Enclausurados Até onde os muros alcançam Mário ROLIM Thiago SOARES Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE RESUMO: O ensaio fotográfico "Enclausurados - até onde os muros alcançam" tenta abordar, através de cinco imagens, as contradições existentes dentro de um condomínio de luxo de uma grande metrópole brasileira como o Recife. Sob os pretextos da segurança e da comodidade, as pessoas escolhem morar em prédios dotados de um aparato que permite manter as pessoas tão afastadas do mundo exterior quanto for possível, ao mesmo tempo em que proporcionam moradia e status. Assim, esses indivíduos acabam abdicando de algumas de suas próprias liberdades em favor de um ideal de tranquilidade, parecendo enjauladas diante de um cenário de grades, muros, câmeras de vigilância e alarmes. PALAVRAS-CHAVE: fotojornalismo; culturas urbanas; comportamento Introdução As fotos que compõem o ensaio foram originalmente tiradas para ilustrar duas matérias do dossiê temático Átimo - Fechados, realizado por integrantes do 6 período do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) como avaliação referente às disciplinas de Edição e Preparação e Revisão de Originais, ministradas pelo professor Thiago Soares. A partir de um eixo temático maior, rua, o dossiê teve como foco os espaços urbanos fechados, que apresentam algum tipo de restrição quanto à circulação das
pessoas que não moram ou sejam autorizadas a entrar nesses lugares. Mais especificamente, o trabalho abordou ruas fechadas por iniciativa dos próprios moradores que nelas vivem, como também os espaços de convivência e trânsito no interior de condomínios fechados, sejam eles populares ou de luxo. As matérias, intituladas Ladrilhadas por pedrinhas de brilhantes e Domingo No Park, foram escritas a partir de duas visitas realizadas em janeiro e fevereiro de 2014 ao Evolution Shopping Park, um condomínio de luxo com cinco prédios localizado ao lado do Shopping Center Recife, um dos maiores da capital pernambucana. A primeira é um relato em primeira pessoa feito a partir de uma visita ao condomínio guiada por uma representante da construtora responsável pelo Evolution, enquanto a segunda é uma entrevista com uma família de moradores do residencial. As duas apurações foram acompanhadas pelo autor do ensaio, Mário Rolim, na condição de repórter fotográfico. Objetivos Geral: Retratar, através de imagens fotográficas, a atmosfera particular de um condomínio de luxo na cidade do Recife Específicos:
- Construir uma visão mais particular de um condomínio de luxo, de uma forma que contraste com o retrato limitado e artificial que é passado pela publicidade e pelas assessorias de imprensa - Observar o tipo de relações que as pessoas mantém entre si e com o ambiente em que vivem neste tipo de local - Descrever através de imagens as especificidades de um condomínio de luxo, e o que o difere de um condomínio normal - Refletir sobre a interação entre o interior e o exterior do condomínio de luxo, ou como seus moradores se relacionam com a cidade em que vivem Justificativa A substituição gradual das casas por prédios e condomínios fechados são fenômenos que têm sido observados há algumas décadas nas grandes metrópoles brasileiras, e em Recife não é diferente. Incontáveis ruas da cidade que antes tinham uma série de casas enfileiradas agora são ocupadas por prédios de vinte andares ou mais. Apesar dessa profusão no número de prédios ser abordada com frequência pelos grandes meios de comunicação, a explosão imobiliária é geralmente tratada com distância, aparente neutralidade ou até como algo positivo ou a ser promovido (vide os cadernos de Imóveis dos jornais). Talvez devido à normalidade com que esse fenômeno é tratado, talvez pela quantidade exorbitante de publicidade das construtoras e imobiliárias veiculadas nos meios de comunicação, os potenciais problemas urbanos que a explosão imobiliária acarreta para o convívio social ou desenvolvimento ordenado da cidade são discutidos ou levados em questão por uma minoria de vozes. Sendo assim, o material publicado no dossiê Átimo Fechados tenta dar relevância a essas questões, questionando que tipo de cidade as pessoas querem para si e
qual o tipo de convívio que elas têm com o espaço urbano, tanto o público quanto o privado. Através do material coletado, ficam evidentes certas contradições entre como o espaço público deveria ser tratado e como ele é tratado de fato. Mais especificamente, as duas matérias sobre o Evolution Shopping Park buscam jogar uma luz sobre os condomínios de luxo, que se mantém fora dos olhares daqueles que não os habitam através de aparatos de segurança e restrições ao acesso e até mesmo à vista. O ensaio também é motivado pelas imagens e discurso gerados pelo próprio material de divulgação destes empreendimentos, que os colocam como moradias superiores, repletas de opções de lazer, segurança, conforto e comodidade. Mas sabemos que a realidade não é exatamente assim, e eles também têm seus problemas. Métodos e Técnicas Utilizados As fotos do ensaio foram tiradas com uma câmera digital Coolpix P510, da marca Nikon. Não foi utilizado flash em nenhuma delas. As configurações automáticas da câmera foram utilizadas em todas. Nenhuma sofreu qualquer tipo de tratamento ou edição. Descrição do produto - Foto Nº 1: um senhor se prepara para tomar um banho, sentado sozinho na área das piscinas. Ao fundo, o logo vermelho e branco do Shopping Center Recife. Uma das vantagens oferecidas pelo condomínio (e uma das mais divulgadas em propagandas) é o fato dele oferecer uma saída direta para o estacionamento do Shopping, cujo portão mais próximo fica a menos de cinco minutos de caminhada.
- Foto Nº 2: Em primeiro plano, no canto superior esquerdo, uma câmera de vigilância observa a área de lazer do condomínio, com um parquinho para as crianças e uma pista de cooper. Ao centro e à direita, duas das torres do Evolution, com vários outros prédios igualmente imponentes as cercando por todos os lados (alguns deles ainda em construção), ao fundo. Primeiramente, a imagem retrata o quanto a paisagem do bairro de Boa Viagem, assim como vários outros do Recife, está repleta de altos prédios aonde quer que se olhe, e a cada dia mais e mais deles estão sendo erguidos. Além disso, a presença discreta da câmera ressalta o quanto os moradores do condomínio são vigiados em atividades triviais como brincar no parquinho e tomar banho de piscina, abrindo mão de sua privacidade em nome da segurança. - Foto Nº 3: em primeiro e segundo planos, a grade da quadra poliesportiva, com um pai carregando um filho pela área das piscinas ao fundo. A foto realça a condição de presos dos moradores do prédio, que se veem envoltos por uma série de grades, cercas, vigias e altos muros. - Foto Nº 4: as cinco torres do condomínio, vistas de baixo para cima, são separadas pela grade da quadra poliesportiva, com três para a esquerda e duas para a direita. Além de ressaltar o fato dos moradores estarem, de certa forma, presos (não só dentro do condomínio, como também dentro daquele conjunto Evolution-Shopping), a composição lembra a segregação dos prédios. Como cada um deles tem apartamentos com tamanhos e preços diferentes, é bem possível que ocorra certa separação entre os moradores de um prédio e outro, nem que seja só na forma de um olhar de baixo para cima.
- Foto Nº 5: Piscina da área de massagem e hidromassagem, com iluminação especial e regulador de temperatura da água. Mais uma vez, o logo do Shopping Recife marca presença, sendo visível ao fundo. De certa forma, esse logo acaba sendo como um símbolo da ideia que a construtora deseja passar de comodidade, sugerindo que a infinidade de serviços faz com que os moradores possam resolver várias questões diárias por lá mesmo, sem precisar se deslocar a outros lugares. O que torna o contato desses indivíduos com a cidade como um todo ainda mais restrito. Descrição do processo A apuração da matéria que se tornaria Ladrilhadas por pedrinhas de brilhantes começou em janeiro de 2014, quando o repórter Eric Ferreira começou a entrar em contato com assessorias de construtoras responsáveis pela criação de condomínios de luxo na cidade do Recife. A única que respondeu foi a construtora Moura Dubeux, que marcou uma visita ao condomínio Evolution Shopping Park para a manhã do dia 31 de janeiro. A visita foi guiada por uma representante comercial da construtora, que acompanhou o autor do ensaio, Mário Rolim, e o repórter Eric Ferreira. Para a matéria Domingo No Park foi feita uma segunda visita, na tarde do dia 2 de fevereiro (um domingo), desta vez com a repórter Tamires Coutinho acompanhando o autor, Mário Rolim, novamente como repórter fotográfico. Na ocasião, ela visitou um casal de moradores do condomínio, que ela conheceu através do filho do casal, um colega de colégio. Referências estéticas
Estranhamente, as referências estéticas para o ensaio, ainda que não tenham sido conscientemente pensadas ou relembradas antes das fotos serem tiradas, podem ser encontradas no cinema, e não na fotografia. A primeira delas pode ser o trabalho do diretor italiano Michelangelo Antonioni, principalmente na chamada Trilogia da Incomunicabilidade, composta pelos filmes A Aventura (1960), A Noite (1961) e O Eclipse (1963). Nestes filmes, Antonioni retrata, principalmente, a não-comunicação e a alienação do homem moderno, tanto emocional quanto entre as pessoas e os lugares onde habitam. Conhecidos pelo visual autoral e arquitetural, estes filmes de Antonioni (assim como vários outros do diretor) chamam a atenção pelo seu uso meticuloso da composição, explorando a tela em seus mínimos espaços e detalhes. Indo além de meras decorações, as imagens dos lugares pelos quais os personagens dos filmes passam têm influência sobre seus humores e estados emocionais, e a forma como estas paisagens são filmadas ou como os personagens são enquadrados dentro delas também evoca uma extensão ou ligação entre as pessoas e o espaço em que elas transitam. Este cuidado com o uso das paisagens se reflete no uso da profundidade de campo, que é alta na maioria dos planos do filme. No entanto, a profundidade também chega a ser usada para desfocar os personagens diante do cenário, realçando a ideia de alienação. Outra referência foi o filme O Som Ao Redor (2013), do diretor recifense Kléber Mendonça Filho, que teve grande parte de suas cenas filmadas no bairro de Setúbal, próximo à Boa Viagem. Como os filmes de Antonioni citados, O Som Ao Redor tem vários momentos em que os personagens do filme são enquadrados de uma forma que os torna visualmente oprimidos ou isolados pela paisagem que os cerca, geralmente formada por uma infinidade de altos prédios residenciais. Além disso, a evidente preocupação do filme com os problemas sociais ligados à explosão imobiliária ou possivelmente gerados por ela também serviu de influência na escolha do tema do ensaio e do dossiê temático como um todo.
Considerações finais Analisadas em conjunto, as cinco fotos do ensaio evidenciam um contraste entre os inúmeros benefícios associados a este modo de vida a que todos suspostamente almejam, aqueles que são divulgados pelas propagandas, e as coisas que podem ser observadas no dia-a-dia. Em nome da segurança, do conforto e da comodidade, as pessoas recorrem a condomínios com cada vez mais recursos, abdicando assim de uma vida mais integrada ao resto da cidade em favor de uma existência num espaço restrito, seja o do próprio condomínio ou o espaço que envolve o condomínio e o shopping mais próximo, como é o caso. Assim, na busca pela tranquilidade, as moradias se parecem cada vez mais com prisões de segurança máxima, e menos com as casas com as quais estamos acostumados. As imagens também retratam bem a falta de contato humano que a estrutura em si do condomínio proporciona, o que pode ser observado tanto nos condomínios de luxo quanto naqueles de preço mais modesto, estando longe de ser um problema restrito ao Evolution. Os espaços mostrados nas fotos estão ou aparentemente desprovidos da presença de pessoas, ou ocupados por um ou dois moradores, o que aponta que, na maior parte do tempo, os incontáveis itens de lazer que o prédio oferece permanecem sem uso. Enquanto isso, os moradores se trancam em seus apartamentos, em seus quartos, em seus próprios mundos.