Violência de Gênero e Polí cas Públicas no Brasil



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Transcrição:

Violência de Gênero e Polí cas Públicas no Brasil Nilcea Freire Representante da Fundação Ford no Brasil. Ex-ministra da Secretaria de Polí cas para as Mulheres da Presidência da República. Em primeiro lugar quero muito agradecer o convite da EMERJ. Somente pela amizade que tenho o prazer de desfrutar do carinho da Adriana e compartilhar da teimosia dessa jovem juíza é que se justifica o fato de terem me convidado para fazer a palestra inaugural deste evento. Sinto-me, portanto extremamente honrada de estar nesta casa. E quero, desde logo, dizer que vou fazer como é meu hábito, algumas poucas provocações para que o debate possa fluir depois. O tema violência de gênero e políticas públicas nos remete a diferentes possibilidades de discussão. A primeira delas é como o Estado Brasileiro e as instituições encaram e incorporam a violência baseada em gênero como um problema a ser tratado e a ser enfrentado no âmbito do Estado. Essa é a primeira questão que se coloca para todos nós que militamos em diferentes setores da sociedade, tendo a violência contra a mulher como uma das questões que nos move a continuar na luta cotidiana. Antes de discutirmos esse tema de como o Estado, como os governos, como a sociedade e as instituições incorporam a questão da violência de gênero na sua agenda, é importante mencionar alguns dados que certamente não são novos, mas que funcionam sempre como um alerta. Comecemos pelos dados de uma pesquisa nacional realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2010, de caráter domiciliar, e que de maneira muito candente confirma algumas hipóteses que 12 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 57 (Edição Especial), p. 12-19, jan.-mar. 2012

todas nós aqui presentes levantamos no nosso cotidiano. A mesma pesquisa foi realizada em 2001 e, portanto podemos ver a evolução da percepção sobre a violência contra a mulher depois do advento da Lei Maria da Penha e da implementação de algumas políticas públicas. Então, a pesquisa de 2010 permite-nos um olhar evolutivo, filtrado evidentemente pelo aparecimento de novas políticas, de novas institucionalidades durante esse período de nove anos. Um dos dados que julgo extremamente importante aponta que 91% dos homens entrevistados consideram errado bater em mulheres. No entanto, 8% desses entrevistados admitem já ter batido em uma mulher. Outros 25% dizem ter conhecimento que um parente próximo já bateu em uma mulher e 48% afirmam ter conhecido outro homem, do seu círculo de relações, que já bateu em mulher. Percebe-se aqui que a resposta politicamente correta não corresponde a uma prática real cotidiana destes mesmos homens. A pesquisa conclui que uma em cada cinco mulheres entrevistadas diz já ter sofrido algum tipo de agressão. Esse dado não muda de 2001 para 2010, o que muda é o tipo de agressão sofrida. De 2001 para 2010, a taxa agregada de violências ou ameaças físicas, cai de 28% para 24%, portanto em que pese todo o esforço que tem sido feito pelos governos, pela sociedade brasileira, pelo Poder Judiciário ou pelos movimentos sociais, a redução com relação à taxa de mulheres que se sentem ameaçadas, ou que sofreram efetiva violência física, diminui muito pouco para um período de quase 10 anos. Em 2001 nós fazíamos uma projeção, a partir da pesquisa da Fundação Perseu Abramo, de que a cada 15 segundos uma mulher era espancada. Em 2010, a pesquisa aponta uma projeção de uma mulher espancada a cada 24 segundos - o que continua sendo absolutamente aterrador e dramático para a sociedade brasileira. A boa notícia é que 84% das mulheres e 85% dos homens já ouviram falar da Lei Maria da Penha. Respectivamente, 78% e 80% tem uma percepção positiva da Lei Maria da Penha, o que é outra boa notícia. De 1998 a 2008, 42 mil mulheres foram assassinadas no país, por diferentes motivações, e este é também um número que nos R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 57 (Edição Especial), p. 12-19, jan.-mar. 2012 13

assusta. Na pesquisa nacional por amostra de domicílios de 2009 (PNAD) foi incluído um módulo sobre vitimização. Quando se cruzam as variáveis agressão física e local onde esta ocorreu evidenciase que 12,3% dos homens foram agredidos na sua própria casa contra 43% de mulheres. Ao contrário quando se trata da via pública são os homens a maioria entre os que sofrem agressões, 56% e 36% respectivamente. O dado da PNAD que mais confirma a tragédia refere-se ao sexo do agredido/da. Dentre os homens, 2% relatam já terem sido agredidos por seu cônjuge ou por sua companheira, enquanto 25,9% das mulheres que foram agredidas confirmam terem sido agredidas por um homem dentro da sua própria casa, sendo este seu cônjuge, seu companheiro, seu ex-companheiro ou seu ex-cônjuge. Outro dado importante refere-se ao número de atendimentos realizados pelo, Ligue 180, número criado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres para atender e orientar mulheres vítimas de violência ou quaisquer outras pessoas da sociedade que busquem esse serviço, em 2010. Foram 734.400 pessoas atendidas em ligações provenientes de todos os recantos do nosso país. Portanto esses dados são absolutamente suficientes para demonstrar que a violência doméstica e intrafamiliar contra a mulher ou a violência baseada em gênero é um problema diante do qual o Estado brasileiro não pode se calar. Só se enfrenta a violência contra a mulher se Estado e sociedade de maneira absolutamente articuladas puderem enfrentar essa questão. Hoje no Brasil, apesar de muitos avanços, continua sendo um enorme desafio a implementação de políticas públicas que visem à garantia de direitos à população. O Brasil é um país que tem uma Constituição avançada, fruto da imensa mobilização da sociedade brasileira, chamada de Constituição Cidadã na qual muitos direitos estão assegurados. Mas, por outro lado, o Brasil ainda é um país cuja implementação daquilo que está plasmado em seu arcabouço legal, ainda é muito difícil. Portanto a distância entre intenção e gesto ainda continua sendo grande. Logo, quando se fala de políticas públicas voltadas ao enfrenta- 14 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 57 (Edição Especial), p. 12-19, jan.-mar. 2012

mento a violência contra as mulheres estamos falando de um desafio, não estamos fazendo um relato de sucessos. Há sucessos sim, mas sucessos que estão vinculados o tempo inteiro a desafios enormes. Desafios que começam pela alocação de recursos em qualquer dos Poderes, e não estou falando exclusivamente do Poder Executivo mas também do Judiciário. Sinto-me muito à vontade de falar isso nesta Casa, porque através desta parceria vamos conseguir superar, esse desafio. Por exemplo, quando eu estava à frente da Secretaria de Políticas para as Mulheres, no primeiro ano de gestão em que conseguimos orçamento para apoiar estados e municípios com valores que se aproximavam de um milhão de reais por unidade da federação para o desenvolvimento de políticas de enfrentamento à violência contra a mulher, nós comemoramos de maneira entusiasmadíssima. Mas sabemos que um milhão de reais por estado ainda é muito pouco quando se trata de fazer face à violência contra as mulheres. Muito mais ainda quando se pensa que, em praticamente todos os Estados da Federação, o único recurso disponível é o que vem do Governo Federal. Muitas vezes o auxílio que chegou ao Poder Judiciário para a implementação da Lei Maria da Penha também estava incluído neste mesmo montante. Outro enorme desafio está relacionado à cultura política existente no nosso país. É o desafio da continuidade, é o desafio de trabalharmos com uma perspectiva processual e não uma perspectiva personalista ou de conjuntura política. Ou seja, o Brasil infelizmente tem uma tradição de descontinuidade das políticas públicas, porque cada um que chega ao poder, ainda que vá continuar fazendo a mesma coisa, quer mudar o nome do programa, quer colocar o seu carimbo para marcar a sua passagem, como se o melhor registro não fosse o dos resultados obtidos. Essa cultura política no Brasil é absolutamente prejudicial à consolidação das políticas públicas e sociais e é preciso superar isso. Creio que, em certa medida, nós temos caminhado para a superação, eu diria dessa chaga nacional. Entretanto isso ainda é muito presente na cultura política brasileira. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 57 (Edição Especial), p. 12-19, jan.-mar. 2012 15

Um terceiro desafio refere-se ao chamado Pacto Federativo. Há ainda muita dificuldade de articulação entre as diferentes esferas de poder e entre os poderes. Por outro lado, outra característica extremamente importante é das políticas públicas é a equidade. As políticas voltadas ao enfrentamento da violência contra as mulheres, apesar de um nítido recorte de proteger um segmento da sociedade, visam à equidade porque objetivam equilibrar na sociedade brasileira, o poder entre homens e mulheres, de forma a permitir a criação de um ambiente solidário entre eles. Um ambiente em que a violência não seja autorizada socialmente, como a história da violência contra a mulher no nosso país demonstra ser. Aliás, não só em nosso país mas também na Espanha. Quero enfatizar que o fenômeno é semelhante e que a Espanha é uma referência para nós no enfrentamento à violência contra a mulher e foi uma referência extremamente importante no processo de elaboração da Lei Maria da Penha. Partindo desses desafios, o que tem acontecido no Brasil? Se nos reportarmos ao ano de 1985, veremos que, por força do movimento de mulheres, por força do movimento feminista, foi criada a primeira Delegacia especializada de Atendimento à Mulher. Ou seja, de 1985 aos anos 2000 praticamente a única política pública existente no país para fazer face à violência contra a mulher foi a criação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher. Este processo foi extremamente relevante mas também cheio de percalços. As delegadas, algumas das quais aqui presentes e que foram verdadeiras heroínas nesse processo, receberam incumbências para as quais elas não estavam devidamente preparadas. Elas assumiram as delegacias especializadas em circunstâncias em que tiveram que ser ao mesmo tempo psicólogas, assistente sociais e mediadoras de conflitos. As Delegacias Especializadas eram o único lugar para onde as mulheres podiam ir ou onde as mulheres podiam pedir socorro. Posteriormente e de maneira muito lenta, foram sendo criados os Centros Especializados de Atendimento à Mulher e as casas de abrigo. No início dos anos 2000 havia no país não mais que cerca de 16 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 57 (Edição Especial), p. 12-19, jan.-mar. 2012

quinze Centros Especializados, em pleno funcionamento; duas Defensorias Públicas especializadas, uma aqui no Rio de Janeiro (aliás o NUDEM Núcleo de Defesa da Mulher foi pioneiro), e uma outra na Paraíba. Não havia nenhuma Promotoria especializada. Por incrível que pareça, a política pública, depois das DEANS (Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher), mais implementada nestes primeiros anos foi a de criação das casas-abrigo. Isso por uma noção de que proteger significa esconder as mulheres e não fazer com que elas não sejam mais vítimas. Então a casa-abrigo era a política mais fácil quando os prefeitos assumiam a prefeitura e as mulheres pediam uma política pública. A pressão do movimento social de mulheres acontecia, eles instalavam uma casa-abrigo, faziam uma inauguração e isso queria dizer que eles estavam cuidando das mulheres. Por essa razão, o número de abrigos era até maior que dos Centros Especializados de Atendimento às Mulheres. Hoje a situação mudou um pouco, mas os números do ponto de vista de serviços mostram-nos que há ainda muito que fazer. Hoje nós temos 411 serviços especializados, tenham eles os nomes que tiverem: centro de referência, centro especializado de atendimento à mulher, núcleo integrado de atendimento às mulheres. Esses dados estão na página da Secretaria de Políticas para as Mulheres, portanto imagino que sejam atuais. Contamos hoje com 471 unidades policiais entre delegacias especializadas e postos dentro das delegacias especializadas, cerca de 249 serviços na área da saúde que fazem atendimento especializado a mulheres vítimas de violência; cerca de 72 abrigos ou casas-abrigo e 95 juizados especializados e varas adaptadas ; 48 promotorias especializadas e 58 defensorias. Estes são números que mostram avanço, mas ao mesmo tempo são pequenos, tendo em vista as dimensões do país. É necessário atualizar constantemente esses números, porque a vida e morte desses serviços não está sob o nosso controle. Ou seja, um serviço que foi criado por um governo, no governo seguinte pode simplesmente desaparecer. Não porque o governo resolveu fechar, mas R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 57 (Edição Especial), p. 12-19, jan.-mar. 2012 17

simplesmente porque o governo deixou de apoiar a sua existência. Mas considero que há boas notícias com as quais queria fechar esta minha fala. Em primeiro lugar, voltando àquele dado inicial de que 91% dos homens acham errado bater em mulher. Evidentemente que isso não acontece fortuitamente, isso é fruto de uma nova consciência que se não se implanta radicalmente, implanta-se insidiosamente. Ou seja, a partir da Lei Maria da Penha - e é importante que isso seja dito estabelece-se no país um novo paradigma, estabelece-se no país uma nova regra moral sobre a violência contra a mulher e é essa nova regra moral que faz com que esses 91% de homens digam que é errado bater em mulher - mesmo que na calada da noite no interior de seus lares eles continuem batendo - mas pelo menos, eles agora sabem que é errado. Então essa nova regra moral - ela tem um poder muito grande e é por isso que, do ponto de vista das políticas, é importantíssimo insistir na fixação dessa nova regra moral na sociedade. A fixação dessa nova regra moral só se dá através de campanhas, através de processos educativos, de intervenção na cultura hegemônica estabelecida na sociedade. Por isso, consoante o compromisso da Fundação Ford no Brasil ao longo de seus quase 50 anos de existência, apoiamos o lançamento da campanha Quem Ama, Abraça porque o nosso compromisso com os direitos humanos neste país não pode estar distante do compromisso de enfrentamento à violência contra as mulheres. Por outro lado, é extremamente importante e alvissareiro ver o mutirão que foi realizado pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, pelas DEAMS promovendo uma campanha que se opõe ao velho ditado ruim com ele e pior sem ele. Eu adorei quando vi o mote da campanha das nossas queridas delegadas da mulher; melhor sem ele. Amanhã acontecerá um evento no Conselho Nacional de Justiça para fortalecer a articulação entre o Judiciário e o Poder Executivo no enfrentamento à violência contra as mulheres. Temos no país uma excelente lei, considerada uma das três melhores legislações no mundo sobre violência contra a mulher e 18 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 57 (Edição Especial), p. 12-19, jan.-mar. 2012

uma política pública de larguíssimo alcance, que é o Pacto Nacional de Enfrentamento a Violência contra a Mulher, basta fazê-los acontecer. Hoje, a partir de meu novo vínculo institucional, quero afirmar que vocês podem contar com a parceria da Fundação Ford no enfrentamento à violência contra as mulheres. Muito Obrigada. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 57 (Edição Especial), p. 12-19, jan.-mar. 2012 19