. O retorno de Doralina não tem, portanto, a mesma conotação de fracasso. Para ela, a rua não foi fonte de desilusão, mas de vida e de crescimento, ao contrário da casa materna esta sim vinculada à dor e ao desengano. Sua experiência como membro da companhia de teatro ambulante, sua vida em comum com o Comandante representam vivências positivas que, de certa forma, preparam a protagonista para aceitar a volta às origens. Por isso o romance termina com uma imagem de vida e renovação o sol do meio-dia e o nascimento de uma bezerra, remetendo diretamente ao movimento cíclico da existência, em que morte e nascimento se alternam, integrando o homem à eternidade. Dividida em três partes, a narrativa opõe o mundo estático e hierarquizado da casa ( O livro de Senhora ) ao ambiente fluido e ambíguo da rua ( O livro da Companhia ), que constitui a segunda parte, para finalizar com O livro do Comandante, espaço da emancipação e da maturidade afetiva. Com a morte do Comandante, a protagonista retorna à Soledade, agora madura para a aceitação do ciclo vital. O universo ficcional de Dôra, Doralina, com sua ausência de fronteiras rígidas entre ordem e desordem, anuncia, sob certo aspecto, o mundo representado no Memorial de Maria Moura (1992). Aqui, as rupturas são levadas às últimas consequências. Também de natureza memorialista, mas com maior complexidade do ponto de vista do foco narrativo, a protagonista narradora conta como saiu de casa, botando fogo na propriedade, numa forma ostensiva de ruptura com a opressão do passado. Assumindo os padrões comportamentais masculinos, corta o cabelo, modifica seu visual e dá início a uma existência de aventuras, de marginalidade e de crimes. Dessa forma, Maria Moura recusa o destino imposto à mulher pela sociedade e representado por Marinalva, sua prima, que traz no nome a pureza ideal. Essa personagem, enquanto solteira, foi prisioneira dos irmãos e, depois de casada se submete ao marido, trainée de atirador de facas... 59

Maria Moura, ao abandonar a casa incendiada por ela, realiza o sonho de conhecer o mundo, recusando a prisão/proteção da casa: O mundo lá fora era grande e eu não conhecia nada para além das extremas do nosso sítio. E tinha loucura por conhecer esse mundo. Quando menina ainda, saía pela mata com os moleques, matando passarinho de baladeira, pescando piaba no açudinho, usando como puçá o pano da saia. Mas, depois de moça, a gente fica presa dentro das quatro paredes de casa. (p. 62) Depois de um longo e perigoso percurso, chefiando um bando cada vez maior de marginais e transgressores, Maria Moura chega à sesmaria de Fidalga Brites, na Serra dos Padres. Essas terras, produto de uma herança perdida no tempo, têm enorme importância, representando a sedimentação do poder conquistado a duras penas. Na obra de Rachel, a terra, em oposição à fluidez líquida, está sempre ligada ao lado sólido e prosaico da vida, enquanto a água se faz presente nos momentos de maior lirismo. Vale lembrar que tanto Guta como Doralina, ao final das narrativas, voltam para suas terras; aquela tem seus momentos de plena realização amorosa no Rio de Janeiro, na então deserta praia do Leblon, e esta passa a primeira noite de amor com o Comandante, a bordo de um navio, no rio São Francisco. Na Serra dos Padres, Maria Moura manda construir a Casa Forte e aí se estabelece como dona absoluta, cujo poder é enfaticamente reconhecido por todos. A Dona Moura que dá coito às pessoas perseguidas; e não tem homem, nessa ribeira toda, que se atreva a vir atrás de alguém que esteja debaixo de sua proteção (p. 388). Mas a conquista do poder não a satisfaz plenamente. Simone de Beauvoir, em O segundo sexo, já havia apontado para o grande conflito da mulher liberada: 60 O privilégio que o homem detém, e que se faz sentir desde sua infância, está em que sua vocação de ser humano não contraria seu destino de homem. Da assimilação do falo e da transcendência, resulta que seus êxitos sociais ou espirituais lhe dão um prestígio viril. Ele não se divide. Ao passo que à mulher, para que realize sua feminilidade, pede-se que se faça objeto e presa, isto é, que renuncie a suas reivindicações de sujeito soberano. É esse conflito que caracteriza singularmente a situação da mulher libertada. (p. 452, v.2)

Maria Moura, ao se apaixonar por Cirino, põe em risco o poder conquistado e, como seu lema, desde o início, foi ou é ele, ou sou eu, depois de uma dolorosa luta interior, manda matá-lo. A autora, nessa passagem, se esmera apresentando o confronto de duas forças violentas: o amor por Cirino, que fragiliza a protagonista Custei a acertar com o buraco da chave. E os dedos trêmulos não tinham força para movimentar a mola forte da fechadura (p. 458), e seu desejo de vingança por se sentir traída e ameaçada por Cirino: Eu consegui olhar bem dentro dos olhos dele, com a garrucha ainda colada ao corpo, para me dar firmeza à mão trêmula. (p. 459). A garrucha, símbolo fálico, lhe dá a firmeza necessária para superar sua carência afetiva e realizar o projeto de morte. Segundo a autora, o romance foi inspirado na vida de S.M. Elizabeth I, rainha da Inglaterra (1533-1603), que mandou executar o conde Essex, seu favorito, tendo descoberto, entre os excessos cometidos na luta pelo poder, a tentativa de golpe contra ela. Distantes no tempo e no espaço, a rainha da Inglaterra e Dona Moura vivem o drama da condição feminina, sem poder conciliar realização pessoal e vida afetiva. Por isso, diz a protagonista, consciente de sua incompletude existencial: De novo me vejo naquela situação que começou com a morte de Liberato; ou é ele, ou sou eu (p. 421). Gaston Bachelard, em A poética do espaço, estuda o problema da imagem da casa, na poesia. Segundo ele, com a imagem da casa temos um verdadeiro princípio de integração psicológica (p. 20). A casa é como se fosse a topografia do nosso ser íntimo. Até aí, concordamos com Bachelard, pois, ao estudarmos a imagem da casa em textos de autoria feminina, verificamos como essa topografia é reveladora de traumas resultantes de um passado entre quatro paredes... O confronto entre o que diz Bachelard, a propósito da imagem da casa nos textos de poetas de língua inglesa, e a mesma imagem na literatura de autoria feminina, vai nos mostrar como as questões de gênero se fazem evidentes. Diz o autor: No presente livro, nosso campo de exame tem a vantagem de ser bem definido. Isso porque pretendemos examinar imagens bem simples, as imagens do espaço feliz. Nessa perspectiva, nossas investigações mereceriam o nome de topofilia. Visam determinar o valor humano dos espaços de posse, dos espaços defendidos contra forças adversas, dos espaços amados. Por razões não raro muito diversas e com as diferenças que as nuanças poéticas comportam, são espaços louvados. (sic, p.19) 61

Antes de entrar na análise dos textos poéticos, Bachelard nos fala sobre o valor da casa na vida do homem : Na vida do homem, a casa afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser jogado no mundo, como professam as metafísicas apressadas, o homem é colocado no berço da casa. (p. 26) Retomemos a relação das personagens femininas de Rachel com suas casas. Vimos que, em O quinze, Conceição não tem casa e, como mulher sozinha, mora com as Rodrigues. Ela se destaca do contexto sertanejo da época, como moça dinâmica que anda sozinha pelas ruas (o que é criticado por Vicente), faz trabalho voluntário ajudando os flagelados da seca, é professora e leitora de textos ideologicamente avançados. Uma feminista? De qualquer forma, ela não se enquadra no padrão conservador e, mais importante do que tudo, renega o destino de mulher, seguido por suas primas. Por isso diz à avó, justificando seus projetos de vida: Mãe Nácia, quando a gente renuncia a certas obrigações, casa, filhos, família, tem que arranjar outras coisas com que se preocupe... Senão a vida fica vazia demais... (p. 80). Portanto, a casa não existe como lembrança nem como projeto de vida. Em Caminho de pedras, a casa faz parte das perdas sofridas pela protagonista. Noemi, envolvida numa relação extraconjugal, perde tudo, sendo a morte do filho a perda mais dolorosa. Pela sua atividade de militância política, ela se afasta do padrão doméstico, mas acaba castigada: sem marido, sem amante, sem filho e sem emprego. O final é bastante melancólico, apesar de estar grávida de outro filho: Só. Agora estava só. Procurava sempre repetir isso. Tolice, não precisava repetir. Precisava era se familiarizar com a ideia, tirarlhe um pouco do seu sentido pavoroso. Só. De um em um tinham ido embora, todos. (p. 94) Maria Augusta, a Guta, de As três Marias, é talvez o melhor exemplo de abandono da casa para a liberdade da rua. Essa trajetória se dá paulatinamente. Depois da repressão do internato, onde vivia nas nuvens, sonhando com as vastas estradas da liberdade (p. 35), ela se vê enredada 62

nos deveres domésticos, abominados por ela: Envergonhava-me dizer, mas não considerava aquilo o meu lar, ou pior, não sentia necessidade de lar, e tudo me parecia aborrecido, monótono e intruso. (p.41). Arranja um emprego de datilógrafa, em Fortaleza, que também não satisfaz sua ânsia de liberdade. Como diz ela, o mundo grande era a minha sede (p. 44). Mas esse mundo grande vai lhe causar muitas dores e desilusões e, depois de uma temporada no Rio de Janeiro, onde vive um amor complicado, volta para Fortaleza, para finalmente retornar à casa paterna, no sertão. É uma volta melancólica, sem perspectivas, para uma casa mais jaula que ninho. Como já foi dito, a busca pela liberdade em Dôra, Doralina se dá de forma diferente. A volta para casa, a fazenda Soledade, é também um ato de liberdade. A protagonista deixa a casa, sob o comando autoritário de Senhora, sua mãe, para conhecer o mundo lá fora. Com vinte anos e já viúva, hospeda-se numa pensão em Fortaleza e aí faz parte de uma companhia de teatro ambulante. Nesse clima artístico, bem longe do autoritarismo hierárquico de Senhora, Dôra conhece a liberdade e se apaixona pelo Comandante. Uma vida de aventuras! Depois de viver uma relação feliz, apesar da vida irregular do Comandante, com a morte dele volta para casa, assumindo o lugar de Senhora, já falecida. O contraste entre a dor da viuvez e o início de uma nova vida é muito bem construído. Na fazenda, feia e decadente, tudo está por refazer, e ela, como uma nova Senhora, abandona a dor da viuvez e assume a sua casa, o seu canto: Mas era meu. Neste mundo todo, do Pará ao Rio de Janeiro, era o único lugar meu. Minha casa, com a cal das paredes escura pelo lodo do último inverno, meu o curral de cercas pedindo reparo, meu o gado reduzido a semente, e a semente da criação. (p. 255). O último capítulo, curto mas pleno de simbolismo, mostra a fazenda renovada: No sol do meio-dia um vaqueiro encourado atravessou o pátio, passou por baixo do pé de mulungu, tangendo uma vaca vermelha com o seu bezerrinho. (p. 270). O nome do bezerrinho? Garapu, neta de outra Garapu, da finada Senhora... A casa ganha uma outra dimensão quando é assumida, livremente, pela protagonista. Aqui, cabem as palavras de Bachelard: Se voltamos à velha casa como quem volta ao ninho, é porque as lembranças são sonhos, é porque a casa do passado se transformou numa grande imagem, a grande imagem das intimidades perdidas. (p. 112) Em Memorial de Maria Moura, a casa tem dois significados diferentes. Vimos como a protagonista bota fogo na casa materna, como forma de libertação de um passado opressor. Depois de muitas aventuras, chefiando um bando de marginais, ela chega à Serra dos Padres e dá 63

início à construção da Casa Forte, grafada com maiúscula no texto. Realização demorada de seu projeto de vida. Só na página 293, aparece a protagonista avaliando sua propriedade, onde a casa é o mais importante, como ela mesma reconhece: Com tudo isso, o meu orgulho maior era a casa. Começando pela cerca, as estacas de aroeira, com sete palmos de altura, tudo embutido numa faxina fechada, rematando em ponta de lança. Entre um pau e outro não passava um rato. E pra abalar um mourão daqueles, só a força de uma junta de bois: eram enterrados a mais de quatro palmos de fundura, socados com bagaço de tijolo e pedra miúda. Feito igual a paliçada de praça de índio; índio dos antigos, dos que ninguém se lembra de ter visto. (p. 293) Pela descrição se percebe que a casa é uma fortaleza, símbolo do poder de Maria Moura. À página 305, encontramos a planta da casa com a presença de um cubículo. Um verdadeiro esconderijo com mil e uma utilidades... Esses detalhes apontam para a importância da casa: não uma simples morada, mas a projeção do poder inabalável de dona Moura. A trajetória de Maria Moura é, do princípio ao fim, uma enfiada de mortes que ela comanda mas não executa, sendo sempre mandante de crimes violentos, que visam a manter o poder conquistado. Ao final, decide partir com seus homens para enfrentar uma empreitada perigosa, num ato de desespero, como ela mesma pergunta: E eu estou me importando em salvar esta desgraça de vida? (p. 479). Tendo mandado matar Cirino, seu amante traidor, sua vida perde o sentido. Segundo o narrador, trata-se de uma Maria Moura nova, diferente de todas as Mouras passadas, capaz de se meter numa aventura louca, quem sabe sem retorno, quem sabe sem fim (p. 473). Não é este o destino das personagens de Rachel? Em busca da liberdade, trocando a casa pela rua, elas vivenciam momentos de realização, mas o final é, quase sempre, melancólico. Conceição porque não se enquadra no destino de mulher, Noemi parece castigada por trair o marido, Guta porque sonhou demais, e Maria Moura porque se vingou de Cirino, seu grande amor. Só Dôra termina realizando o ciclo vital ao assumir a casa herdada, agora, para ela, um espaço feliz, retomando Gaston Bachelard. 64

Referências bibliográficas BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Coleção Tópicos. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. DAMATTA, Roberto. A casa & a rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985. QUEIROZ, Rachel de. Obra Reunida. Vol 1. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.. Obra Reunida. Vol 2. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.. Memorial de Maria Moura. São Paulo: Siciliano, 1992 XAVIER, Elódia. Declínio do patriarcado: a família no imaginário feminino. Rio de Janeiro: Record, 1998.. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2007. 65

Resumo Estudo das personagens de Rachel de Queiroz, em sua trajetória da casa para a rua em busca da liberdade. Partindo do livro de Gaston Bachelard, A poética do espaço, verificamos que, na obra da autora, a casa nem sempre é o espaço feliz de que nos fala Bachelard, no estudo dos poetas de língua inglesa. As questões de gênero constroem a imagem da casa de formas diferentes, fazendo da casa mais jaula que ninho, nos textos de autoria feminina. Palavras-chave: casa; rua; trajetória; liberdade Abstract Case study of Rachel de Queiroz characters on their path from home to the street, in search of freedom. Comparing it to Gaston Bachelard s book, A poética do espaço, we can verify that in Queiroz s book, home is not always the happy space, which Bachelard mentions when studying English poetry. In women writings, the matter of gender builds an image of home in different ways, showing it more like a cage than a nest. Keywords: home; street; path; freedom 66