Introdução. Herpesvírus felino



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Infecções de vias respiratórias em gatos herpesvirose e calicivirose Prof. Msc. Alexandre G. T. Daniel Universidade Metodista de São Paulo H.V. Santa Inês São Paulo SP Consultoria e atendimento especializado em medicina felina PROVET Medicina Veterinária Diagnóstica Introdução Doenças infecciosas do trato respiratório anterior são extremamente comuns em gatos, principalmente naqueles que vivem ou são provenientes de colônias/criatórios. São consideradas as principais causas de doenças em gatis; e o herpesvírus e o calicivírus são os principais agentes virais envolvidos (cerca de 80% dos casos). Herpesvírus felino O herpesvírus felino tipo 1 (FHV-1) é um DNA vírus (fita dupla) envelopado, pertencente à sub-família Alphaherpesvirinae. Causa infecção aguda com tropismo por tecido termolábil (com temperaturas próximas a 37 o C), principalmente o epitélio nasal, traqueal e epitélio da córnea. Durante a infecção aguda, o vírus atinge os neurônios do gânglio trigeminal, podendo ficar em latência neste sítio. O mecanismo de latência não envolve replicação viral no gânglio. Aproximadamente 90% dos animais que sofreram infecção herpética tornam-se carreadores do vírus por toda a vida, tendo papel fundamental na perpetuação da infecção por meio do mecanismo de reativação viral. Esta reativação pode ser induzida por estresse, prenhez/lactação, mudança de hábitos/rotina, introdução de um novo gato ou uso de corticóides. Após a infecção primária, o vírus é liberado por secreções nasais, orofaríngeas e oculares pelo período de uma a três semanas. Pelo fato de ser um vírus envelopado, este não sobrevive por muito tempo no ambiente, sendo necessário o contato direto com um animal infectado ou via aerossol, para a perpetuação do ciclo viral (fato que explica a grande prevalência em ambientes superpopulosos). A contaminação por meio de fômites é menos comum. A maioria dos animais primo-infectados é jovem, com o vírus rapidamente se replicando em células epiteliais das conchas nasais, traqueia e conjuntiva, e com posterior migração para o gânglio trigeminal. A infecção aguda gera lise epitelial, com necrose local e exsudação, propiciando infecção bacteriana secundária. As principais manifestações clínicas são febre, anorexia, prostração, esternutação, secreção nasal (inicia-se mucoide e evolui para purulenta), quemose, blefaroespasmo, secreção ocular e tosse. Manifestações menos comuns incluem ulceração oral, gengivite/estomatite, dermatite facial e alterações neurológicas (raro). Úlceras de córnea, ceratite estromal e sequestro de córnea são manifestações oculares descritas com relativa prevalência. Calicivírus felino O calicivírus felino (FCV) é um RNA vírus (fita simples) não envelopado, e muito mais suscetível a mutações do que os DNA vírus. A predisposição à mutação é importante, pois cada gato pode possuir uma variante do FCV própria, denominada quase-espécie viral (gama de variedades diferentes, ou núvem de variantes, com mutações pontuais mínimas, mas que geram características antigênicas e, por vezes, patogênicas distintas). As consequências desta rápida variação antigênica incluem o aparecimento de uma nova doença (com características e manifestações predominantes distintas), falha ou pouca efetividade vacinal, geração de resistência e cronificação da infecção. 1

O vírus é eliminado por secreções orofaríngeas, possuindo eliminação contínua. Diferentemente da infecção pelo FHV-1, o calicivírus não possui a característica de latência, não existindo reativação viral, e sim a eliminação permanente. Em média, gatos infectados eliminam o vírus por aproximadamente 30 a 150 dias. Caso exista uma nova exposição, o animal pode voltar a eliminar a nova variante viral. Fatos como este sustentam a alta incidência e prevalência da infecção em colônias/criatórios de gatos. Cerca de 80% dos gatos que sobrevivem à infecção aguda se tornam carreadores crônicos do FCV. Estima-se que aproximadamente 25 a 30% dos gatos sadios pertencentes a criatórios comerciais e 10% dos gatos pertencentes a residências com um único animal sejam carreadores crônicos. Alguns animais eliminam o vírus por toda a vida. Pelo fato de o FCV ser um vírus não envelopado, o mesmo é resistente ao ambiente, podendo sobreviver por até duas semanas fora do hospedeiro; existe, também, resistência à maioria dos desinfetantes domésticos, mas o calicivírus é sensível ao hipoclorito de sódio. As principais manifestações clínicas são febre, anorexia, ulceração oral, espirros e secreção nasal. Menos comumente, a calicivirose pode causar claudicação (poliartrite), bronquiolite e pneumonia intersticial (que podem evoluir para pneumonia bacteriana secundária, principalmente em animais jovens). O FCV também está implicado, embora de maneira pouco elucidada, na etiologia do complexo gengivite-estomatite dos felinos. Aproximadamente 80% dos animais com gengivite crônica possuem o FCV no epitélio oral. Diagnóstico As manifestações clínicas e características epidemiológicas geralmente auxiliam bastante no diagnóstico clínico. Gatos que vivem ou são provenientes de ambientes superpopulosos (criatórios comerciais, abrigos, colônias) estão susceptíveis ao contato com ambos os vírus, visto que são considerados enzoóticos nestas localidades. Dados de uma anamnese completa também são importantes no diagnóstico clínico, como presença de outros animais enfermos no local, contato recente com animais de origem desconhecida, surto de doença no local ou introdução de novos gatos na colônia. Visto que muitas vezes os animais pertencem a colônias, raramente são utilizados métodos laboratoriais específicos para o diagnóstico e discernimento entre os vírus, por questões financeiras. O diagnóstico laboratorial se dá por métodos moleculares. O exame de eleição com maior sensibilidade é a PCR de secreção orofaríngea ou o isolamento viral. Resultado positivo em animal assintomático não classifica o animal como doente, e sim como portador/carreador. A realização de exames específicos não modifica a conduta terapêutica. Tratamento O tratamento para ambas as infecções (que muitas vezes aparecem associadas) é, na maioria das vezes, sintomático. Antibióticos de amplo espectro (para prevenção de infecções bacterianas secundárias), correção da desidratação e suporte enteral são as principais medidas terapêuticas. Antivirais como o famciclovir estão sendo testados para o tratamento da herpesvirose, e são indicados principalmente em quadros de dermatite herpética. Administração de L- Lisina por via oral pode auxiliar na redução da multiplicação viral em gatos infectados pelo FHV-1, embora seu uso seja controverso. 2

Manejo e prevenção O primeiro ponto importante a se salientar é o estado de portador/carreador assintomático. Os animais assintomáticos são os principais perpetuadores da infecção, sendo difícil o controle em ambientes sujeitos a estresse e superpopulação. O manejo inclui higiene e boas condições sanitárias, além de correto e selecionado programa vacinal. A resposta imunológica após a vacinação é caracterizada pela produção de altos títulos de anticorpos em animais imunocompetentes. No entanto, a vacinação contra o FCV e FHV-1 não é considerada esterilizante, ou seja, não protege o animal contra a infecção. Mesmo animais corretamente vacinados podem se tornar infectados e desenvolver o estado de portador crônico/carreador; e, muitas vezes, o animal vacinado já foi exposto aos agentes e já é um portador assintomático. Embora a imunização não ofereça proteção contra a infecção (e também não elimina o estado de portador/carreador), os altos títulos de anticorpos auxiliam na melhor resposta imune contra o desenvolvimento da doença e consequentes manifestações clínicas. Desta forma, a vacinação atenua a sintomatologia, tornando-a, muitas vezes, amena e até imperceptível. Portanto, a vacinação é um componente fundamental no manejo de colônias e criatórios, e o protocolo vacinal deve ser individualizado para cada situação. Figura 1 Aspecto clínico de filhote com infecção herpética. Blefaroespasmo, secreção nasal e ocular purulentas. Foto: arquivo pessoal do autor. 3

Figura 2 Quemose, hiperemia conjuntival e secreção ocular bilateral em gato com infecção herpética. Foto: arquivo pessoal do autor. 4

Figura 3 úlceras decorrentes de calicivirose. Foto: arquivo pessoal do autor. Leitura sugerida Tech Small Anim Pract, v.20, p.94-101, 2005. Gaskell R.M., Dawson S., Radford A., Thiry, E. Feline herpesvirus. Vet Res, v.38(2), p.337-354, 2007 Gaskell R.M., Dawson S., Radford A. Feline respiratory disease.in: Infectious Diseases of the Dog and Cat. 3rd ed. Editor: Greene, C. Saunders Elsevier. St Louis, Missouri, p.145-154, 2006. Thiry, E. et al. Feline herpesvirus infection ABCD guidelines on prevention and managment. J. Fel. Med. Surg., v.11, p.547 555, 2009. Radford A.F. et al. Feline calicivirus infection ABCD guidelines on prevention and managment. J. Fel. Med. Surg., v.11, p.556 564, 2009. 5