Arena de debates A RELAÇÃO ENTRE VIRTUDE E FELICIDADE NA FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT Gustavo Ellwanger Calovi 1 1. A dignidade de ser feliz e o sumo bem na Crítica da Razão Pura No Cânon da Crítica da Razão Pura 2, depois de ter mostrado que o uso especulativo da razão pura, relativamente às idéias, não amplia minimamente o conhecimento, Kant busca dar respostas às três questões que estão no cerne da sua investigação filosófica. Segundo ele, todo o interesse da razão (tanto especulativo quanto prático) concentra-se nas três seguintes perguntas: o que posso saber? O que devo fazer? O que me é permitido esperar? (Cf. KANT, B 833). No entender de Kant, a primeira pergunta é puramente especulativa (CRP, B 833), na medida em que se refere a todo o conhecimento sensível. Segue-se que uma resposta plausível para ela deveria levar em consideração dois pressupostos importantes. No que se refere ao conhecimento 3, o entendi- 1 Aluno do Programa de Pós-graduação em Filosofia (PPGF) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e bolsista CAPES. 2 Desde a primeira Crítica, Kant mantém a mesma definição quanto a questão do sumo bem. Por essa razão, nos reportamos somente ao Cânon da Critica da Razão Pura. Ora, o sumo bem continua consistindo na união de felicidade e moralidade (dignidade de ser feliz). No entanto, na filosofia madura de Kant, parece que são as idéias de Deus e de imortalidade que passam de um nível fundamental para um nível regulativo. 3 Aqui trata-se unicamente do conhecimento das ciências em geral, na medida em que se limitam a objetos dados na intuição sensível. Filosofazer. Passo Fundo, n. 32, jan./jun. 2008, p. 109-119. 109
mento, na medida em que faz uso constitutivo de todos os seus conceitos, se restringe ao âmbito da experiência possível. Por outro lado, o conhecimento acerca da origem e do limite de toda a possibilidade do conhecer é possível somente mediante a reflexão transcendental, que é uma função unicamente da razão especulativa. O problema fundamental do conhecimento é relativo ao que garante a sua validade objetiva. Nesse sentido, a relação com o objeto deve resultar da base do conhecimento mesmo, sob a luz da razão e mediante o reconhecimento das suas condições e seus próprios limites. 4 Não obstante, o limite do conhecimento pressupõe, necessariamente, um esforço para fora dele, que, como tal, precisa ser pensado sob tal condição. Segundo as palavras de Kant, a razão, então, [...] é impelida por um pendor de sua natureza, a ultrapassar o uso da experiência e a se aventurar, num uso puro e mediante simples idéias, até os limites extremos de todo o conhecimento, bem como a não encontrar paz antes de atingir a completude de seu círculo num todo sistemático e auto-subsistente (CRP, B 825). As idéias ou conceitos puros da razão são sempre transcendentes (não possuem um correspondente na esfera do mundo sensível) para a razão especulativa no que diz respeito ao conhecimento. Portanto, segundo Kant, a resposta à primeira pergunta poderia ser que podemos conhecer somente aquilo que a experiência puder nos mostrar, ou seja, aquilo que a experiência puder nos proporcionar. A segunda pergunta (ou questão) é essencialmente prática e embora enquanto tal possa pertencer à razão pura, mesmo assim não é transcendental, mas sim moral (CRP, B 833). Segundo Kant, existem somente duas espécies de princípios de determinação da vontade: o material e o formal. Os princípios materiais têm por finalidade a felicidade do homem, na medida em que ela consiste na satisfação de todas as nossas inclinações (CRP, B 834). Esses princípios são empíricos e, portanto, somente possíveis mediante as leis da natureza. O princípio formal, ao contrário, abstrai das condições empíricas e tem como fundamento determinante unicamente a liberdade atribuída aos seres racionais (em geral). Quem fornece as leis morais ao homem é apenas a sua razão de modo totalmente a 4 No, el problema fundamental que el conocimiento plantea, el de lo que garantiza su validez objetiva, su relacón com el objeto, debe ser resuelto partiendo de la base del conocimiento, bajo la clara luz de la razón y mediante el reconocimiento de sus condiciones y límites peculiares (CASSIRER, 1985, p. 158). 110 Filosofazer. Passo Fundo, n. 32, jan./jun. 2008, p. 109-119.
priori. A lei moral, na medida em que determina imediatamente à vontade, é um mandamento incondicional. Dá-se que o homem tem de agir de tal forma para que se realize enquanto humano e racional. Sendo assim, a resposta à segunda pergunta é a seguinte: faze aquilo através do que te tornarás digno de ser feliz (CRP, B 836/ 837). A partir deste pressuposto, podemos afirmar que a teoria moral está diretamente associada, pelo menos enquanto idéia, à felicidade. Pois A lógica da argumentação moral é que a harmonia entre a lei moral e a felicidade pode coexistir sem contradição; porém a condição é que a lei moral é inviolável (KRASSUSKI, 2005, p. 84). A teoria moral kantiana é, pois, teoricamente constituída a partir da conexão 5 ou união da dignidade de ser feliz e da própria felicidade. Segundo o próprio Kant, no Cânon, assim como nas obras posteriores, uma tal conexão só pode ser esperada se uma razão suprema que comanda segundo leis morais é posta ao mesmo tempo como fundamento enquanto causa da natureza (CRP, B 838). 6 A terceira pergunta de Kant é, pois, ao mesmo tempo, prática e teórica, já que conduz o uso prático e teórico da razão a uma unidade finalística, de tal modo que, o prático serve unicamente como fio condutor para se responder à questão teórica e, no caso desta elevar-se à questão especulativa (CRP, B 833). A possibilidade de uma resposta à última pergunta depende diretamente da solução dada à segunda questão, ou seja, aquela lhe serve de condição; se houver um comportamento que, enquanto tal, seja digno de participar dessa felicidade é lícito esperar participar dela. 7 A esperança de participar da felicidade como recompensa final, para o sujeito que age de modo justo, bom e honesto, pode vir somente da lei moral e denomina-se Sumo Bem (KRASSUSKI, 2005, p. 260). De outro modo, as ações morais, enquanto efeitos da liberdade, podem vir a ser realizadas no mundo sensível (mesmo que não cheguem a acontecer). Mesmo assim, Kant diz que em um mundo inteligível pode-se também pensar como necessário um tal sistema de uma felicidade proporcional ligada à moralidade (CRP, B 837); nele, a própria liberdade seria a causa (direta) da felicidade 5 Tal conexão não pode ser compreendida pela razão somente ao nível da natureza como fundamento, mas, sobretudo, a partir da postulação de uma razão suprema. 6 A solução de Kant, portanto, foi articular, pela via moral, a existência de um ser que possibilitasse a conjunção da virtude e da felicidade (Cf. KRASSUKI, 2005, p. 265). 7 A felicidade, enquanto mero ideal da imaginação, não é senão uma representação que consiste na satisfação de todas as inclinações. Dado que ela repousa sobre princípios empíricos e, por conseguinte, materiais e contingentes, não poderia jamais servir como justificativa para o agir ou fundamento da moral. Filosofazer. Passo Fundo, n. 32, jan./jun. 2008, p. 109-119. 111
universal. 8 No mundo sensível, o cumprimento das exigências da lei moral não acarreta, segundo Borges, 112 [...] nenhuma felicidade, a não ser por uma conexão absolutamente contingente. Para um ser finito, não há, portanto, nenhuma correspondência necessária entre felicidade e moralidade, visto que tal ser não é causa da natureza (2003, p. 207). Segue-se que a ligação entre o agir moral e a felicidade pressupõe como necessária a idéia de uma razão suprema (e ordenadora) (Cf. REL, p. 15), enquanto fundamento causal do mundo. Segundo as palavras de Kant: A idéia de uma tal inteligência em que a vontade moralmente mais perfeita é, ligada à bem-aventurança suprema, a causa de toda a felicidade no mundo na medida em que esta última está numa relação precisa com a moralidade (como merecimento de ser feliz), é por mim intitulada o ideal do bem supremo (CRP, B 839). O ideal do sumo bem, denominado por Kant também de ideal do bem supremo originário, é o fundamento da possibilidade do bem supremo derivado, ou seja, o bem enquanto proporção correta da felicidade e da dignidade de ser feliz. 9 A realização do bem supremo derivado deve ser tomada como possível de realização, pois, do contrário, não haveria sentido à própria idéia de moralidade. Nesse sentido, Kant trabalha, no Cânon, a partir da possibilidade de existência de um mundo inteligível, isto é, moral (CRP, B 839). Tal possibilidade, pois, remete à pressuposição de uma vida futura e de um ser supremo. A concepção da moralidade que aparece na Crítica da Razão Pura pode ser considerada heterônoma, diante do restante das obras kantianas. 10 No Câ- 8 Sendo que o sumo bem é a conjunção da moralidade e da felicidade em uma pessoa e não se podendo esperar esta justa conjunção no mundo sensível, tal qual o conhecemos, o sumo bem da pessoa remete a um mundo em que a felicidade seria distribuída exatamente na proporção da moralidade (como valor da pessoa e sua dignidade de ser feliz). A distribuição da felicidade na exata proporção da moralidade ou da dignidade de ser feliz constitui o sumo bem de um mundo possível ou o melhor estado do mundo (BECKENKAMP, 1998,p. 51). 9 O fim (a felicidade) é o bem supremo de um mundo que se espera alcançar, na medida em que a moralidade se cumpre e o homem se torna digno da felicidade a partir do cumprimento do dever. 10 Se avaliarmos a teoria do agir da primeira Crítica à luz da teoria kantiana madura, exposta na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e na Crítica da Razão Prática, então podemos dizer que Kant desenvolveu na CRP uma teoria heterônoma da moralidade. Na Fundamentação, a liberdade prática se identifica com autonomia, isto é, com a propriedade da vontade de ser lei para si mesma. A liberdade não é mais concebida apenas como uma mera racionalidade da ação. Na Crítica da Razão Prática, a autonomia é a capacidade da razão (que passa a ser cha- Filosofazer. Passo Fundo, n. 32, jan./jun. 2008, p. 109-119.
non Kant coloca as idéias de imortalidade e Deus como conceitos necessários para a fundamentação da moralidade. Estabelece (não somente na primeira Crítica) a concepção leibneziana de Deus, a soma total de todas as possibilidades, como uma idéia necessária da razão (KLEIST, 2000, p. 57). 11 Nas palavras de Kant: Já que somos necessariamente constrangidos pela razão e nos representamos como pertencentes a um mundo, embora os sentidos nada mais nos apresentem do que um mundo de fenômenos, temos que admitir aquele mundo moral como uma conseqüência de nosso comportamento no mundo sensível e, já que este último não nos exibe uma tal conexão entre a moralidade e a felicidade, como um mundo futuro para nós. Portanto, Deus e uma vida futura são duas pressuposições inseparáveis, segundo princípios da razão pura, da obrigatoriedade que exatamente a mesma razão nos impõe (CRP, B 839). Segundo Kant, a realizabilidade da moralidade tem de ser pensada como possível. A possível realização da moral, no entanto, não ocorre no mundo empírico (ou sensível). Ora, a partir do momento em que se faz do sumo bem algo realizável que, enquanto tal, ultrapassa a empiria, se está autorizado, segundo Kant, a aceitar a existência de uma alma imortal e, conseqüentemente, a figura de uma razão criadora. Por conseguinte, é por razões sistemáticas, e não necessariamente morais ou práticas, que o homem tem motivos para esperar outra vida e uma felicidade futura, que, enquanto tal, exerce também apenas um papel sistematicamente necessário. A felicidade é um segundo elemento do sumo bem e, por isso, apenas complementar na realização efetiva da moralidade. Com efeito, somente a idéia de liberdade é um pressuposto necessário para a justificação do agir moral. No entanto, no Cânon, as idéias de Deus e imortalidade da alma não são descartadas. Pois, segundo Kant, se o sumo bem, que é o bem perfeito, é o objeto último da conduta humana, deve ser pensado como realizável. Portanto (se a moralidade é necessária), o homem está autorizado a supor, como necessárias, as idéias de Deus e imortalidade, enquanto postulados da razão pura prática. mada de razão pura prática na medida em que a lei moral se impõe na consciência como um facto da razão) de determinar o arbítrio de um modo absolutamente independente de qualquer impulso sensível. Em outras palavras, Kant assume, em sua teoria moral madura, o conceito de liberdade prática em sentido forte, na medida em que atribui à lei moral a condição de móbil suficiente da ação. 11 No original: Kant establishes the Leibnizian conception of God, the sum-total of all possibility, as a necessary idea of reason. Filosofazer. Passo Fundo, n. 32, jan./jun. 2008, p. 109-119. 113
2. O conceito de sumo bem na Dialética da razão prática O conceito de sumo bem e a relação entre moralidade e felicidade são trabalhados por Kant, na Crítica da Razão Prática Pura 12, na segunda seção, intitulada Dialética da razão prática pura. De acordo com Kant, a razão pura, tanto no seu aspecto especulativo, como no prático, busca a totalidade absoluta das condições para um condicionado dado (CRPr, A 192). A reflexão sobre essa busca é caracterizada como inevitável à investigação da razão pura, na medida em que propicia estabelecer os limites do uso teórico e prático e também prevenir que venha a cair em uma ilusão decorrente do fato de ultrapassar tais limites. Dessa forma, segundo Kant, a razão no seu uso prático, procura a totalidade incondicionada do objeto da razão prática pura sob o nome de sumo bem (CRPr, A 194). A importância de analisar a significação do sumo bem e a relação existente entre virtude e felicidade, os dois elementos que o compõe, constitui-se numa tarefa essencial para compreender os desdobramentos da ética kantiana, na medida em que somente a lei moral pode vir a determinar a vontade na realização da ação moral. No entanto, ele entende que o sumo bem é o objeto total da razão prática pura, a qual necessariamente tem de representá-lo como possível, porque é um mandamento da mesma contribuir com todo o possível para a sua produção (CRPr, A 214-215). Entendido que a lei moral é o único fundamento determinante da vontade e o sumo bem o objeto da razão prática pura, Kant esclarece que [...] por mais que o sumo bem seja sempre o objeto total de uma razão prática pura, isto é, de uma vontade pura, nem por isso ele deve ser tomado pelo seu fundamento determinante e a lei moral, unicamente, tem que ser considerada o fundamento para tomar para si como objeto aquele sumo bem e a sua realização ou promoção (CRPr, A 196). O sumo bem, segundo Kant, é constituído de duas partes, isto é, a virtude e a felicidade constituem em conjunto a posse do sumo bem. No entanto, antes de elucidar o significado do sumo bem, Kant faz uma ressalva à dialética da razão prática pura: 12 Esta parte do texto é referente à Crítica da Razão Prática, mais precisamente ao segundo livro. Visto que é somente na Dialética da razão prática pura que Kant explicita e relação entre virtude e felicidade. 114 Filosofazer. Passo Fundo, n. 32, jan./jun. 2008, p. 109-119.
A lei moral é o único fundamento determinante da vontade pura. Mas já que este é meramente formal (a saber, exige unicamente a forma da máxima como universalmente legislativa), ele, enquanto fundamento determinante, abstrai de toda a matéria, por conseguinte, de todo o objeto do querer (CRPr, A 196). Kant adota um novo posicionamento frente o significado do sumo bem, diferente daquele da Crítica da Razão Pura, que era entendido como uma força obrigante : na representação de Deus como mola propulsora, ainda estão em jogo restos de heteronomia (Cf. FÖSTER, 1998, p. 34). A mudança no significado consiste em entender que o sumo bem passa a ser o incondicionado, isto é, que corresponde à totalidade do objeto da razão prática pura. No entanto, para que isso seja possível tem que ser admitida a possibilidade de uma perfeita correspondência entre virtude e felicidade na esfera do mundo inteligível. Sendo assim, avança o autor: No sumo bem, que para nós é prático, isto é, efetivamente realizável por nossa vontade, virtude e felicidade são pensadas como necessariamente vinculadas, de sorte que uma não pode ser admitida pela razão prática pura sem que a outra também lhe pertença (CRPr, A 204). Para Kant, entre as escolas gregas somente duas, a estóica e a epicurista, operavam o mesmo método na determinação do sumo bem, na medida em que ambas não deixavam virtude e felicidade valer como dois elementos diversos do sumo bem, por conseguinte procuravam a unidade do princípio segundo a regra da identidade (CRPr, A 200). No entanto, assumiam elementos opostos como fundamento: Segundo o epicurista, o conceito de virtude encontrava-se já na máxima de promover sua própria felicidade; contrariamente, segundo o estóico, o sentimento de felicidade já estava contido na consciência de sua virtude [...]. O estóico afirmava que a virtude é o sumo bem total, e a felicidade apenas a consciência da sua posse como pertencente ao estado do sujeito. O epicurista afirmava que a felicidade é o sumo bem total e a virtude somente a forma de concorrer a ela, a saber, no uso racional dos meios para a mesma (CRPr, A 202). A crítica de Kant se estende a ambas as escolas em razão de que não determinam de uma maneira objetiva os conceitos envolvidos e também por entenderem que se tratava de dois elementos iguais, ou seja, que a ligação entre virtude e felicidade se dava de uma forma analítica. Filosofazer. Passo Fundo, n. 32, jan./jun. 2008, p. 109-119. 115
Para uma análise correta do significado de sumo bem na Crítica da Razão Prática é necessário verificar de que forma se dá a ligação entre virtude e felicidade. A ligação entre estes dois elementos somente pode ser feita mediante o sumo bem. Por não admitir a ligação analítica, Kant afirma que virtude e felicidade estão ligadas de uma forma sintética no sumo bem. Porém, é necessário demonstrar a possibilidade de tal ligação sintética. Admitindo que a ligação se dá de uma forma sintética, Kant exclui a possibilidade da vinculação ser inferida da experiência, na medida em que a única forma de ligação entre virtude e felicidade é admitindo um fundamento não sensível. Por isso, segundo Kant, essa ligação é transcendental na medida em que é [...] a priori (moralmente) necessário produzir o sumo bem mediante a liberdade da vontade; logo, também a condição de possibilidade do mesmo tem que depender meramente de fundamentos cognitivos a priori (CRPr, A 203). Dessa forma, fica evidenciado que o sumo bem não pertence à fundamentação da teoria moral kantiana, mas é produzido a partir da liberdade da vontade, ou seja, o sumo bem é objeto necessário de uma vontade moral última e, dessa forma, remete à análise dos postulados da razão prática. Em suas palavras: Esses postulados não são dogmas teóricos mas pressuposições em sentido necessariamente prático, logo em verdade, não ampliam o nosso conhecimento especulativo mas conferem realidade objetiva às idéias da razão especulativa em geral (mediante sua referência ao domínio prático) e justificam conceitos, cuja possibilidade ela, do contrário, nem sequer poderia arrogar-se afirmar (CRPr, A 238). Os postulados têm como fundamento o princípio supremo da moralidade, que nada mais é do que uma lei que determina imediatamente à vontade. Segundo Kant, devemos postular a imortalidade da alma como possibilidade de satisfazer o ser humano, de uma maneira subjetiva, na sua busca pela perfeição moral. A perfeição moral não pode ser alcançada na esfera do mundo sensível, mas tão somente no mundo inteligível. No entanto, para atingir a realização do sumo bem é necessário conduzir a razão à busca do segundo elemento do sumo bem, isto é, a felicidade. Para atingir esse objetivo, Kant postula a existência de Deus de um ponto de vista prático, ou seja, [...] é moralmente necessário admitir a existência de Deus (CRPr, A 226). Entretanto, adverte que [...] essa necessidade moral é subjetiva, isto é, uma carência, e não objetiva, ou seja, ela mesma um dever; pois não pode haver absolutamente um dever de admitir a existência de uma coisa (porque isto concerne meramente ao uso teórico da razão) (CRPr, A 226). 116 Filosofazer. Passo Fundo, n. 32, jan./jun. 2008, p. 109-119.
Portanto, para a realização do sumo bem é necessário postular a imortalidade da alma e a existência de Deus sob um ponto de vista prático. A primeira parte do sumo bem pode ser entendida a partir do postulado da imortalidade da alma, pois, sendo assim, fica admitida a possibilidade de um processo contínuo em direção à perfeição moral. Já o segundo elemento do sumo bem, a felicidade, é alcançada a partir do postulado da existência moral de Deus, pois, segundo Kant, é necessário admitir a existência de um soberano moral do mundo capaz de avaliar o comportamento moral dos indivíduos e, dessa forma, propiciar a distribuição de um felicidade proporcional à virtude. Somente Deus, enquanto elemento constituinte do sumo bem, é capaz de conhecer as verdadeiras disposições morais do homem. A partir dessa constatação, o autor assegura uma nova significação do sumo bem, ou seja, o conceito passa a ser entendido como a suma inteligência, isto é, como soberano moral do mundo. De acordo com Kant, o sumo bem só é possível no mundo na medida em que for admitida uma causa suprema da natureza que contenha uma causalidade adequada à disposição moral (CRPr, A 225). Após analisar os dois elementos do sumo bem podemos compreender a importância da introdução deste conceito na Critica da Razão Prática. Através da introdução do sumo bem, Kant acena que a vontade aspira sempre a um fim, ou seja, a um interesse contínuo de realização. Esse fim último somente pode ser alcançado se admitirmos a existência moral de Deus. Sendo assim, podemos afirmar que a lei moral conduz, mediante o conceito de sumo bem enquanto objeto e fim terminal da razão prática pura, à religião (CRPr, A 233). Por isso, de acordo com Kant, A lei moral ordena-me fazer do sumo bem possível no mundo o objeto último de toda a conduta. Mas eu não posso esperar efetuar isso senão pela concordância de minha vontade com a de um santo e benévolo Autor do mundo; e conquanto no conceito de sumo bem como um todo, no qual a máxima felicidade é representada como vinculada na mais exata proporção com a máxima medida de perfeição moral (possível em criaturas), a minha felicidade própria esteja também incluída, não é, contudo, ela mas a lei moral (a qual, muito antes, limita rigorosamente sob condições a minha ilimitada aspiração por ela) o fundamento determinante da vontade que é dirigida à promoção do sumo bem (CRPr, A 233-234). Dado que a lei moral conduz inevitavelmente à religião, podemos afirmar que, o argumento kantiano de que a moral conduz a religião, [...] apóia-se na existência de um ser moral, ou, como prefere Kant, de um legislador moral de todos os homens, bem supremo do mundo e que será proposto no contexto Filosofazer. Passo Fundo, n. 32, jan./jun. 2008, p. 109-119. 117
da finalidade (KRASSUSKI, 2005, p. 96). Somente se a religião é acrescida à moralidade é que se pode ter a esperança de [...] torna-nos algum dia partícipes da felicidade na proporção em que cuidamos de não ser indignos dela (CRPr, A 234). 118 Conclusão O mundo moral (o mundo inteligível), possível a partir da liberdade prática, deve ser pensado como independente das inclinações e, de um modo geral, da empiria. Tendo em vista a justificação da moral a partir de princípios práticos puros, Kant aborda o sumo bem enquanto objeto próprio da razão prática. Se o indivíduo agir de acordo com a representação da lei moral, tornar-se-á digno da felicidade; se fizer aquilo que deve lhe é permitido esperar a felicidade na medida em que se tornou digno dela. Portanto, a felicidade aqui, não é simplesmente [...] a satisfação das necessidades, tendências e impulsos naturais, mas um conceito do mundo moral (NODARI, 2005, p. 133-134). Ora, felicidade consiste na satisfação de todas as inclinações (diz respeito à sensibilidade). Não haveria sentido algum (seria contraditório) agir moralmente para, a partir disso, somente tornar-se digno da felicidade, ou seja, digno de satisfazer as próprias inclinações sensíveis. Portanto somente o conceito de felicidade exerce uma função meramente sistemática. No Cânon da Crítica da Razão Pura, devido ao fato de que nem todos os homens seguem os preceitos morais como deveriam, Kant argumenta que é necessário pensar o sumo bem enquanto condição (necessária) de possibilidade da obrigatoriedade da lei moral. Para tanto, a existência de Deus 13 e de uma vida após a morte são pressupostos inseparáveis da obrigação imposta pela razão. Portanto, desde a primeira Crítica, já fica evidenciada a possibilidade de se estabelecer uma ligação (não empírica) entre felicidade e moralidade a partir do sumo bem. 14 13 Segundo a interpretação de Giovanni Salla: Deus não é demonstrável, é certo, mas pode ser postulado: tem de existir um Deus esta exigência é legitimada pela lei moral em nós (1993, p. 558). 14 Para Kant, a moralidade deve constituir um sistema, mas a felicidade não. Entretanto, ela é distribuída de acordo com a conduta moral do indivíduo. Porém, essa distribuição somente é possível num mundo inteligível sob o governo de um soberano moral. Admitindo que o sumo bem deve ser uma condição de possibilidade da obrigatoriedade da lei moral, se a sua existência é absolutamente necessária como condição de justificação da moralidade, então a existência do sumo bem é postulada pela razão prática. De modo que, se houver leis a priori da razão prática e, se essas pressupõem uma existência enquanto força obrigante das mesmas, essa existência deve ser postulada. Entretanto, a existência do sumo bem não deve ser concebida como o fundamento da lei moral. Filosofazer. Passo Fundo, n. 32, jan./jun. 2008, p. 109-119.
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