Licença para morrer: a questão do sepultamento dos ingleses por ocasião dos Tratados de 1810



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(Perry Anderson, Linhagens do Estado absolutista. p. 18 e 39. Adaptado)

Transcrição:

1 Licença para morrer: a questão do sepultamento dos ingleses por ocasião dos Tratados de 1810 Heraldo Costa RESUMO: A presente comunicação pretende analisar de que modo, a partir do Tratado de Comércio e Navegação de 1810, foi possível aos ingleses construir e fazer funcionar, no Rio de Janeiro, um cemitério próprio que, juntamente com a garantia de uma sepultura, lhes possibilitasse praticar suas cerimônias fúnebres sem a interferência da jurisdição católica. A propósito desta questão, busco identificar as dificuldades para a efetiva implementação dos termos deste Tratado diante dos problemas enfrentados pelos ingleses, especialmente na cidade de Sorocaba, quando do episódio da interdição do sepultamento de um protestante no cemitério católico, que levou D. João a decretar o estabelecimento de um cemitério especificamente destinado aos anglicanos, em 1811. Fato este que demonstra a complexidade do cumprimento dos acordos entre Portugal e Inglaterra no que tange à questão dos sepultamentos dos não católicos. Frente a esta problemática, o estabelecimento de cemitérios para os ingleses em várias cidades portuárias na Colônia se colocou na ordem do dia, como seria o caso do criado no Rio de Janeiro, na Gâmboa, no mesmo ano de 1811. PALAVRA CHAVE: Cemitério público, protestantismo, cidadania. ABSTRACT The purpose of this is to analyze how, starting from the Tratado de Comércio e Navegação de 1810, it was possible for the English to build and to do the service in Rio de Janeiro. And to own a cemetery that permitted them to practice their funeral ceremonies without the influence of the Roman Catholic jurisdiction. Concerning this subject, I have looked to identify the ways for effective implementation of the terms to the Agreement prior to the problems faced by English specifically in the Sorocaba city, São Paulo State, when the Protest burial interdiction episode took place in a Roman Catholic cemetery that took Dom João to decree the establishment of a cemetery specifically destined for the Anglicans in 1811. This analyze, demonstrates the complexity of the execution of the Agreements between Portugal and England concerning the burial of a person who is not a Catholic. I purpose to show the establishment of cemeteries for the English in several port cities in the Colony following the order of the day including the servant s case in Rio de Janeiro, in the Gamboa neighborhood, in the year of 1811. KEY WORDS: public cemetery, Protestantism, citizenship. A transmigração da família real para o Rio de Janeiro, em 1808, foi motivada pelas circunstâncias da invasão da Metrópole pelas tropas napoleônicas, em represaria a recusa de Portugal em aderir ao Bloqueia Continental. Para esta decisão, muito contribuiu a Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Salgado de Oliveira-UNIVERSO, sob orientação da Profª Drª Cláudia Rodrigues.

2 existência, desde o século XVII, de propostas de transferência da Corte para o Brasil, como solução de emergência em momento de crise (NEVES, 2002: 701). O Rio de Janeiro até aquele momento resumia-se a uma simples sede de vicereino, cujas Capitanias entendiam-se melhor com a Metrópole d`além mar do que com a capital da Colônia. Marcelo Basile ressalva que a transmigração da Corte para o Brasil teve como base um projeto reformista ilustrado de constituição no Brasil de um poderoso Império Luso-Brasileiro. A partir de então, o Rio de Janeiro tornou-se a importante capital de um vasto império mundial que, além de Portugal e Brasil, compreendia também possessões em mais outros continentes, como a África e a Ásia (BASILE, 2000:188). É nesse contexto, que o plenipotenciário português residente em Londres, Domingos de Souza Coutinho, assinou em 22 de outubro de 1807 com o representante inglês George Canning uma Convenção Secreta que previa o deslocamento da Corte portuguesa para o Brasil, delineando o perfil das futuras relações comerciais entre a Inglaterra, Portugal e Brasil (ARRUDA, 2008: 37-38). Através da Convenção, os ingleses procuraram garantir que uma vez instalada no Brasil, a Corte portuguesa implementasse tratados de auxílio e comércio entre os dois países. Exemplo disso é que um dos artigos da convenção, que seria excluído do texto final, foi o que demonstrava o real interesse inglês de obter a exclusividade do comércio no Brasil, reservando para si um porto na ilha de Santa Catarina ou em qualquer lugar da costa (Idem: 28). Segundo José Jobson Arruda, a Transferência da Corte para o Brasil transformava-se, pouco a pouco, na forma pela qual se viabilizaria a hegemonia inglesa no Brasil, independente dos circunstanciamentos de ordem política e militar, todos eles secundarizados em função dos ganhos da política sistemática de expansão, pois aproximariam, de modo irreversível, os mercadores ingleses do Brasil, eliminando o entreposto que havia se tornado excessivamente complicado nos últimos tempos. George Canning, à testa do Foreign Office, diligenciou para que as metas hipóteses da Convenção Secreta de Londres se transformasse em realidade. (Idem: 29) Como se percebe na citação acima, a decisão da fuga atendia aos interesses do aliado inglês. Esses fatores definiram a atuação do Príncipe Regente D. João a partir do momento em que chegou à Bahia no princípio de 1808. Estando o Reino ocupado pelos Franceses, era inevitável a extinção do exclusivo comercial, o que foi feito através da abertura dos portos às nações amigas. Decretada em 28 de janeiro, teve em vista a necessidade de

3 deslocar para o Brasil os navios que se dirigiam para os portos metropolitanos. Neste sentido, a abertura dos portos brasileiros às nações amigas constituiu um passo importante na mudança do estatuto colonial. Marcelo Basile sustenta que o governo inglês exigia vantagens especiais em troca do serviço de escolta e proteção prestado à comitiva real, bem como do auxílio militar dado na luta para expulsar os franceses de Portugal. Inaugura-se o período de preeminência inglesa no Brasil (BASILE, 2000:189/190). A partir desta medida, os estrangeiros passaram a chegar ao Rio de Janeiro, principalmente os comerciantes ingleses. Entretanto, a Abertura dos Portos, por si só, não foi suficiente para os ingleses, que demandavam mais vantagens e garantias para o seu estabelecimento nas terras americanas. O que foi obtido por novos acordos, a exemplo dos Tratados de 1810, que foram o de Aliança e Amizade, contendo 11 artigos públicos e decretos, e o de Comércio e Navegação, contendo 32 artigos, além de uma Convenção 1, contendo 13 artigos. (FARIA, 2000: 703). Dentre as medidas contidas nos tratados, podemos destacar: a instituição de corte privativa aos ingleses em solo na Colônia, cujos magistrados especiais seriam eleitos pelos ingleses residentes; autorização, privativa aos ingleses, de cortar e comprar madeiras nos bosques, florestas e matas brasileiras para construção de navios de guerra, com a ressalva daquelas matas destinadas à marinha portuguesa; não permissão do estabelecimento da inquisição no território americano; abolição gradual da escravidão e delimitação das possessões portuguesas na África como único local no qual continuaria o tráfego escravista. (FARIA, 2000: 702-704). Ainda que algumas destas medidas não tenham alcançado efetiva prática, desagradaram sobremaneira aos contemporâneos, gerando sentimento antibritânico. Alem disso, a Igreja, através do Núncio papal, colocou os mais sérios empecilhos à tramitação dos acordos por não aceitar as cláusulas que permitiam a liberdade religiosa que analisarei mais adiante e proibiam a Inquisição nas colônias portuguesas (FARIA, 2000: 702-704; MANCHESTER, 1973:87). Nos tratados, os ingleses também obtiveram espaço para exercitar suas práticas religiosas. O que consta do artigo 12 do Tratado de Comércio e Navegação, como passo a destacar: Sua Alteza Real O Príncipe Regente de Portugal declara e se obriga no seu Próprio Nome, e no de Seus Herdeiros e Sucessores, a que os Vassalos de Sua Majestade Britânica residentes nos Seus Territórios, e 1 Convenção esta que parece ter sido a divulgação daquela Convenção Secreta mencionada anteriormente.

4 Domínios não serão perturbados, inquietados, perseguidos, ou molestados, por causa de Sua religião, mas antes terão perfeita liberdade de Consciência, e licença para assistirem, e celebrarem o Serviço Divino ao Todo Poderoso Deus, quer seja dentro de suas Casas particulares, quer nas suas particulares Igrejas e Capelas, que Sua Alteza Real agora, e para sempre, graciosamente lhes Concede a permissão de edificarem e manterem dentro dos Seus Domínios. Contanto porem que as Sobreditas Igrejas e Capelas serão construídas de tal modo que externamente se assemelhem a Casas de habitação; e também que o uso dos Sinos lhes não seja permitido para o fim de anunciarem publicamente as horas do Serviço Divino. De mais estipulou-se que nem os Vassalos de Grã-bretanha, nem outros quaisquer estrangeiros de Comunhão diferente da Religião Dominante nos Domínios de Portugal serão perseguidos, ou inquietados por matérias de Consciência tanto nas Suas Pessoas como nas Suas Propriedades, enquanto eles se conduzirem com Ordem, Decência, e Moralidade, e de uma maneira conforme aos usos do País, e ao Seu estabelecimento Religioso e Político. Porem se provar, que eles pregão ou declamar publicamente contra a Religião Católica, ou que procurem fazer prosélitos, ou Conversão, as Pessoas que assim delinqüirem poderão, manifestando-se o seu delito, ser mandada sair do País, em que a Ofensa tiver sido cometida. E aquela que no Público se portarem sem respeito, ou com impropriedade para com os Ritos e Cerimônias da Religião Católica Dominante, serão chamadas perante a Polícia Civil, e poderão ser castigadas com Multas, ou com Prisão em Suas próprias casas. E se a Ofensa for tão grave, e tão enorme que perturbe a tranqüilidade Pública, e ponha em perigo a segurança das Instituições da Igreja,e do Estado, estabelecidas pelas Leis, do Fato poderão ser mandadas sair dos Domínios de Portugal. Permitir-se-á também enterrar os Vassalos de Sua Majestade Britânica, que morrerem nos Territórios de Sua Alteza Real O Príncipe Regente de Portugal, em convenientes lugares, que serão designados para este fim. Nem se perturbarão de modo algum, nem por qualquer motivo, os Funerais, ou as Sepulturas dos Mortos. Do mesmo modo os Vassalos de Portugal gozarão nos Domínios de Sua Majestade Britânica de uma perfeita e ilimitada liberdade de Consciência em todas as matérias de Religião, conforme ao Sistema de Tolerância que se acha neles estabelecidos. Eles poderão livremente praticar os Exercícios de Sua Religião, ou particularmente nas Suas próprias casas de habitação, ou nas Capelas e lugares de Culto designados para este objeto, sem que se lhes ponha o menor obstáculo, embaraço, ou dificuldade alguma, tanto agora,como para futuro (AGUIAR, 1960: 141-142). Como se percebe, o artigo 12 dava garantias aos súditos ingleses de praticarem sua religião de origem, ainda que condicionados a não externarem suas práticas, tendo em vista a existência de uma religião oficial na Colônia. Dentre as concessões feitas aos britânicos, estava a permissão para fixarem locais específicos para enterramentos. Diante disso, vários

5 cemitérios chamados de ingleses seriam construídos em território brasileiro, especialmente em região de portos movimentados, a exemplo de Recife, Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. O Cemitério dos Ingleses do Rio de Janeiro foi construído no lugar denominado Forno do Cal uma antiga chácara pertencente a Simão Martins (BBF, s/d), localizado na praia da Gamboa. O terreno foi comprado em 24 de dezembro de 1809 pelo Príncipe Regente e incorporado no ano seguinte aos bens da Coroa, destinando-se ao enterramento dos estrangeiros que não professassem a religião católica no Rio de Janeiro (REIS, 1991: 176-177). Consultando o livro de registros de casamentos, batizados e mortes do Britsh Burial Found, verifiquei que o primeiro registro de sepultamento se refere a 5 de janeiro de 1811, o que me levou a concluir ter sido este o ano no qual o referido cemitério entrou em funcionamento (BBF, 1809-1815). Viajantes europeus que passaram pelo Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX e deixaram relatos sobre o cotidiano da cidade fizeram referências ao Cemitério dos Ingleses. O primeiro relato a ser destacado aqui é o do comerciante inglês John Luccock, que esteve no Brasil entre 1808 e 1820. Segundo ele, O Saco, ou pequena enseada da Gamboa, porção do litoral sul mais ricamente variegado, também é orlado por um renque de habitações, a que as montanhas formam um fundo verdejante. Fica ali um grande edifício em que os negros recém-vindos cumprem uma espécie de quarentena. Pouco adiante, já na encosta da montanha, encontra-se o cemitério inglês, em que o primeiro enterro se realizou em abril de 1811, infelizmente de perto seguido por vários outros. Pareceram exercer profunda influência no espírito dos brasileiros que os presenciaram. A localidade pouco própria para cemitério, sê-lo-ia muito para residência (LOCCOCK, 1975: 171). Chegando ao Rio de Janeiro já no período posterior à Independência, a inglesa Maria Graham também relatou em seu diário de viagem sua impressão sobre o lugar: Fui hoje a cavalo ao cemitério protestante na Praia da Gamboa, que julgo um dos lugares mais deliciosos que jamais contemplei, dominando lindo panorama, em todas as direções. Inclina-se gradualmente para a estrada ao longo da praia; no ponto mais alto há um belo edifício construído por três peças; uma serve de lugar de reunião ou às vezes de espera para o pastor; uma de depósito para a decoração fúnebre do túmulo; e o maior, que fica entre os dois é geralmente ocupado pelo corpo durante as poucas horas (pode ser um dia e uma noite), que neste clima podem decorrer entre a morte e o

6 enterro; em frente deste edifício ficam as várias pedras e urnas e os vãos monumentos que nós erguemos para relevar nossa própria tristeza; entre estes e a estrada, algumas árvores magníficas. Três lados desde campo são cercados por pedras ou grades de madeira. Até a imaginosas e delicadas Jane de Crabbe, poderia pensar sem mágoa em dormir aqui (Idem, 1990:366). O relato de Graham sobre o local se assemelha muito à imagem abaixo. De autoria desconhecida, ela fornece uma visão sobre o terreno descrito pela inglesa, a qual observou com detalhes a imensidão do local e a deslumbrante paisagem oferecida aos olhos daqueles que por ali passavam. Fonte: http://www.cariocaforever.com/picturegalleries/theenglishcemeteryatgambo.html/11, no link The English Cemetery at Gamboa Um outro viajante procurou destacar o traçado do Cemitério da Gamboa. Tratouse do desenhista e escritor norte-americano Thomas Ewbank, que, chegando ao Rio de Janeiro em 1846, descreveu o cemitério como: um terreno irregular, parte de uma fralda da montanha, oposto à Baia de Guanabara é o último jazigo dos heréticos que morrem por aí. A estrada que leva até ele é necessariamente íngreme e tortuosa. A meio caminho foi erguida uma pequena estrutura onde se pode assis-

7 tir ao ofício fúnebre. As sepulturas são geralmente no chão, numeadas. Os monumentos predominantemente são lajes horizontais. Aqui jazem funcionários estrangeiros, que poderiam agora ser o orgulho dos seus e de seu país vitima de um falso sentimento de honra, que os destinou à podridão e ao olvido na flor de suas vidas. Dificilmente poder-se-ia encontrar cemitério mais repousante pela terra. Localizado no declive de um monte tropical, e todo plantado de nogueiras-daindia, mangueiras, caneleiras, milho, a doce mandioca, araçás, cajus e o cardamomo, com seus racimos rosados, pinheiros, pitangas, cabeceiras de frutos alongados e redondos o cristão não poderia desejar de melhor para a sua sepultura ou onde encontrar um recanto mais cheio de emblemas de inocência e imortalidade (EWBANK, 1976: 194). Nos três relatos o que se destaca é o aspecto de beleza e organização do cemitério, demonstrando a existência de diferentes áreas construídas, além do terreno para sepultamento. Dentre estas áreas, estava o espaço destinado aos rituais fúnebres. Ao longo de minha pesquisa, pretenderei identificar aspectos ligados a estes rituais. Muito embora a leitura do artigo 12 do Tratado de Comércio e Navegação tenha apontado para a tolerância religiosa a partir de 1810, o fato é que, ao que tudo indica, o tratado em si não parece ter garantido aos estrangeiros o livre exercício de suas práticas religiosas. Um exemplo disso é o fato ocorrido em Sorocaba, analisado por Rosangela Boy. Segundo ela, no processo de instalação da primeira siderúrgica do Brasil, na fazenda Ipanema, em Iperó (que fazia parte de Sorocaba) se recorre à mão-de-obra sueca, cuja maior parte era de imigrantes protestantes. O convício entre os protestantes e os sorocabanos teria sido marcado, segundo ela, por conflitos. Dentre eles, pode-se destacar o que envolveu o enterramento do carpinteiro Jonas Bergman, em 27/02/1811. Enterrado no único cemitério de Sorocaba, que era o da Matriz portanto, católico, a descoberta de ter se tratado de um estrangeiro e protestante, ensejou o desenterramento de seu cadáver, ao que tudo indica, pelos moradores da região. Fato este que teria gerado grande rivalidade entre os sorocabanos e os suecos. (FOLHA DE SÃO PAULO, 2007: 10). Segundo Boy, como no contrato dos trabalhadores suecos constava que teriam liberdade religiosa, estes recorrem a D. João, que teria, em resposta, promulgado uma carta régia em 11/08/11 normatizando a tolerância religiosa prevista no Tratado de Comércio e Navegação de 1810. Até o momento de minha pesquisa, ainda não consegui localizar a carta régia citada por Rosangela Boy. De qualquer forma, o importante é que esta informação pode ser relacionada com a que tenho acerca da construção do Cemitério dos Ingleses no Rio de

8 Janeiro ter se dado em 1811. Muito ainda tem para ser pesquisado; no entanto, o objeto desta comunicação foi tão-somente apresentar estas questões, sinalizando para a importância do estudo acerca do Cemitério dos Ingleses do Rio de Janeiro, no início do século XIX, no contexto dos estudos sobre a implicação dos acordos entre a Coroa portuguesa e os ingleses em relação às práticas religiosas e de sepultamento dos não católicos, numa colônia na qual o catolicismo era religião oficial. FONTES: BRITISH BURIAL FUND (BBF-RJ): Register of Married, Baptisms and Death: 1809-1815. EWBANK, Thomas. Vida no Brasil. Belo Horizonte: Livraria Itatiaia; Editora da Universidade de São Paulo, 1976. FILHO, Adolfo Morales de Los Rios. O Rio de Janeiro Imperial. Rio de Janeiro: Topbook; Univercidade Editora, 2000. GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil, Belo Horizonte: Editora Itatiaia; Editora da Universidade de São Paulo, 1990. LUCCOCK, John, Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Livraria Itatiaia; Editora da Universidade de São Paulo, 1975. Tratado de 1810 In: AGUIAR, Pinto de. A abertura dos Portos do Brasil. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1960. BIBLIOGRAFIA ABERTURA DAS CRENÇAS, ENTREVISTA DE Rosangela Boy à Folha de São Paulo de 25/11/2007 (Caderno Mais ). ARRUDA, José Jobson de Andrade. Uma Colônia entre dois Impérios: a abertura dos portos brasileiros 1800-1808. Bauru: São Paulo, 2008. BASILE, Marcello Otávio N.de C. O Império Brasileiro: Panorama Político In: LINHARES, Maria Yedda. (Org) Historia Geral do Brasil, Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000. FARIA, Sheila de Castro. Tratados de 1810 In: VAINFAS, Ronaldo. (Direção) Dicionário do Brasil Império. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. MANCHESTER, Alen K. Preeminência Inglesa no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1973. NEVES, Guilherme Pereira. Transmigração da Corte In: VAINFAS, Ronaldo. (Direção) Dicionário do Brasil Império. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. OLIVEIRA, Luiz Valente. RICUPERO, Rubens. A Abertura dos Portos. São Paulo: Editora SENAC, 2007.

9 RODRIGUES, Cláudia. Cidadania e morte no Oitocentos: as disputas pelo direito de sepultura aos não-católicos na crise do Império (1869-1891). In: Anais do XXIV Simpósio Nacional de História: História e Multidisciplinaridade: Terremotos e deslocamentos, 2007, São Leopoldo. Anpuh/UNISINOS, 2007.