POR TRÁS DO ÉPICO: FRAGMENTAÇÃO, ESTRANHAMENTO E HISTORICIZAÇÃO NA DRAMATURGIA DE BERTOLT BRECHT

Documentos relacionados
Secretaria Municipal de Educação

CONCURSO PÚBLICO DE PROVAS E TÍTULOS PARA PREENCHIMENTO DE VAGAS DE PROFESSOR DA CARREIRA DO MAGISTÉRIO SUPERIOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

Dossiê Teatro: Paisagens Pós-dramáticas e outras poéticas da cena contemporânea

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE HUMIDADES, ARTES E CIÊNCIAS PROFESSOR MILTON SANTOS MESTRADO PROFISSIONAL EM ARTES - PROFARTES

FICHA DE LEITURA (resumo feito a partir do capítulo 2 de MUMFORD, Meg, Bertolt Brecht. London and New York, Routledge, 2009)

CAPOCOMICATO E METATEATRO: O FAZER E O PENSAMENTO DA ILUMINAÇÃO NA DRAMATURGIA PIRANDELLIANA

PANORAMA SOBRE PROPOSTAS DE ESTREITAMENTO ENTRE A ENCENAÇÃO E ESPECTADOR NA CENA CONTEMPORÂNEA:

O efeito do estranhamento brechtiano no teatro de animação

Gêneros Literários. Drama. Imita a realidade por meio de personagens em ação, e não da narração. Poética de Aristóteles

Programa de Formação Básica Ano letivo Cursos com inscrições abertas

Traços épicos nos jogos de Spolin: possíveis relações com a teoria teatral brechtiana

Resolução da Questão 1 Texto definitivo

QUINTANARIA. da obra de Mario Quintana

DISCIPLINAS OPTATIVAS DO BACHARELADO EM ATUAÇÃO CÊNICA Carga horária mínima 300 horas

2º bimestre Sequência didática 2

A dramaturgia do ator e o processo de composição cênica

SEGUNDAS E QUARTAS: 10 às 12h

Ficha de Unidade Curricular 2009/2010

Estudos teatrais Os nossos antepassados escrituras cênicas na contemporaneidade

Colegiado dos Cursos de Graduação em Arquitetura e Urbanismo

Palavras-chave: One-man Show, comédia, teatro pós-dramático.

Pró-Reitoria de Integração aos Setores Comunitários e Produtivos PROIN

DISCIPLINAS OPTATIVAS DO BACHARELADO EM ATUAÇÃO CÊNICA Carga horária mínima 300 horas

O texto como pré-texto delimitando situações e roteiro, potencializando sua apropriação e reconstrução.

Arte no Século XX. Prof Cleber Lima

A ida curtida ao teatro

Resolução da Questão 1 (Texto Definitivo)

ILUMINAÇÃO, JOGO E TREINAMENTO - composições cênicas entre a teatralidade e a performatividade

Teatro e Cinema PROFESSORA: HILANETE PORPINO 7 ANO/2017 PARNAMIRIM/RN

CEJA JONAS CORREIA Aluno: Nº Data: / /2019 TURMA 6ª TURNO DENISE COMPASSO ARTE A ORIGEM DO TEATRO 1

Sonho de Uma Noite de Verão

DADOS DO COMPONENTE CURRICULAR

ARTES CÊNICAS Cenografia: Segunda-feira 16h55 às 18h30 14 vagas Dramaturgia I: Segunda-feira 18h35 às 20h10 15 vagas Dramaturgia II:

MARIA CRISTINA BRITO. 4ª feira 9 às 13 horas. Ester Leão (2º andar) 15 vagas

Resolução da Questão 1 (Texto Definitivo)

Artefatos culturais e educação...

O TEATRO PERFORMATIVO NO PÚBLICO

CURSO DE ARTES CÊNICAS 2007/2 BACHARELADO EM INTERPRETAÇÃO

Conteúdo Básico Comum (CBC) de ARTE do Ensino Médio Exames Supletivos/2017

2018/2019 PLANIFICAÇÃO ANUAL Educarte (1º-4º)

Palavras-chave: Teatro, cinema, pós-dramático, dramaturgia, ator

Crescer. Junt0s. Orientac0es curriculares. Teatro. Realização

Ser Tão De Origem. Espetáculo teatral sobre a fundação de uma cidade. André Farias l Caroline Ungaro l Marcelo Peroni

ESTRUTURA DO ESPETÁCULO

A peça de aprendizagem. Heiner Müller e o modelo brechtiano

Iluminação Cênica e uma construção do espetáculo: uma abordagem pedagógica.

Ficha de Unidade Curricular 2009/2010

Coautor: Mariana Lescano Geist,

Imagens sobre o ser professor construídas na elaboração dramatúrgica

ÍNDICE O TEXTO DRAMÁTICO PROFISSÕES RELACIONADAS COM O TEATRO VOCABULÁRIO RELACIONADO COM O TEATRO. Leitura de cartazes publicitários

UM OLHAR SEMIÓTICO SOBRE O TEATRO DE ANIMAÇÃO

Palavras-chave: teatralidade; análise de imagens; Marc Chagall; dramaturgia.

Espaço teatral e transversalidade

Um estudo sobre o espaço cenico em encenações brasileiras contemporâneas

e Hanns Eisler - Cena e música em A mãe Introdução A mãe apontando para mudanças

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Currículo dos Cursos (por estrutura)

Professora Adriana Teles e Professor Felipe Quadra

-~ -IV. vunesp s PROVA DE HABILIDADES. (8 horas) VESTIBULAR 2016 unes :fi

CONTAR UMA HISTÓRIA É DAR UM PRESENTE DE AMOR.

CURSO DE LICENCIATURA EM TEATRO

DISCIPLINAS OPTATIVAS OFERECIDAS PELO DEPARTAMENTO DE INTERPRETAÇÃO PARA O 1º SEMESTRE DE SEGUNDAS E QUARTAS: 10 às 12h

A CONSTRUÇÃO DO GESTO E O PROCESSO DE CRIAÇÃO GESTUAL DA PEÇA FRAGMENTOS DO DESEJO DA COMPAGNIE DOS À DEUX

Oficina de Teatro Ação de formação acreditada ( modalidade Curso) Conselho Científico da Formação Contínua/Acc /14

COUTINHO, A. Notas de teoria literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973 (adaptado).

CURRÍCULO DO CURSO. Mínimo: 7 semestres. Profª. Drª. Débora Zamarioli

Gêneros Literários OBRAS LITERÁRIAS: QUANTO À FORMA = VERSO & PROSA QUANTO AO CONTEÚDO = GÊNEROS LITERÁRIOS

A travessia do narrativo para o dramático no contexto educacional

O que é o teatro? Uma das mais antigas expressões artísticas do Homem; Tem origem no verbo grego theastai (ver, contemplar, olhar), e no vocábulo greg

Resolução 015/98 - CONSEPE

TEATRO E JOGOS ELETRÕNICOS. Letícia Braga Santoro 1 Orientadora: Estrella Bohadana RESUMO

Diálogos entre Cinema e Teatro no Curta Metragem Rua Dos Bobos

Horários de Aulas do 1º Período Letivo de 2019 CURSO: CICLO BÁSICO DO BACHARELADO E LICENCIATURA EM ARTES CÊNICAS (CURRÍCULO REFORMULADO)

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Currículo dos Cursos (por estrutura)

Resolução da Questão 1 Texto Definitivo

Estudo dos gêneros literários

CURSO DE TEATRO LICENCIATURA

Introdução. Márcia Regina Rodrigues

das Beiras PRÓXIMO ESPETÁCULO Sáb 17 jun, 21h30

BIMESTRALIZAÇÃO DA DISCIPLINA TEATRO PARA O ENSINO MÉDIO

LABORE Laboratório de Estudos Contemporâneos POLÊM!CA Revista Eletrônica A PERFORMANCE DO ATOR E AS NARRATIVAS DE GUERRA NA COMPANHIA AMOK

A montagen é inspirada no livro Cansaço A Longa Estação de Luíz Bernardo Pericás. A caatinga do sertão brasileiro é o pano de fundo para contar as

O USO DE VÍDEOS NAS AULAS DE GEOGRAFIA NA SEGUNDA FASE DO ENSINO FUNDAMENTAL

DISCIPLINAS OPTATIVAS OFERECIDAS PELO DEPARTAMENTO DE INTERPRETAÇÃO PARA O 1º SEMESTRE DE 2015.

DISCIPLINAS OPTATIVAS OFERECIDAS PELO DEPARTAMENTO DE INTERPRETAÇÃO PARA O 1º SEMESTRE DE 2015.

1.1-EIXO CÊNICO - DRAMATÚRGICO

AMADORES EM PAUTA. Sérgio Roberto dos Passos Telles

Circulação Centro Oeste

A escrita teatral na formação de professores Alessandra Ancona de Faria

PLANOS DE AULAS. 2º BIMESTRE - AULA 01 - Data: 24/04/ Tempo de duração: 1 hora 40 TEMA DA AULA: CARACTERIZAÇÃO DA PERSONAGEM

Linguagem Cinematográfica. Myrella França

PLANOS DE AULAS. 2º BIMESTRE - AULA 01 - Data: 22/05/ Tempo de duração: 1 hora 40 TEMA DA AULA: INTRODUÇÃO À ILUMINAÇÃO

PLANO DE ENSINO. Eixo Estudos Iniciais IECT: DIREÇÃO TEATRAL. Prática 42. Grau acadêmico / Habilitação (Bacharelado/Licenciatura)

1.1. Identificar os elementos de composição de obras de artes visuais Usar vocabulário apropriado para a análise de obras de artes visuais.

SOLAMENTE APRESENTAÇÃO partilha/compartilha - desabafo existencial - contemporaneidade.

Professor Roberson Calegaro

Conteúdo Básico Comum (CBC) de Artes do Ensino Fundamental do 6º ao 9º ano Exames Supletivos / 2013

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes Comunicação das Artes do Corpo

RESOLUÇÃO Nº 026/2009 CONSEPE (Alterada pelas Resoluções nºs 070/ CONSUNI e 030/2012-CONSEPE)

Cada questão de múltipla escolha apresenta quatro opções de resposta, das quais apenas uma é correta.

Jogos de tabuleiro criações a partir do espaço como indutor do jogo.

Transcrição:

POR TRÁS DO ÉPICO: FRAGMENTAÇÃO, ESTRANHAMENTO E HISTORICIZAÇÃO NA DRAMATURGIA DE BERTOLT BRECHT Keila Fonseca e Silva 1, Denise Medeiros Dantas 2 1 Mestre em Artes Cênicas (UFRN). Professora e pesquisadora do Grupo de Pesquisa CASO (IFRN). e-mail: keila.fonseca@ifrn.br 2 Graduanda do Curso de Tecnologia em Produção Cultural (IFRN). Bolsista do PIBIC/ IFRN. e-mail: denise.dantas.rn@gmail.com Resumo: Este trabalho visa analisar os procedimentos cênicos do teatro épico de Bertolt Brecht, utilizados no espetáculo O Deus da Fortuna do Coletivo de Teatro Alfenim (PB). Observamos a contribuição que estes procedimentos, utilizados como elementos estéticos da cena, tiveram para o despertar crítico do espectador. Este trabalho é parte integrante dos estudos referentes ao projeto de pesquisa Do texto à cena: procedimentos épicos no teatro de Bertolt Brecht (IFRN), que objetiva a construção de um texto teatral a partir do estudo minucioso dos procedimentos cênicos de Brecht, bem como a formação de um grupo de teatro no Campus Natal Cidade Alta. Palavras chave: dramaturgia, épico, procedimentos 1. INTRODUÇÃO O estudo dos procedimentos épicos de Brecht é o objetivo central do projeto de pesquisa Do texto à cena: procedimentos épicos no teatro de Bertolt Brecht, da Prof.ª Ms. Keila Fonseca, integrante do Grupo de Pesquisa Cultura, Arte e Sociedade do IFRN; e visa à construção de um texto teatral com base nos procedimentos cênicos de Brecht, bem como a formação de um grupo de teatro no Campus Natal Cidade Alta. O projeto vem se desenvolvendo desde abril de 2012 e encontra-se em fase de pesquisa bibliográfica. Tendo conhecimento da apresentação do Coletivo de Teatro Alfenim, que trazia para Natal um espetáculo inspirado na dramaturgia de Brecht, viu-se a oportunidade de analisar como o mesmo utiliza os procedimentos Brecht em sua montagem cênica, tentando entender qual a relevância dos mesmos para composição cênica do espetáculo e como estes interferem na percepção crítica do espectador. 2. MATERIAL E MÉTODOS A produção do artigo realizou-se a partir de análise e transcrição de vídeos e debate sobre o espetáculo o Deus da Fortuna, bem como através de pesquisa bibliográfica, tendo por base os estudos de Flavio Desgranges (2010), Odete Aslan (2010) e Patrice Pavis (2008), que esclarecem a respeito dos procedimentos cênicos de Brecht. 3. RESULTADOS E DISCUSSÃO Bertolt Brecht, dramaturgo e encenador alemão do início do século XX, opondo-se ao teatro ilusionista vigente na sua época, propôs um teatro político e didático que levasse o espectador a refletir sobre as estruturas sociais vigentes. Para ele o teatro tem uma função pedagógica e política. Unindo a dramaturgia à poesia épica, dá origem ao que chamou de Teatro Épico, cuja principal característica é a narração. No teatro épico tudo se narra. Os atores, os elementos cênicos e as músicas possuem funções narrativas, mas uma narração que é historicizada. (DESGRANGES, 2010; ASLAN, 2010). No épico, o autor relata uma história já ocorrida e que, em geral, ocorreu com outra pessoa. Portanto, ele fala no pretérito (a história foi assim) e na terceira pessoa do singular (aconteceu com ele) [...]. Se a história já aconteceu e quem a conta conhece bem todo o seu desenrolar, não há o mesmo envolvimento emocional do autor dramático, que apresenta o fato no tempo presente, [...]. (DESGRANGES, 2010, p. 95).

Segundo Desgranges (2010), o teatro épico trata os fatos narrados como históricos, pois acredita que através desta dinâmica estabelece-se uma distância entre o assunto relatado e o espectador, permitindo que este possua uma atitude reflexiva sobre o mesmo. A essa distância causada entre o espectador e a história que está sendo contada, Brecht chama de efeito de distanciamento. Segundo Brecht (apud Pavis, 2008, p. 106), uma reprodução distanciada é uma reprodução que permite seguramente reconhecer o objeto reproduzido, porém, ao mesmo tempo, torná-lo insólito, ou seja, distanciar é dar-se o tempo para mostrar todas as faces de um objeto ou de uma situação (ASLAN, 2010, p. 166), levando o espectador a refletir sobre aquilo que está sendo posto em cena de um modo incomum. Foi do estudo da arte chinesa do espetáculo que Brecht derivou a quintaessência da encenação e representação do seu teatro épico: o efeito do distanciamento. Ele se baseia em uma neutralização completa dos meios tradicionais de expressão teatral. Manter distância é o primeiro mandamento, tanto para o ator como para o público. Não é permitido que se forme nenhum campo hipnótico entre o palco e a plateia. O ator não deve despertar emoções no espectador, mas provocar sua consciência crítica. (BERTHOLD, 2008, p. 505). Brecht retratava os fatos habituais de um modo estranhado, criando um efeito que ele denomina Verfremdungseffekt. 1 O efeito de estranhamento, segundo Pavis (2008, p. 119), mostra, cita e critica um elemento da representação, ele o descontrói, coloca-o à distância por sua aparência pouco habitual e pela referência explícita a seu caráter artificial e artístico. 2 É o estranhamento que possibilita a quebra da catarse, ou seja, do envolvimento emocional com o personagem característico do teatro ilusionista. Esse efeito vai favorecer a fragmentação do espetáculo, que é outra característica marcante no teatro de Bertolt Brecht. (DESGRANGES, 2010; ASLAN, 2010; PAVIS, 2008). Outra particularidade do teatro épico é o gestus. Para Brecht, segundo Pavis (2008, p. 187), o gestus se situa entre a ação e o caráter [...] enquanto ação, ele mostra a personagem engajada numa praxis social; enquanto caráter, representa o conjunto de traços próprios de um indivíduo. Para ele, as relações entre as personagens são constituídas pelo domínio gestual, que perpassam o universo social, ou seja, as relações se estabelecem através de movimentos que traduzem uma forma social ou corporativa de se comportar, que denomina de gestus social. Para Aslan (2010, p. 169), o gestus exige que o ator selecione gestos capazes de exprimir uma atitude global, uma característica social. De acordo com Gaspar Neto (2009, p. 02), gestus é a expressão física de certas relações sociais, do modo como os homens se apresentam diante de outros homens em sociedade e exemplifica através das relações entre professores e alunos, pois estas não se modificam, constituem um gestus, pois é marcado por um conjunto de regras que vigoram em uma sociedade, e determinam a posição de professores e alunos dentro da relação. (PAVIS, 2008; ASLAN, 2010; GASPAR NETO, 2009). Todos esses procedimentos - o estranhamento, o gestus, as temáticas sociopolíticas, a historicização podem ser percebidos na dramaturgia de Bertolt Brecht e servem de modelo de uma espécie de arquitetura dramatúrgica do teatro épico. 3.1 OS PROCEDIMENTOS CÊNICOS DE BRECHT NO ESPETÁCULO O DEUS DA FORTUNA DO COLETIVO DE TEATRO ALFENIM Comungando dos mesmos ideais de Brecht, de que o teatro é um espaço de discussão e reflexão do meio sociopolítico em que o espectador está inserido, o Coletivo de Teatro Alfenim (PB) concebe o 1 Verfremdungseffekt, ou efeito V, expressão alemã traduzida de forma não literal como efeito de estranhamento. 2 Grifos do autor.

espetáculo O Deus da Fortuna, com dramaturgia e direção de Márcio Marciano, que aborda de modo crítico e cômico os temas sociopolíticos do capitalismo, das relações de poder e da submissão da mulher. Segundo o diretor e dramaturgo do grupo Márcio Marciano, a proposta surgiu a partir de um trecho dos diários de trabalho do encenador alemão, onde o mesmo relata sua vontade de, um dia, realizar uma montagem sobre o Deus da Fortuna, desde já, estabelecendo uma analogia ao capitalismo. Como o grupo queria falar sobre o mesmo assunto, percebeu que trabalhar com o imaginário de um deus numa China imemorial seria mais interessante para discutir o capitalismo. O espetáculo é definido pelo grupo como uma parábola sobre o capital em seu estágio global de volatilização. Narra a história de Wang, um proprietário de terras afundado em dívidas, na China Imperial. Zao Gong Ming, o Deus da Fortuna, surge à sua frente e lhe desvenda o futuro, com a condição de que seja erguido um Templo em sua honra. O proprietário deixará as formas primitivas de acumulação do capital para dedicar-se à especulação financeira. 3 Em O Deus da Fortuna, percebe-se claramente a utilização dos procedimentos cênicos de Brecht. O espetáculo inicia-se com a presença de todos os elementos cênicos e atores no palco, mas não necessariamente na cena. O espaço de representação é delimitado pela iluminação. A troca de cenário e figurino é realizada diante do público, tudo está disposto aos olhos do espectador. Segundo Desgranges (2010), Brecht apresenta um teatro desnudo, revelando ao público todos os mecanismos técnicos e cenográficos que constituem a peça, ressaltando a teatralidade da encenação. Sendo a narração uma das principais características do teatro épico, em O Deus da Fortuna, ela se revela ao longo de todo o espetáculo. Ainda no inicio da peça o Deus da Fortuna ganha vida e assumindo a postura de narrador apresenta as personagens (Figura 1); por vezes, alguns dos atores se dirigem ao público e relatam a cena ou a música que virá em seguida; os objetos cênicos têm função narrativa, como é o caso dos bonecos que são utilizados para contar a história do Deus da Fortuna (Figura 2). Figura 1 4 Figura 2 5 O Deus da Fortuna apresentando as personagens. Bonecos narram a história do Deus da Fortuna. Além destes, a música também possui caráter narrativo como, por exemplo, a Canção do Julgamento, onde se relata a subjugação ao trabalho, o medo dos trabalhadores em acusar o proprietário e a ineficiência da justiça devido às relações de poder. 3 Extraído do blog do Coletivo de Teatro Alfenim, disponível em: http://teatroalfenim.blogspot.com.br/p/espetaculos.html. 4 Foto extraída do vídeo gravado de espetáculo ao vivo. Natal, Auditório do IFRN, 13/06/2012. 5 Foto extraída do blog do Coletivo de Teatro Alfenim, disponível em: http://teatroalfenim.blogspot.com.br/p/espetaculos.html.

A CANÇÃO DO JULGAMENTO Quando um poderoso é julgado Quem se apresa a fazer sua defesa Quando é pego com a boca na botija quem depressa paga evidência Quando o ricaço é posto no banco dos réus Quem poderá acusá-lo sem medo E ter a casa incendiada E ter a sombra vigiada Todos os seus passos perseguidos Quando a justiça é chamada Quem poderá garantir Que ela compareça Há, na canção do julgamento, a presença da narração versificada, recurso recorrente ao longo da peça. Segundo Aslan (2010, p. 160), Esse procedimento de alternância prosa-verso dá a importância, sublinha a oposição entre personagens, introduz uma ruptura, força a atenção do espectador. [...]. Em O Deus da Fortuna a narrativa supera a linearidade do drama e as cenas se constroem de forma fragmentada, cada cena é autônoma, mas estabelece uma relação com o tema geral. Contribuindo para a fragmentação do espetáculo, o estranhamento surge desde o início da peça quando os atores que encenam o Tigre e o Deus da Fortuna retiram a máscara que estavam usando para revelar aos espectadores que são atores e que tudo o que realizarão no palco é teatro, conforme é mostrado respectivamente nas figuras 3 e 4. O estranhamento é gerado, ainda, através dos músicos, que interrompem a narrativa, como na cena em que os fantasmas dos trabalhadores e da mulher do Sr. Wang aparecem para ele, e este, ouvindo um som que vinha dos músicos posicionados na lateral do palco, fora do espaço de representação, questiona quem são, e estes respondem que são os músicos da peça. Além disso, há os acadêmicos (figura 5) e os peregrinos (figura 6) que interrompem a linearidade do espetáculo ora fazendo com que o espectador reflita sobre o tema proposto ora distraindo-os, dando-lhes tempo para refletir sobre o que está sendo representado. Além das situações citadas, o estranhamento aparece, também, nas cenas em que são usadas projeções de imagens que estabelecem uma relação com a cena representada, mas, ao mesmo tempo, dizem respeito ao cenário político-social dos espectadores. Figura 3 6 Figura 4 7 6 Foto extraída do blog: http://teatroalfenim.blogspot.com.br/p/espetaculos.html. 7 Foto extraída do blog: http://teatroalfenim.blogspot.com.br/p/espetaculos.html.

O Deus e o Tigre personificados através da máscara. Os atores que interpretam o Deus e o Tigre retiram as máscaras Figura 5 8 Figura 6 9 Os acadêmicos. Os peregrinos. Há ainda na referida peça a presença do coro como fator de distanciamento. O coro representa os trabalhadores e dá a ideia de multidão, juntos fazem acusações ao senhor Wang, e através de discurso narrativo do coro, que fala sobre a cena representada, possibilita ao espectador o distanciamento da ação narrada para refletir sobre a cena social vigente em seu atual contexto histórico. Segundo Pavis (2008, p. 74), o coro torna-se técnica épica, muitas vezes distanciadora, pois concretiza diante do espectador um outro espectador-juiz da ação, habilitado a comentá-la [...] equivale a encarnar em cena o público e o seu olhar. No espetáculo supracitado, pode-se identificar, também, o procedimento épico do gestus, que se expressa através das relações de poder, do Sr. Wang com seus empregados, entre o Sr. Cai Fu e o Sr. Wang, e entre este último e as mulheres de sua casa (filha e empregadas), ressaltando a submissão da mulher. Conforme observado, o Coletivo de Teatro Alfenim, em sua montagem intitulada O Deus da Fortuna, utilizando-se da dramaturgia brechtiana transpõe seu ponto de vista em relação ao capitalismo e as relações de poder na sociedade contemporânea, caracterizando-se como um teatro político e didático, pois interferindo na percepção política do espectador, leva-o a refletir sobre as questões políticas propostas. [...] A questão já era, para Brecht, [...] como você muda a forma de percepção das questões políticas e influi nessa forma de percepção. Para o teatro, o que é importante é a forma de mudar essa percepção, a forma como se vai conseguir alterar essas fórmulas de percepção que estão dadas. (LEHMANN, 2010, p. 234-235). Nesse sentido, acredita-se que a utilização dos procedimentos épicos de Brecht no espetáculo O Deus da Fortuna, contribuíram de modo significativo, como elementos estéticos da cena, na interferência da percepção dos espectadores, pois enquanto elementos de estranhamento possibilitam o espanto ou o assombro, como diz Desgranges (2010), que nada mais é do que o despertar da consciência crítica do espectador. O estranhamento da ação cotidiana, gerada no teatro épico, causa 8 Foto extraída do blog: http://teatroalfenim.blogspot.com.br/p/espetaculos.html. 9 Foto extraída do blog: http://teatroalfenim.blogspot.com.br/p/espetaculos.html.

no espectador uma sensação de assombro diante da realidade cotidiana. 10 Ainda segundo Desgranges (2010, p. 95), é o assombro que leva o espectador a ter uma postura reflexiva e crítica diante do que está sendo representado e da realidade vivida pelo mesmo, fazendo-o tomar consciência das possibilidades transformadoras desta realidade. 6. CONCLUSÕES Diante do exposto, ressaltamos a relevância da elaboração deste estudo para o projeto de pesquisa Do texto à cena: procedimentos épicos no teatro de Bertolt Brecht, pois possibilitou o entendimento mais claro dos procedimentos cênicos de Brecht, que será fundamental para pensar a elaboração do texto teatral a ser encenado pelo grupo de teatro do IFRN-Campus Cidade Alta a ser formado. Destacamos a importância da elaboração de análises videográficas de outros espetáculos inspirados no teatro épico de Brecht, bem como das montagens realizadas pelo encenador alemão, servindo, assim, de material teórico para pesquisadores e grupos que se interessam pelo teatro épico e buscam formas de causar o assombro, a tomada de consciência crítica nos espectadores. AGRADECIMENTOS Agradecemos ao IFRN, ao CNPQ e ao Grupo de Pesquisa Cultura, Arte e Sociedade pelo incentivo a pesquisa no universo do teatro. Agradecemos também ao Coletivo de Teatro Alfenim pela atenção e colaboração, permitindo-nos gravar o espetáculo e o debate para estudos posteriores. REFERÊNCIAS ASLAN, Odete. O Ator no Século XX: evolução da técnica, problema da ética. Tradução: Rachel Araújo de Baptista Fuser, Fausto Fuser e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2010. (Coleção Estudos). BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. Tradução: Maria Paula V. Zurawski, J. Guinsburg, Sérgio Coelho e Clóvis Garcia. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do espectador. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2010. (Teatro; 46). GASPAR NETO, Francisco de Assis. O gesto entre dois universos: a noção de gestus no teatro de Bertolt Brecht e no cinema dos corpos de Giles Deleuze. Revista Científica FAP. Curitiba, v.4, n.1 p.1-15, jan./jun. 2009. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático e Teatro Político. O Pós-dramático: um conceito operativo? J. Guinsburg e Sílvia Fernandes (orgs.). São Paulo: Perspectiva, 2010. (Coleção debates). PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Tradução: J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. 10 Grifos do autor.