A passagem do tempo na cultura digital "Tempus fugit", o tempo voa, é uma inscrição em latim encontrada em muitos relógios. Para mim, voa. E para você? Voa para todos, parece. Essa sensação de estar perdendo algo que não se viveu, que não tivemos como desfrutar, cria um sentimento de apego ao passado e, ao mesmo tempo, de vontade de futuro. Um dos mais fortes registros desse sentimento está em versos de Virgílio, poeta romano que viveu no século XIX antes de Cristo: "Sed fugit interea, fugit irreparabile tempus". E esses versos, traduzidos como mas ele foge, foge irreparavelmente o tempo, caem como uma luva em nossos tempos... Esse é um dos registros antigos, especialmente de pintores, escultores, filósofos e poetas, que têm como tema brevidade do tempo, que, parece, está sempre a fugir dos homens. Neles, sente-se algo como "Que é da nosso tempo, que escorregou rapidamente para aquele lugar em que o tempo passado quase se esconde, levando junto os sonhos de criança e da juventude?". Se pudéssemos contar o tanto de textos antigos e novos que têm o tema como tempo, veríamos como esse número é grande. As reflexões sobre o tempo, sobretudo sobre o cotidiano, acompanham a história da humanidade. Hoje, escolhemos dois poemas para viver um pouco essa angústia que nos acompanha.
O primeiro, de Camões, que está no volume II de suas Obras, escritas no século XVI: O tempo acaba o ano, o mês e a hora O tempo acaba o ano, o mês e a hora, A força, a arte, a manha, a fortaleza; O tempo acaba a fama e a riqueza, O tempo o mesmo tempo de si chora; O tempo busca e acaba o onde mora Qualquer ingratidão, qualquer dureza; Mas não pode acabar minha tristeza, Enquanto não quiserdes vós, Senhora. O tempo o claro dia torna escuro E o mais ledo prazer em choro triste; O tempo, a tempestade em grão bonança. Mas de abrandar o tempo estou seguro O peito de diamante, onde consiste A pena e o prazer desta esperança. O segundo, de Alberto Caeiro - Fernando Pessoa, escrito na segunda década do século XX, foi publicado no livro Poemas Inconjuntos :
Eu queria ter o tempo e o sossego suficientes Eu queria ter o tempo e o sossego suficientes Para não pensar em coisa nenhuma, Para nem me sentir viver, Para só saber de mim nos olhos dos outros, refletido. O tempo acaba o ano, o mês e a hora Como a vida exige que nos apressemos em relação ao ritmo que se tem, a impressão é a de que o tempo nunca é suficiente para que possamos vive-la em plenitude. O passado está somente na memória e o futuro, na imaginação. E o presente? Depende. Às vezes, parece passar muito devagar, por exemplo, quando aguardamos uma mudança prometida. Às vezes, parece ir muito depressa, quando temos um trabalho para entregar no dia X. Se esvai, enquanto lembramos do passado e planejamos o futuro... E essa impressão de que tudo passa muito rápido em nossas vidas, e que essa velocidade não nos permite prestar atenção nas mudanças que vão acontecendo conosco e com o mundo à nossa volta, embora preocupe os homens desde tempos remotos, é percebida de forma avassaladora nestes tempos de cultura digital. Tempo digital, tempo de hoje. As pessoas passam pelo tempo como se fossem poeira. Umas coisas lindas vão ficando gravadas, nessa memória digital confusa, como Abujamra, que se foi daqui hoje,
declamando Quintana, que está versejando no céu há algum tempo. E essa memória da passagem do tempo merece ser compartilhada com o leitor. Vá lá ver essas poeiras de luz em que nos transformamos, clique no link agora, depois você volta ao texto. Abujamra diz Quintana E então, para provocar mais um desassossego, à moda de Pessoa, um depoimento ao jornal O Globo, de Nicholas Carr, mestre em língua e literatura norte-americana, autor do livro Geração superficial: O que a internet está fazendo com nossos cérebros : Estou ciente de que minha própria percepção de tempo foi alterada pela tecnologia. Se eu usar um computador ou conexão web um pouco mais lentos que os meus, mesmo que por questão de segundos, acho a espera quase intolerável. Antes, nunca tinha estado tão consciente (e perturbado) pela passagem de meros segundos.. i E, para completar, leia também as notas sobre o livro, escritas por Acir Mário Karwoski, publicadas na revista digital Delta. ii Aí vai um trecho, para instigar sua curiosidade: "Embasado em boas leituras clássicas e científicas, o texto permite ao leitor viajar pela história da escrita. Discute com propriedade os assuntos relacionados à memória e ao cérebro. Reconstitui a
trajetória do surgimento do relógio, do livro, das tecnologias utilizadas para a leitura." Heloisa Amaral i Leia mais sobre esse assunto em: http://oglobo.globo.com/sociedade/tecnologia/tudo-ao-mesmo-tempo-agora-na-rede-8791901#ixzz3yblpw Wh9 ii http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s0102-44502012000100010