REVISTA BRASILEIRA DE REUMATOLOGIA

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Transcrição:

REVISTA BRASILEIRA DE REUMATOLOGIA www.reumatologia.com.br Artigo original Manifestações articulares atípicas em pacientes com febre reumática Teresa Cristina Martins Vicente Robazzi a, *, Simone Rocha de Araújo b, Silas de Araújo Costa b, Amaurí Batista de Oliveira Júnior b, Lívia Souza Nunes b, Isabel Guimarães a a Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil b Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil informações resumo Histórico do artigo: Recebido em 18 de setembro de 2013 Aceito em 10 de fevereiro de 2014 Palavras-chave: Febre reumática Critérios de Jones Acometimento articular atípico Crianças Adolescentes Objetivos: Descrever as características clínicas e a ocorrência de artrite atípica em crianças com diagnóstico de febre reumática (FR) acompanhadas em ambulatórios terciários em Salvador, Bahia. Metodologia: Estudo descritivo, de uma série de casos, do quadro clínico inicial ou recorrência de 41 crianças com diagnóstico de FR. Resultados: Dos pacientes estudados (n=41), 61% eram do sexo masculino; com média de idade de 9,2 anos e idade no momento do diagnóstico entre 5 e 16 anos. Artrite esteve presente em 75,6% dos pacientes; cardite em 75,6%; coreia em 31,7%; eritema marginado em 14,6% e nódulos subcutâneos em 4,9%. Um padrão atípico foi observado em 22 dos 31 casos com artrite (70,9%): envolvimento de pequenas articulações e/ou esqueleto axial em 12 casos (38,7%); duração maior que três semanas em nove (29%); resposta inadequada ao AINH em dois (6,5%); oligoartrite ( quatro articulações) em 22/31 (71%), sendo monoartrite em 6/31 (uma em pés, uma em tornozelo e quatro em joelho). A febre esteve presente em 78% dos casos e 82,9% dos pacientes utilizavam a profilaxia secundária de forma regular. Conclusão: Artrite atípica esteve presente na maioria dos pacientes que cursaram com acometimento articular, constituindo um fator de confundimento diagnóstico e atraso terapêutico adequado. 2014 Sociedade Brasileira de Reumatologia. Publicado por Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados. Articular manifestations in patients with atypical rheumatic fever abstract Keywords: Rheumatic fever Jones criteria Atypical joint involvement Children Adolescents Objectives: To describe the clinical characteristics and the occurrence of atypical arthritis in children diagnosed with rheumatic fever (RF) and followed in tertiary care clinics in Salvador, Bahia, Brazil. Methodology: A descriptive study of a case series, of the initial clinical presentation, and of recurrence in 41 children diagnosed with RF. Results: Of the patients studied (n=41), 61% were male, mean age of 9.2 years, and mean age * Autor para correspondência. E-mail: trobazzi@gmail.com (T.C.M.V. Robazzi). 0482-5004/$ - see front matter. 2014 Sociedade Brasileira de Reumatologia. Publicado por Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados. http://dx.doi.org/10.1016/j.rbr.2014.02.006

269 at diagnosis between 5 and 16 years. Arthritis was present in 75.6% of patients; carditis in 75.6%; chorea in 31.7%; erythema marginatum in 14.6%; and subcutaneous nodules in 4.9%. An atypical pattern was observed in 22 of 31 cases of arthritis (70.9%): involvement of small joints and/or axial skeleton in 12 cases (38.7%); >3 weeks of duration in 9 (29%); inadequate response to NSAIDs in 2 (6.5%); oligoarthritis ( 4 joints) in 22/31 (71%), with monoarthritis in 6/31 (1 in the foot, 1 in the ankle, and 4 in the knee). Fever was present in 78% of the cases, and 82.9% of patients were regularly on secondary prophylaxis. Conclusion: Atypical arthritis was present in most patients presenting with joint involvement, being a confounding factor against a proper diagnosis and of therapeutic delay. 2014 Sociedade Brasileira de Reumatologia. Published by Elsevier Editora Ltda. All rights reserved. Introdução A febre reumática (FR) é complicação tardia, inflamatória, não supurativa da infecção das vias aéreas superiores pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A. 1-4 Pode acometer diferentes tecidos, incluindo coração, articulação e sistema nervoso central 4, e ocorre, principalmente, em crianças e adolescentes entre 5 e 15 anos de idade e geneticamente predispostos. 4-6 O diagnóstico da FR continua sendo um dos mais difíceis em pediatria, devido ao polimorfismo do seu quadro clínico e à falta de exames laboratoriais específicos ou patognomônicos da doença. 7-10 Os critérios de Jones foram estabelecidos em 1944 com o objetivo de reduzir a ocorrência de erros e atrasos diagnósticos. 11 Apesar de sua utilidade na prática clínica, não contemplam todas as dificuldades encontradas para estabelecimento do diagnóstico da FR, sobretudo na presença de manifestações clínicas articulares atípicas, o que pode induzir a erros ou atrasos no diagnóstico. 7 Essa dificuldade diagnóstica se acentua naqueles pacientes que cursam com artrite como única manifestação clínica isolada da doença. 4,12,13 A descrição clássica da artrite da FR consiste em um quadro de poliartrite migratória, principalmente de grandes articulações dos membros inferiores e que surge em torno de duas a três semanas após a infecção estreptocócica de orofaringe. A dor, tipicamente intensa, responde bem ao uso de anti-inflamatórios não hormonais (AINH) e, geralmente, não ultrapassa três semanas de duração. 2,8 As articulações mais frequentemente acometidas são os joelhos e os tornozelos. Cada vez mais têm sido descritas na literatura manifestações articulares atípicas, que se caracterizam por quadros monoarticulares, duração superior a seis semanas, resposta insatisfatória aos salicilatos, artrite aditiva, além de acometimento de articulações pouco habituais, como quadris, coluna cervical e pequenas articulações. 1,7,9 Este possível padrão de acometimento articular na FR, foi inicialmente citado em 1975, por Stollerman, quando o autor observou que 32% das crianças portadoras de febre reumática não apresentavam o padrão clássico do acometimento articular. 14 Terreri et al. avaliaram o padrão articular em 93 pacientes com FR: a artrite foi aditiva em 27% dos casos; pequenas articulações, como as metacarpofalangeanas e as interfalangeanas proximais e distais, foram acometidas com frequência de 2% a 8%; artrite com duração maior que seis semanass foi observada em 10%; a não resposta ao ácido acetilsalicílico ocorreu em 15% das artrites e, monoartrite foi encontrada em 6% dos pacientes. 7 Essas manifestações atípicas dificultam ainda mais o diagnóstico de FR, principalmente se o médico não se atentar para a possibilidade desses tipos de manifestações. O presente estudo foi realizado com o objetivo de avaliar as características do acometimento articular e a ocorrência de artrite atípica em crianças durante surto inicial e recorrência de FR. Pacientes, materiais e métodos Foram analisados, retrospectivamente, 41 prontuários médicos de crianças e adolescentes com diagnóstico de FR atendidos nos ambulatórios de reumatologia pediátrica do Hospital Professor Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia e de cardiologia pediátrica do Hospital Ana Nery, na cidade de Salvador, Bahia. O estudo abrangeu um período de três anos, de março de 2009 a dezembro de 2012. Os critérios de inclusão foram: diagnóstico de FR baseado nos critérios de Jones modificados (1992) e idade até 21 anos. As variáveis utilizadas no estudo foram: sexo; idade; presença e características dos critérios maiores e menores de Jones; características do acometimento articular; informações sobre a evidência de infecção prévia pelo estreptococo (ASLO) e exames laboratoriais. Para considerar o comprometimento articular de padrão atípico foi necessária a presença de pelo menos uma das seguintes características: duração maior que três semanas; acometimento de pequenas articulações e/ou de coluna cervical e/ou de articulação coxofemoral; monoartrite e resposta insatisfatória aos salicilatos. O processamento e a análise dos dados foram realizados com o auxílio do programa licenciado Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 12.0, com análise descritiva dos dados. Foram analisadas a média de idade dos pacientes e as frequências absolutas e relativas das seguintes variáveis: sexo; critérios maiores e menores de Jones; número de articulações envolvidas; manifestações articulares atípicas; descrição de cada característica atípica e regularidade da profilaxia secundária. O projeto foi aprovado no comitê de ética do HUPES (071/2009, resolução no CNS 196/96). Resultados Foram revistos os prontuários de 41 crianças, 25 do sexo masculino e 16 do feminino (relação 1,6:1,0). A idade dos pacientes no momento do diagnóstico variou de cinco a 16 anos, com uma média de idade de 9,2 anos.

270 REV BRAS REUMATOL. 2014;54(4):268 272 A frequência dos sinais maiores de Jones foi: artrite em 31 pacientes; cardite em 31; coreia em 13; nódulos subcutâneos em dois e eritema marginatum em seis (fig. 1). A artrite foi isolada em seis dos 31 casos que cursaram com esse sintoma (19,4%). Quanto às características do acometimento articular, padrão atípico foi observado em número considerável dos casos com artrite 22/31 (70,9%). Envolvimento de pequenas articulações e/ou esqueleto axial ocorreu em 12 casos (38,7%); duração maior que três semanas em nove (29%); resposta inadequada ao AINH em dois (6,5%); oligoartrite ( quatro articulações) em 22/31 (71%), sendo monoartrite em 6/31 (um em pés, um em tornozelo e quatro em joelho) (fig. 2). A presença de poliartrite ( cinco articulações) ocorreu em 9/31 pacientes (29%). Desses 22 casos atípicos, artrite isolada foi encontrada em seis casos (19,4%); artrite associada à cardite foi encontrada em 12 casos (57,1%); artrite associada à cardite e coreia em quatro casos (19%); artrite, cardite, eritema marginado e nódulos subcutâneos em um caso (4,8%); artrite, cardite, coreia e eritema marginado em um caso (4,8%). Febre esteve presente em 78% dos casos e 82,9% dos pacientes utilizavam a profilaxia secundária de forma regular. Discussão Em 1982, Goldsmith e Long 15 destacaram a presença de quadro clínico de artrite com características não habituais (simétrica, duração mais prolongada, curto período de latência após infecção estreptocócica e má resposta aos salicilatos), sendo sugerida uma resposta imunológica alterada a algum tipo de modificação antigênica do estreptococo beta-hemolítico do grupo A. Desde então, diversos autores vêm se referindo a quadros clínicos de artrites após infecção pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A, com as características descritas, não habituais ao padrão descrito pelos critérios de Jones. Nódulos subcutâneos 4,9% Eritema 14,6% Coreia 31,7% Cardite 75,6% Artrite 75,6% 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% Figura 1 Frequência dos sinais maiores dos critérios diagnósticos de Jones em 41 pacientes com diagnóstico de febre reumática Os estudos presentes na literatura acerca dessa forma de apresentação de artrite após infecção pelo estreptococo são relativamente escassos e heterogêneos, muitas vezes baseados em relatos ou séries de casos, o que limita o conhecimento claro da causalidade dessa forma de apresentação. Baseado nos resultantes conflitantes da literatura surgiu a curiosidade de mapear o perfil dos pacientes com diagnóstico de FR do nosso serviço, com maior ênfase no padrão de apresentação do acometimento articular. No presente estudo, a idade dos pacientes no momento do diagnóstico variou de 5 a 16 anos, com uma média de idade de 9,2 anos, o que é semelhante a resultados descritos anteriormente em outras regiões do Brasil. 1,9 De acordo com a literatura, a incidência da FR é maior entre 5 e 15 anos, tanto para o primeiro surto quanto para recidivas. 16 Não houve, portanto, variações de idade de início da doença para a FR com padrão articular atípico. Dos pacientes estudados, 61% eram do sexo masculino (proporção 1, 6:1). Este é um resultado contraditório à maioria dos autores, que evidenciam maior prevalência da FR no sexo feminino, entre 55%-60,5%. 1,2,17 Quanto aos critérios maiores de Jones, não houve predomínio da artrite sobre a cardite, como na maioria dos estudos da literatura, com prevalências semelhantes para ambas as manifestações clínicas (75,6%), o que pode ser justificado pela inclusão de pacientes oriundos de um centro de referência em cardiologia pediátrica (fig. 1). A prevalência da artrite diverge na literatura, mas nossos resultados foram semelhantes aos estudos de Motta e Meira 18 e Terreri et al., 1 que evidenciaram artrite em 71,4% e 70, 5% dos pacientes estudados, respectivamente. No presente estudo, 51,6% dos pacientes apresentavam acometimento em mais de uma e até em cinco articulações; 19,4% em apenas uma articulação, e 29% dos pacientes em mais de cinco articulações. Esse resultado revelou no nosso meio, uma alta prevalência de apresentação oligoarticular na FR no nosso meio, e estas formas de apresentação sem dúvida geram dificuldades diagnósticas e atrasos terapêuticos. A tabela 1 ilustra a frequência de monoartrite na FR em diferentes estudos, chamando a atenção para essa possibilidade no cortejo clínico da FR, em contrapartida ao definido pelos critérios de Jones. 12,19-22 Um exemplo na prática clínica é a suspeição de artrite séptica nos casos de monoartrite em vigência de febre, acarretando perda de tempo com procedimentos diagnósticos e intervenções terapêuticas invasivas e desnecessárias. Mataika et al. descreveram três casos de monoartrite tratados inicialmente como artrite séptica, com diagnóstico posterior de FR, na vigência do desenvolvimento de cardite. 23 Oligoartrite Monoartrite Resposta inadequada ao AINH Duração > 3 semanas Pequenas ar culações e/ou esqueleto axial 6,5% 19,4% 29% 38,7% 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% Figura 2 Percentual das manifestações articulares atípicas em 41 pacientes com diagnóstico de febre reumática 52% Tabela 1 Percentual de monoartrite na febre reumática segundo diferentes autores Estudo Percentual de monoartrite Khriesat I, 2003 12 32% Carapetis, 2001 19 17% Ralph A, 2006 20 5,5% Harlan GA, 2006 21 3,3% Olgunturk, 2006 22 16% Estudo atual 19,4%

271 Dentre as articulações mais envolvidas nos pacientes com acometimento monoarticular, têm sido descritas o joelho, seguido de articulações do esqueleto axial e do tornozelo. Harlan et al. 21 avaliaram 92 pacientes com FR e, destes, três apresentaram monoartrite (quadril em um paciente e joelhos em dois) semelhante à Pileggi et al. 9, que também encontraram três casos de monoartrite, dois em joelho e outro em articulação coxofemoral. No presente estudo, o acometimento monoarticular ocorreu nas seguintes articulações: joelho (4/6), articulação do pé (1/6) e tornozelo (1/6). O envolvimento de pequenas articulações, como metacarpofalangianas e metatarsofalangianas e de articulações do esqueleto axial, como coluna, sacroilíaca e quadril, são manifestações descritas, 9,10 podendo gerar dificuldades diagnósticas com a artrite idiopática juvenil e as espondiloartrites juvenis (tabela 2). O envolvimento de pequenas articulações esteve presente em 18% dos casos analisados por Lin Chen et al. 24 e, em 38,7% dos pacientes do. presente estudo, ocorrendo principalmente em pés e mãos, e, em menor número, nas articulações do esqueleto axial. Alguns pacientes com diagnóstico de FR não apresentam resposta clínica favorável após o uso adequado de AINH, necessitando do seu uso prolongado pela presença de artrite de evolução prolongada. No presente estudo, a despeito do uso precoce dessa medicação, nos primeiros dias após o diagnóstico de artrite, 4,9% dos pacientes apresentaram-se como mal responsivos ao AINH. Tal achado ocorreu, por sua vez, em 19,56% dos pacientes do estudo de Ferriani et al. 2 É ainda considerada manifestação clínica não habitual e que dificulta e prolonga diagnóstico final de FR, a presença de artrite como única manifestação clínica, que ocorreu em 19,4% dos pacientes (6/31). Harlan et al. 21 demostraram que o tempo para diagnóstico de FR foi superior a quatro semanas em 59% dos pacientes com artrite atípica em comparação a 35% nos outros pacientes. 21 Outro aspecto que dificulta o diagnóstico da FR é o diagnóstico laboratorial. Além de inespecíficas, as alterações laboratoriais podem não estar presentes em um percentual relevante de pacientes, seja por fatores diversos, desde ao período da coleta, uso de antibioticoterapia prévia e acessibilidade à realização dos exames em tempo hábil, entre outros. Considerando especificamente os pacientes que cursaram com manifestações atípicas, as provas de atividade inflamatória foram positivas em apenas 56% dos pacientes e o ASLO em 44%. Robazzi (2012) Pileggi(2000) Stollerman (1975) Os resultados revelam, portanto, um considerável percentual de pacientes com manifestações articulares atípicas, corroborando para o que vem sendo observado há algum tempo por outros autores (fig. 3) e chamando atenção mais uma vez para a necessidade de ter em mente essa possibilidade de apresentação articular na FR. Conclusão A partir dos resultados do presente estudo, pode-se destacar a importância do reconhecimento por reumatologistas, pediatras e até mesmo clínicos, de apresentações articulares atípicas no quadro clínico da FR, evitando atrasos diagnósticos desnecessários e, por consequente, atraso terapêutico, com risco de sequelas cardíacas irreversíveis. Essa suspeição diagnóstica deve ser aventada, diante de pacientes com evidência de infecção pelo estreptococo beta -hemolítico do grupo A, que não preenchem os critérios de Jones modificados para o diagnóstico de FR e desenvolvem quadro clínico de artrite de início agudo, oligo ou monoarticular, simétrica ou assimétrica, usualmente não migratória, podendo acometer qualquer articulação e com má resposta ao ácido acetilsalicílico. Conflitos de interesse Os autores declaram não haver conflitos de interesse. REFERÊNCIAS 32,00% 47,00% 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% Figura 3 Comparação do percentual de manifestações atípicas entre diversos autores 70,9% Tabela 2 Articulações acometidas em pacientes com febre reumática de acordo com diferentes autores Articulações Pileggi (2000) 9 % Hilário (1995) 10 % Estudo atual% Joelho 75 76 74,2 Tornozelo 79 62 61,3 Cotovelo 19 29 29 Punho 25 28 32,3 Pequenas 32/26 13/15 22,6 articulações (pés e/ou mãos) Ombro 19 12 12,2 Coluna cervical 26 15 9,7 Coluna lombar 4 07 6,5 1. Terreri MTR, Caldas AM, Len CL, Ultchak F, Hilário MOE. Características clínicas e demográficas de 193 pacientes com febre reumática. Rev Bras Reumatol. 2006;46:385-90. 2. Ferriane VPL. Manifestações articulares da febre reumática. Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;15:18-27. 3. Habib GS, Saliba WR, Mader R. Rheumatic fever in the Nazareth area during the last decade. Isr Med Assoc J (IMAJ). 2000;433-7. 4. Carcellera A, Tapiero B, Rubin E, Miró J. 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