Documentos Básicos de Museologia: principais conceitos

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Transcrição:

CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA, 41-2011 31 Judite Primo 1 O conceito de Património cultural ganhou nas últimas cinco décadas, novos e alargados significados, fazendo com que as motivações sociais acerca do património e seus entendimentos fossem se alargando e intensificando, não apenas entre os técnicos e especialistas das diferentes áreas de actuação, mas também a outros sectores da sociedade. Durante toda a primeira metade do século XX, as acções de preservação e de pertença do património cultural, no que tange às referências arquitectónicas, centravam-se, quase que exclusivamente, na preservação dos edifícios/ monumentos que detivessem significados históricos, de unicidades/ raridades, de antiguidade e sobretudo de urbanidade; no que tange as referências museológicas, a preservação estava voltada para as referências materiais e móveis do património cultural. O primeiro grande passo para a alteração do referido cenário foi dado em 1964, através da Carta de Veneza, aprovada no II congresso de Arquitectos e Técnicos de Monumentos Históricos, e que veio legitimar um novo conceito de monumento que passa a ser entendido como: não só as criações arquitectónicas isoladamente, mas também os sítios, urbanos ou rurais, nos quais sejam patentes os testemunhos de uma civilização particular, de uma fase significativa da evolução ou do progresso, ou algum acontecimento histórico. 1 Professora de Museologia na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias - Lisboa, Portugal.

32 CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA, 41 2011 Judite Primo Este conceito é aplicável, quer às grandes criações, quer às realizações mais modestas que tenham adquirido significado cultural com o passar do tempo. 2 (Carta de Veneza) É a partir desse período que novas e profundas alterações ocorrem na sociedade ocidental, que influenciam e são influenciadas pelo processo de ampliação do entendimento do património. Passando a integram não apenas as referência tangíveis do património como também as intangíveis e, referente ao património urbanístico há uma ampliação das acções preservacionistas em monumentos isolados passando a actuar também em conjuntos de construções. São exemplos destas preocupações uma série de documentos produzidos, sobretudo, pela UNESCO através do ICOMOS e ICOM, e o Concelho da Europa. A UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), com sede em Paris, foi criada em 1945 pela ONU como instituição especializada e tem por objectivos: Contribuir para a manutenção da paz e da segurança ao estreitar, pela educação, pela ciência e pela cultura, a colaboração entre as Nações, a fim de assegurar o respeito universal pela justiça, pela lei, pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais. 3 (UNESCO, 1980) No âmbito das suas atribuições a UNESCO recebe a contribuição de Organizações não Governamentais (ONG`S), e sendo de referir, por tratarem especificamente de questões museológicas e de património, o ICOM e o ICOMOS. 2 Carta de Veneza. Maio de 1964. II Congresso de Arquitectos e Técnicos de Monumentos Históricos. Em relação ao novo conceito de monumento. 3 Comissão Nacional da UNESCO, 1980.

CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA, 41-2011 33 O Conselho da Europa, criado em 1949, tornou-se, como resultado das grandes alterações ocorridas na Europa nos últimos anos, um fórum intergovernamental e interparlamentar de grande importância para o referido continente. Foi criado tendo por objectivo propor a adopção de acções conjuntas no que se refere ao aspectos sociais, económicos, administrativos, culturais, científicos e jurídicos, contribuindo assim para estreitar os laços da União Europeia. Actualmente o Conselho da Europa possui 41 Estados membros, e mais 47 Países aderentes à Convenção Cultural Europeia, refiro-me a um tratado internacional que define o quadro das actividades da Organização no que se refere à educação, cultura, património, desporto e juventude. Após as duas Cimeiras de Chefes de Estado e de Governo, realizadas em 1993 e de 1997, a cooperação cultural, entre os Países membros, passou a desempenhar um papel cada vez mais importante na procura da coesão social, da estabilidade política e dos valores democráticos. A partir da década de setenta, o Conselho da Europa, de acordo com a vertente mundial, passou a defender o alargamento da noção de património. Com isso passou a interessar-se pelas componentes do ambiente humanizado e edificado, como os centros históricos, conjuntos urbanos e também rurais, património técnico e industrial assim como a arquitectura contemporânea. Neste contexto, o Conselho da Cooperação Cultural (CDCC), órgão director do qual depende também o sector da Educação, procurou concentrar a sua acção em Projectos e Actividades de Serviço, considerados prioritários. As linhas de actuação do Conselho de Cooperação Cultural na área do património tem-se voltado para as seguintes áreas: actualidade; arqueologia;

34 CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA, 41 2011 Judite Primo cooperação e assistência técnica; inserção social; interacção cultural europeia; catalogação de bens culturais; pedagogia do património; património e sociedade; saber-fazer e formação patrimonial; património comum europeu; Ao longo das três últimas décadas foram elaborados vários documentos pelo Conselho da Europa voltados para a salvaguarda do património, a utilização educativa do património e o património como elementos promotor do desenvolvimento sustentado das localidades. Muitos desses documentos aparecem como documentos reguladores para uma prática e gestão do património em consonância com as directivas contemporâneas. Em relação aos programas voltados para a questão cultural no Conselho da Europa, podemos destacar as seguintes áreas: Educação para a Cidadania Democrática Políticas linguísticas para uma Europa multilíngue e multicultural Aprender e ensinar a História da Europa do século XX Classes Europeias do Património Nas suas actividades de mais destaque podemos notas as áreas da Formação Contínua do Pessoal Educativo, a criação de uma Rede Comum de Dados sobre o Património e os Laços e Intercâmbios Escolares. Desde os anos 60, o campo patrimonial tem sido o tema central da cooperação cultural internacional. Na Europa, os primeiros passos para essa cooperação impulsionou a elaboração da Carta de Veneza de 1964 (ICOMOS), que surge como um elementos de extrema importância para veicular uma efectiva cooperação

CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA, 41-2011 35 profissional. O referido texto levava uma mensagem internacional sobre a preservação, conservação e restauro do património arquitectónico. Nesta mesma época, e por iniciativa do Conselho da Europa, a mensagem de salvaguarda do património ganha uma implicação política e é convertido em programa de cooperação internacional entre países Europeus, criando o Ano do Património Arquitectónico Europeu, em 1975. a nível global, a UNESCO desenvolveu trabalhos do mesmo tipo e estabeleceu um sistema para proteger os elementos do património mundial considerados mais importantes, aplicando um Convénio no ano de 1972. Não podemos esquecer que é justamente esse o período de maior inovação nos trabalhos museológicos em toda a Europa. Se utilizarmos o cenário português como exemplo, verificaremos que surgem os primeiros museus locais no País. Esses novos museus assumiram a participação da sua comunidade como factor decisivo para o exercício das suas funções. O património passa a ser assumido como um bem comum pelas comunidades locais e gradativamente a ser entendido como um vector promotor para as comunidades locais atingirem um desenvolvimento sustentado. Actualmente a cooperação internacional na área do património é gerida em níveis diferenciados. Em termos geográficos, marca-se uma diferença entre organizações mundiais, como a UNESCO, o ICOMOS e o ICOM; e as organizações regionais como o Conselho da Europa ou a União Europeia, que também leva a cabo uma série de actividades relacionadas com a reabilitação do património. Quanto ao tipo das instituições é também preciso distinguir entre organismos intergovenamentais como o Conselho da Europa e Organizações Não Governamentais (ONGs) como o ICOMOS, o ICOM e a Fundação Europeia para os Ofícios do Património. Com a cooperação estabelecida entre o Conselho da Europa e o Conselho do Património Mundial da UNESCO e o apoio dos membros da Rede do Património Europeu, o sistema de

36 CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA, 41 2011 Judite Primo informação pode extender-se para dar seguimento ao convénio do Património Mundial. Dos documentos produzidos ao longo da segunda metade do século XX pelas referidas instituições, podemos citar: A Convenção do Património Mundial sobre a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural (UNESCO, 1972) que definiu como património cultural os monumentos, os conjuntos e os sítios; A Carta Europeia do Património Arquitectónico (produzido em 1975) no qual reafirma que o património arquitectónico é formado não só pelos monumentos mais importantes, mas também pelos conjuntos de construções das cidades antigas e aldeias tradicionais nas suas envolventes naturais e construídas pelos Indivíduos; A Recomendação para a Salvaguarda dos Conjuntos Históricos e a sua Função na Vida Contemporânea, mais conhecida como Carta de Nairobi (UNESCO, 1976) que veio definir novos conceitos, nomeadamente os de conjunto histórico ou tradicional e de salvaguarda; no mesmo ano é produzido outro documento de referência que é o Apelo sobre a Arquitectura Rural e o Ordenamento do Território (produzido pelo Concelho da Europa, 1976) que ao reconhecer os perigos que os desequilíbrios ecológicos estavam a causar na paisagem rural, propõe uma mudança radical de orientação. Esclarece que para preservar o património construído e a paisagem em que este está inserido é necessário um plano de acções que integrem simultaneamente as estruturas físicas, a fixação humana, a criação de emprego e a articulação de actividades diversificadas, sem esquecer que a preservação não deve incidir apenas nas características estéticas do património, mas também nos testemunhos e sabedorias comunitários. Todos esses documentos seguem uma linha de preocupação e actuação que nos levam a perceber o património nas suas relações com o meio em que se insere, na sua dinâmica social e no seu papel como elemento simbólico. É ainda importante

CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA, 41-2011 37 ressaltar que essas preocupações também nos fazem reflectir sobre o papel do património no contexto museal e museológico e serviu de influência para que os profissionais da museologia pudessem também formular documentos de base para fundamentar a acção museal. Assim foram elaborados os documentos de referência na museologia, a saber: Declaração do Rio de Janeiro de 1958 que analisa e questiona o papel das exposições nos museus, a importância dos museus como recursos educativos e um novo entendimento do o objecto museológico. Em 1972, é organizada a Mesa Redonda de Santiago do Chile, influenciada pelas discussões promovidas pela UNESCO sobre o papel e função do património na sociedade também permeadas pelos questionamentos do Maio de 68 sobre o papel dos museus numa sociedade em transformação. Produz-se um documento, de todos o mais inovador e de extrema importância para a museologia, que apela à uma acção museológica comprometida com questões sociais, económicas, educacionais e políticas. Alerta para o papel político do museólogo e o reconhecimento da importância do cidadão em todo o processo de preservação, entendimento e divulgação do património cultural. Seguindo esses pressupostos é elaborado em 1984 a Declaração de Quebec, na qual é feito o reconhecimento da Nova Museologia e em consequência é criado um ano depois -1985- o Movimento Internacional para uma Nova Museologia MINOM -. Ainda em 1984, a Declaração de Oaxtepec que assume um trinómio de base para uma nova acção museológica: patrimónioterritório-população e pela primeira vez refere o Ecodesenvolvimento. Em 1992, vinte anos após a Mesa Redonda de Santiago, é elaborado a Declaração de Caracas, um documento que busca actualizar os conceitos do documento de Santiago.

38 CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA, 41 2011 Judite Primo Quando fazemos uma análise comparativa entre os documentos de referência para a Museologia produzidos, quase que exclusivamente pelo Icom e pelo MINOM, e os documentos produzidos pelo ICOMOS- Unesco e Conselho da Europa, percebemos como os nossos cinco documentos estavam actualizados e de como os profissionais que os formularam estavam em consonância com as directivas internacionais sobre o património. Utilizando a Carta de Veneza de 1964, como marco para o inicio de uma fase de transformação e maior preocupação com a diversidade do património, verificamos que os documentos produzidos durante os anos 70 demonstram uma grande preocupação com o alargamento da noção de património e sua preservação in-situ, também preocupações apresentadas, analisadas e discutidas durante a Mesa Redonda de Santiago do Chile. Os anos 80 e 90 foram marcados pela preocupação em democratizar o acesso ao património, em assumir o património natural como referência patrimonial, em promover a apropriação e classificação das referências patrimoniais contemporâneas e em promover uma relação harmoniosa entre as referências patrimoniais dos séculos passados com o património urbano e arquitectónico contemporâneo; os documentos de Quebec, Oaxtepec e Caracas também abordam algumas dessas questões e trazem para o campo museológico a necessidade de entendermos o património em contexto e na sua relação com as pessoas. Acredito que as instituições já referidas (Conselho da Europa e Unesco através do ICOMOS e do ICOM) continuam a ter um papel fundamental na elaboração, sistematização e orientação de políticas públicas no âmbito da cultura e do património, muitas vezes apenas legitimando acções já desenvolvidas pelos profissionais, mas também, em alguns casos, os seus documentos servem para disseminar acções e boas-práticas desenvolvidas por profissionais

CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA, 41-2011 39 que estão isolados ou ainda sem o devido reconhecimento dos seus trabalhos pela sociedade e pelos meios governamentais Acreditando na contemporaneidade das organizações que acabamos de referenciar, finalizaria essa comunicação abordando três documentos que propõem acções para a divulgação e salvaguarda do património. Documentos extremamente coerentes com a actualidade. Refiro-me ao documento elaborado pelo Conselho da Europa e adoptado pelos Países membros sobre a Pedagogia do Património, a Classificação dos Tesouros Humanos Vivos, elaborado pela Unesco; e os documentos de Política Nacional de Museus elaborado pelo Ministério da Cultura do actual governo brasileiro. O Conselho da Europa elaborou e adoptou durante o Comité dos Ministros, em 17 de Março de 1998, a recomendação nº 98-5 do comité dos Ministros dos Estados Membros relativo a Pedagogia do Património. Nessa recomendação define-se que o património cultural deve ser entendido como "todo testemunho material e imaterial da obra humana e todos os vestígios resultantes da acção humana com a natureza. Ficando mais uma vez legitimada a intangibilidade do património e deixando para os profissionais que trabalham com o património o desafio de criar métodos e técnicas para comunicar e educar por meio de referências não tangíveis. Por Pedagogia do Património ficou estabelecido que deveria ser entendido como toda a acção pedagógica fundamentada sobre o património cultural. Acções que assim fundamentada integrem os métodos de ensino activo e criem disciplinas específicas que estabeleçam uma parceria entre ensino e cultura, e recorram aos métodos de comunicação e de expressão variadas. (UNESCO. Pedagogia do Património, 1998) O documento propõe ainda a criação de grupos de diferentes níveis escolares para o estudo do património, através de "uma forma particular de pedagogia do património que implique na criação de

40 CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA, 41 2011 Judite Primo pólos internacionais fundados sobre um projecto comum e sobre os temas relevantes do património cultural. Esses grupos devem ser criados para permitir aos jovens, de todos os níveis sociais e de todos os tipos de conhecimento, descobrir a riqueza patrimonial no seu contexto e apreender a questão patrimonial no contexto europeu." A Pedagogia do Património, foi pensada para ser promovida como uma área interdisciplinar, desenvolvidas pelas escolas como uma disciplina destinada a alunos de todos os níveis escolares e sociais. A ideia de base é a democratização do conhecimento sobre o património, a promoção de novas áreas e temas de investigação e a construção de pertença colectiva do património em um território que gradativamente pretende ser comum. O próximo documento que pretendo analisar foi produzido pela UNESCO, que continua a ter um papel fundamental no alargamento da noção de património analisando e discutindo questões relacionadas com o património intangível, a saber: património oral e imaterial da humanidade, classificação dos tesouros humanos vivos e a salvaguarda da cultura tradicional e popular. A Unesco considera que o património cultural intangível é uma fonte essencial de identidade, e que esse património mantém forte ligações com o passado e portanto com a memória colectiva das colectividades. Mas também reconhece que as manifestações do património intangível tem sido fragilizadas e muitos casos estando em vias de extinção. Portanto considera importante que sejam feitas acções para a salvaguarda do património cultural intangível, como a música tradicional e popular, as danças, as festas populares, o artesanato. E certas tradições orais e línguas de âmbito regional. A perda progressiva das referências patrimoniais imateriais locais tem sido provocada, sobretudo pela promoção de referências culturais cada vez mais globalizadas que menosprezam as referências locais. Essas novas referências são promovidas e divulgadas por um

CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA, 41-2011 41 sistema estruturado de informação e comunicação que funciona como elemento vulnerabilizador das culturas locais. Por acreditar ainda ser possível travar essa enorme avalanche de globalização das referências cultuais, a Unesco criou um meio para que cada País interessado possa proteger suas referências patrimoniais imateriais, refiro-me ao Manual para a Salvaguarda dos Tesouros Humanos Vivos. É possível lermos nos documentos da Unesco que é: identificar tesouros humanos vivos é o meio mais eficaz de protecção é garantir que os portadores deste património sigam aumentando suas destrezas e saberes e que as possam transmitir às gerações actuais e seguintes. Com este propósito é preciso identificar os ditos portadores e dar-lhes um reconhecimento oficial. Por isto o documento da Unesco propõe a criação de um sistema de Tesouros Humanos Vivos. Já existem alguns sistemas de Tesouros Humanos Vivos adoptados por governos de Países como o Japão (desde 1950 com a denominação Tesouros Nacionais Vivos), a República da Coreia (1964), as Filipinas (1973 fez o reconhecimento de uma categoria específica de Artistas Nacionais, outro programa criou categoria de Tesouros Nacionais Vivos), a Tailândia (em 1985 procedeu de maneira similar ao criar o Projecto de Artistas Nacionais), a Roménia recentemente criou o Sistema Regional de Tesouros Humanos Vivos e a França criou o Projecto Maestros das Artes. Todos esses projectos servem para distinguir, honrar os portadores de conhecimentos e tradições populares, mas exigem que a transmissão dos saberes que os distinguiram para as gerações mais jovens. Os Tesouros Humanos Vivos são definidos como: pessoas que encarnam, ao máximo, as destrezas e técnicas necessárias para a manifestação de certos aspectos da vida cultural de um povo e a

42 CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA, 41 2011 Judite Primo manutenção do património cultural material. (Unesco. Sistema de Tesouros Humanos Vivos) O objectivo do sistema é a preservação das destrezas e das técnicas necessária para a realização das manifestações culturais que o Estado considera de elevado valor histórico e/ou artístico. O sistema deve ser organizado para recompensar as pessoas que encarnam estes saberes e técnicas, de forma a prosseguir seu trabalho, desenvolvê-lo e formar novas pessoas para o exercício das referidas manifestações culturais. A Unesco chama a atenção para os critérios que os Países devem ter em conta quando decidem criar um sistema de Tesouros Humanos vivos, a saber: o valor do património cultural intangível, sua testemunhalidade, suas características e o perigo de desaparecimento. Elevar um indivíduo a categoria de Património Humano Vivo, pressupõe a criação de um comissão interdisciplinar de especialistas que precisarão tem em conta o grau da destreza que possui, sua dedicação a actividade em questão, sua capacidade de contribuir para o desenvolvimento da modalidade cultural que pratica, sua capacidade para transmitir as ditas técnicas ou destrezas aos aprendizes. (Unesco. Sistema de Tesouros Humanos Vivos). A Política Nacional dos Museu, documento do Ministério da Cultura da República Federativa do Brasil, nos faz lembrar o empenhamento dos profissionais que actuam nos últimos 40 anos por uma acção museológica comprometida com as questões de memória colectiva, sociais, políticas e sobretudo com a dimensão humana. O documento PNM reconhece o esforço dos museus em se adequarem ao contexto que lhe assegura a existência e sobrevivência. A nova Política Nacional dos Museus Brasileiros demonstra uma preocupação em incentivar a democratização das instituições museais, reconhece, textualmente, e passo a citar:

CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA, 41-2011 43 O papel dos museus, no âmbito de políticas públicas de carácter mais amplo, é de fundamental importância para a valorização do património cultural como dispositivo estratégico de aprimoramento dos processos democráticos. Para cumprir esse papel, os museus devem ser processos e estar a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento. Comprometidos com a gestão democrática e participativa (...) (PNM, 2003) Talvez estejamos, no campo da museologia, defronte de três novos desafios: Por um lado promover e incentivar a criação de disciplinas em todas os níveis e áreas de ensino sobre as questões patrimoniais, tentando assim sensibilizar as nossas comunidades e governos para os desafios impostos nos processos de salvaguarda do património e noções de construção e reconstrução de memória(s); Por outro, militar pela criação e implantação de sistemas classificatórios dos tesouros humanos vivos, conseguindo assim valorizar as pessoas, preservar a intangibilidade das nossas culturas, promover o ensino-aprendizado sobre o património e suas manifestações e, de algum forma, travar o crescente e avassalador processo de globalização das referências culturais. O terceiro desafio, creio ser de todos o mais fácil. Que é participar activamente no processo de transformação da política museológica no Brasil. O desafio é não perdermos a possibilidade em reflectir, discutir, analisar e mesmo estudar o actual documento e assumirmos que devemos nos comprometer com a elaboração dos diversos e diferentes eixos prioritários que estão a ser preparados. Normalmente não temos a possibilidade em sermos

44 CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA, 41 2011 Judite Primo membros activos dos processos inovadores, ou mesmo na elaboração de políticas culturais actualizadas. Devemos aproveitar esse momento. Temos, que mais uma vez, militarmos pela museologia ou pelas museologias que acreditamos. Neste sentido, a renovação na museologia implica renovação de mentalidades, renovação das técnicas para uma melhor adequação da teoria e da prática museológica, renovação e formação dos corpos técnicos e administrativos. Somente com a renovação a acção museológica poderá reflectir-se nos processo de desenvolvimento, fazendo uso da interdisciplinaridade, do saber fazer, do aprendizado em comunhão, da troca de experiências, da memória colectiva e da educação de caracter libertador e dialógico. Referências Bibliográficas Primo, Judite. O Museólogo-Educador Frente aos Desafios Económicos e Sociais da Actualidade. Encontro Museologia e Educação. Santiago do Cacém, 2002. Primo, Judite. Reabilitação Urbana, Cidadania e Museologia. MINOM. Jornada sobre a Função Social dos Museus.Santiago do Cacém. Portugal, 2003 Primo, Judite. Etnografia e Museus locais. I Jornadas de etnografia do Oeste: Conhecer a comunidade para preservar a memória, Bombaral, Portugal, 2001 Site: Unesco Site Conselho da Europa Site ICOMOS e ICOM.