RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICO SOBRE A COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBOS DA ILHA DA MARAMBAIA, MUNICÍPIO DE MANGARATIBA (RJ)



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Transcrição:

RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICO SOBRE A COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBOS DA ILHA DA MARAMBAIA, MUNICÍPIO DE MANGARATIBA (RJ) 2003

RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICO SOBRE A COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBOS DA ILHA DA MARAMBAIA, MUNICÍPIO DE MANGARATIBA (RJ) LAUDO DESTINADO AO RECONHECIMENTO OFICIAL DO GRUPO E SEU TERRITÓRIO PELO MINISTÉRIO DA CULTURA - GOVERNO FEDERAL DO BRASIL COORDENADOR José Maurício Paiva Andion Arruti EQUIPE Projeto EGBÉ TERRITÓRIOS NEGROS Alessandra Tosta Ana Gualberto Jefferson Gonçalves Correia Mariza Rios Sônia Almeida Convênio UFF - NRA Márcia Menendes Motta Priscilla Amaral Convênio UFF - NUFEP Bruno Leipner Mibielli Eduardo Tavares Paes Fábio Reis Mota Lênin dos Santos Pires Roberto Kant de Lima Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão 2003 2

Relatório técnico-científico sobre a comunidade remanescente de quilombos da Ilha da Marambaia, município de Mangaratiba (RJ) / coordenação José Maurício Arruti Rio de Janeiro: KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço, Fundação Cultural Palmares, 2003 Bibliografia. Mapas. Fotos. 1. Laudo antropológico 2. Remanescente de quilombos 3. História 3. Escravidão 4. Rio de Janeiro 5. Pesca artesanal 2003 KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço Rua Santo Amaro, 129 (casa) 22211-230 Rio de Janeiro RJ Telefone: (021) 2224-6713 Fax: (021) 2221-3016 territoriosnegros@koinonia.org.br www.koinonia.org.br 3

ÍNDICE Apresentação Capítulo 1 SOBRE O CONCEITO REMANESCENTES DE QUILOMBOS E SUA APLICAÇÃO À COMUNIDADE DE ILHÉUS DA MARAMBAIA (José Maurício Arruti) Notas sociológicas sobre o conceito jurídico Adequação do conceito à situação social da comunidade negra de camponesespescadores da Ilha da Marambaia Bibliografia Capítulo 2 O BREVES E A ILHA DA MARAMBAIA (Márcia Menendes Motta) Introdução Das informações correntes acerca das propriedades dos Breves Dos indícios de conflitos nas terras do fazendeiro Breves A Ilha de Marambaia: história e memória de um lugar As Terras de Marinha: história e direito de um lugar À guisa de conclusão Capítulo 3 PERCURSO HISTÓRICO DOS ILHÉUS DA MARAMBAIA (1856-2003) (José Maurício Arruti) Escravidão: história e memória Pós-abolição: da emancipação jurídica à tutela militar Bibliografia Capítulo 4 OS ILHÉUS DA MARAMBAIA HOJE (Equipe projeto Egbé Territórios Negros) Introdução Mapa de ocupação da Ilha da Marambaia População Terra e sangue Economia Inserção formal Capítulo 5 APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS (Equipe NUFEP-UFF) Introdução Justificativa Metodologia Pesca: aspectos gerais Marambaia e Jaguanum: pescadores e suas atividades Reserva extrativista marinha: uma discussão preliminar Conclusão Bibliografia Legislação Citada 4

ANEXOS Bloco 1: Registros históricos 1.1. Processos Cíveis envolvendo Joaquim José de Souza Breves 1.2. Relatórios de Presidente da Província do Rio de Janeiro 1.3. Esboço biográfico de Joaquim José de Souza Breves 1.4. Carta Imperial nomeando Joaquim José de Souza Breves soldado da Imperial Guarda de Honra de D. Pedro I. 1.6. Registros sobre os Breves no Almanak Laemmert Bloco 2: Listas e Cronologias 2.1. Cronologia da Marambaia 2.2. Óbitos da Ilha da Marambaia [Livro de Registro da paróquia de Itacuruçá] 2.3. Lista de moradores da Ilha da Marambaia no momento da aplicação dos questionários da pesquisa para o laudo Bloco 3: Situação Jurídica Paulo Vicente Machado Élcio Santana Porfiria Joaquim Machado Fernanda Maria da Costa Vieira Benedito Augusto Juvenal Benedito Santana Eraldo Francisco de Oliveira Bloco 4: Depoimentos ao Seminário Memorial da Marambaia Bloco 5: Notícias sobre o contexto ambiental da Baía de Sepetiba 5.1. Dados Gerais 5.2. Lixo químico 5.3. Porto e condomínio Bloco 6: Caderno de fotos Bloco 7: Dossiê da diocese de Itaguaí sobre a Marambaia ÍNDICE DOS MAPAS 1. Mapa de localização da Ilha da Marambaia 2. Esboço da proposta da comunidade para a delimitação da área remanescente de quilombos da Marambaia 3. Mapa das localidades da Marambaia 4. Mapa de ocupação da Ilha da Marambaia 5

Apresentação A Ilha da Marambaia fica localizada no litoral de Mangaratiba (RJ), em uma área considerada de segurança nacional e controlada por militares. Só se chega a ela por meio de barco da Marinha, com autorização prévia. No porto de desembarque situado na praia do Cadim (Centro de Adestramento da Marinha), estão localizadas as casas de alvenaria, nas quais, desde 1971, residem militares e outros funcionários federais. A leste, em direção à restinga, e a oeste, em direção à ponta da Marambaia, situam-se as antigas casas de alvenaria e estuque que abrigam uma população de cerca de noventa famílias descendentes, direta ou indiretamente (por meio dos casamentos), de escravos. Era na Ilha da Marambaia que o Breves senhor do café e do tráfico de escravos no Rio de Janeiro do século XIX mantinha seus escravos para engorda antes de serem vendidos para outras fazendas. Os atuais moradores contam que, pouco antes de morrer, o Breves teria deixado toda ilha para os ex-escravos que ainda permaneciam nela. A cada família ele teria atribuído uma praia, mas essa doação foi só de boca, como contam, e a família Breves não cumpriu o compromisso assumido pelo antigo proprietário. Apesar disso, as famílias negras permaneceram ali em posse pacífica até 1939. Nesse ano, a Escola de Pesca Darci Vargas instalou-se na ilha, inaugurando um período de grande prosperidade: aqui no tempo da Escola tinha de tudo, tinha fábrica de gelo, fábrica para sardinha, a gente tinha escola que profissionalizava a gente, conta um senhor de 80 anos. A comunidade viveu, porém, uma grande mudança a partir de 1971, quando, depois de fechada a escola, a ilha foi entregue ao Ministério da Marinha. A partir de então, os moradores da Marambaia começam a viver sob o impacto de uma nova dinâmica social, repleta de restrições que os proíbem de manter roças, construir casas para os filhos recémcasados ou mesmo reformar ou ampliar as já existentes. Finalmente, a partir de 1998, a Marinha iniciou diversas ações judiciais de Reintegração de Posse, alegando que os pescadores eram invasores de suas terras. Sem apoio jurídico e na sua maior parte nãoalfabetizados, aqueles que vão sendo condenados nesses processos são progressivamente expulsos. Essa foi uma estratégia criada pelo Cadim para que o seu objetivo fosse 6

alcançado sem os custos judiciais e políticos de ter que expulsar toda a comunidade de uma só vez. A Diocese de Itaguaí, por meio da Pastoral Rural, montou um primeiro dossiê sobre a situação daquelas famílias em 1998 e o enviou para várias autoridades. Entre elas, o então presidente da República Fernando Henrique Cardoso, que costumava usar a ilha como balneário oficial em feriados prolongados. Nessa época, o assunto ganhou algum destaque na imprensa e uma advogada da Fundação Cultural Palmares tentou conhecer a situação pessoalmente, sem sucesso. Rapidamente, no entanto, o assunto voltou ao silêncio e o processo de expulsão dos moradores foi retomado. A partir do ano de 2000 (com o início das atividades do projeto Egbé Territórios Negros, voltado para a organização de uma base de dados para o monitoramento das situações de conflito envolvendo comunidades negras rurais nos estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo), retomamos os contatos já existentes com pesquisadores e militantes atuantes na região sul-fluminense e, especificamente, na Ilha da Marambaia. Disso resultaram os novos alertas sobre a situação de desrespeito aos direitos dos moradores da ilha por parte da administração da Marinha. Um dos efeitos dessa retomada das denúncias foi a solicitação do Ministério Público Federal (MPF), em fins de 2001, de que o projeto fornecesse informações tecnicamente embasadas sobre a situação. Assim teve origem um primeiro relatório sobre a Marambaia, entregue ao MPF no início de 2002. De posse desse relatório preliminar, o MPF moveu uma Ação Civil Pública contra a Marinha de Guerra e a Fundação Cultural Palmares (FCP), exigindo da primeira a suspensão das ações (físicas e jurídicas) contra os moradores e da segunda a realização dos estudos necessários à verificação da aplicabilidade do artigo constitucional 68 do ADCT à comunidade da Marambaia. Em 2002, o projeto Egbé Territórios Negros foi solicitado, pela própria FCP, a realizar o laudo antropológico exigido pela Ação Civil Pública, requisito para o reconhecimento de qualquer grupo como remanescente de quilombos, segundo o citado artigo constitucional. 7

Nota metodológica Apesar de solicitado em dezembro de 2002, uma série de contratempos administrativos internos à FCP fizeram com que esse trabalho só fosse iniciado em março de 2003, tendo depois sofrido ainda outros retardos, provocados pela recusa da Marinha de Guerra em aceitar a presença de pesquisadores ligados ao grupo na ilha e, em seguida, pela insistência em fazê-los serem acompanhados de militares durante o trabalho de campo. O impasse gerado por essas exigências levou a novas negociações que, graças à mediação do Ministério Público, resultaram em um acordo que permitiu condições mais adequadas ao trabalho a partir de abril de 2003. Na realização deste laudo, optamos por investir em um trabalho coletivo, interdisciplinar e interinstitucional. Graças à complementação de recursos por parte de KOINONIA (que assumiu os custos do coordenador do projeto, da assessoria jurídica e operacionais), pudemos realizar dois convênios com reconhecidos núcleos de pesquisa da Universidade Federal Fluminense e contar com a colaboração do Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Graças também à complementação de recursos por parte da Cese, pudemos agregar aos trabalhos de pesquisa a realização de um seminário em parceria com o Ministério Público Federal o Seminário Memorial da Marambaia, no qual contamos com a presença de especialistas de projeção nacional (acadêmicos, juristas e lideranças quilombolas), assim como com a assistência de um grande número de moradores da própria Ilha da Marambaia, além de convidados. 1 O convênio com o Núcleo de Referência Agrária UFF teve por objetivo permitir a aplicação do conhecimento relativo à estrutura fundiária e à história dos conflitos de terra no Rio de Janeiro à situação específica da propriedade dos Breves na Marambaia. Com ele contamos com o apoio de uma especialista na matéria, profa. Dra. Márcia Maria Menendes Motta, que trouxe novos aportes críticos sobre a posse da terra da ilha, chamando atenção para a precariedade legal da propriedade da família Breves. Ainda no campo da história, foi de grande importância a colaboração do departamento de História da UFRRJ, por intermédio da profa. Dra. Margareth de Almeida 1 Parte dos debates travados no seminário, que apresentam a participação dos moradores da Marambaia, é transcrita em um dos blocos de anexos ao final deste relatório. 8

Gonçalves, que viabilizou o levantamento dos registros relativos aos escravos e ex-escravos do Breves nos livros de batismo da paróquia de Itacuruçá ao longo da segunda metade do século XIX. Finalmente, o convênio com o Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (Nufep) UFF, coordenado pelo prof. Dr. Kant de Lima, viabilizou organizarmos informações especializadas sobre a situação da pesca artesanal na Marambaia, assim como sobre a legislação e a prática de implementação de Reservas Extrativistas Marinhas, que é apresentada como um dos modelos possíveis de resposta à demanda territorial dos ilhéus, que inclui não só o território terrestre, mas também o marinho. 2 Todas essas colaborações foram articuladas aos trabalhos de campo e de pesquisa documental e bibliográfica desenvolvidos pela equipe do projeto Egbé Territórios Negros entre abril e novembro de 2003, que vieram completar e sistematizar dados que começaram a ser levantados em visitas anteriores, realizadas ao longo do ano de 2002. Nesse caso, o trabalho contou com a observação direta em campo; com entrevistas abertas, realizadas com moradores e ex-moradores dentro e fora da ilha; com a complementação da pesquisa documental (em que destacamos o levantamento dos processos movidos pela Marinha contra os ilhéus) e com uma pesquisa quantitativa, realizada por meio de um survey socioeconômico. Isso nos permitiu apresentar não só uma reconstituição da organização social e territorial do grupo em três períodos sucessivos durante e após a escravidão (< 1930 s), no período da Escola de Pesca (1940 1970) e, contemporaneamente, sob a administração da Marinha de Guerra (1971 >) como também um perfil censitário bastante detalhado do grupo. Finalmente, além dos procedimentos mais comuns a uma pesquisa em ciências sociais, o trabalho contou também com uma série de reuniões coletivas (entre elas, o Seminário Memorial da Marambaia), em que os moradores puderam apresentar suas dúvidas e serem informados sobre o artigo 68 do ADCT, sobre o conceito atual de 2 O convênio com o Nufep foi iniciada, porém, informalmente, desde 2002, quando um dos seus bolsistas começou a colaborar com o projeto Territórios Negros como voluntário. Essa forma de engajamento tem permitido ao projeto apoiar financeiramente o trabalho de campo de diferentes pesquisadores em etapas iniciais de formação acadêmica, interessados em trabalhar em comunidades negras rurais no Rio de Janeiro e no Espírito Santo, ao mesmo tempo que, ao recebê-los em seus seminários internos e reuniões de trabalho, favorece a troca de experiências e de informações de campo entre eles e os pesquisadores do projeto, como parte importante do monitoramento da situação vivida por aquelas comunidades. 9

remanescentes de quilombos e sobre o processo de reconhecimento e suas implicações mais amplas. Outras reuniões coletivas também foram fundamentais para a evolução do debate interno do grupo em torno da definição do território a ser reivindicado. Ao longo desses encontros, os moradores foram instados a realizarem mapas manuscritos em cartolinas, que serviam de base ao debate sobre suas concepções territoriais e, finalmente, sobre sua demanda territorial. Como forma de facilitar a leitura deste relatório, apresentamos uma síntese dos resultados dessa pesquisa e, a seguir, um mapa de localização da restinga e da Ilha da Marambaia (área sob o domínio da Marinha). Síntese dos argumentos deste laudo 1. Como mostra a pesquisa histórico-documental efetuada (cap. 2), a legislação relativa às terras de marinha (configurada por sucessivas regulamentações em 1710, 1819, 1830, 1832 e 1835), que as definem como todos os terrenos banhados pelas águas ou de rios navegáveis e que possuem extensão máxima de 15 braças contadas a partir do ponto médio da maré, exclui a propriedade reivindicada pelos Breves e irregularmente acatada pelas autoridades imperiais e republicanas. Até o fim do século XIX, os presidentes de província denunciaram invasões semelhantes a terras devolutas e de marinha, mas o poder político do comendador parece ter prevalecido, uma vez que não foi atingido por tais denúncias. 2. Reforçando as considerações anteriores, a pesquisa também aponta que, para além (ou por causa) do problema relativo às terras de marinha, não existem documentos comprobatórios da propriedade do comendador Breves sobre as terras da Ilha da Marambaia, o que levanta suspeitas sobre sua legalidade. Prova disso é o fato de seus herdeiros jamais terem podido provar a legalidade da ocupação de tais terras, o que impediu qualquer tentativa de regularização fundiária por mais de vinte anos. Foi em meio a esse contexto duvidoso que a família Breves vendeu as terras da ilha para a União (Companhia Promotora de Indústrias e Melhoramentos), conseguindo que esta regularizasse uma situação ilegítima. Isso, no entanto, cria um vício de origem que coloca em suspenso toda a cadeia sucessória posterior (cap. 2). Dessa forma, a pesquisa histórico-documental aponta 10

que o que está em jogo na história das terras da Marambaia não é apenas a oposição entre propriedade e posse, mas entre duas opções que continuam postas ao Estado brasileiro: acatar um direito de propriedade ilegítimo nos seus próprios termos, mas originado em um poder político senhorial como o do Rei do Café, ou reconhecer o direito de posse de toda uma comunidade, constituído, de fato, ao longo de um século e meio. 3. Para documentar esse segundo direito, instituído pela posse coletiva, o relatório levanta evidências sobre como os ilhéus da Marambaia descendem, direta ou indiretamente, de famílias de escravos de duas fazendas da família Breves (e mesmo de fazendas anteriores a estas), tendo estabelecido uma posse plena e pacífica sobre a ilha logo após a morte do Comendador Breves, em 1889, e o abandono da ilha por parte de sua família. Faz parte da memória do grupo o evento da última viagem do Sr. Breves à ilha, na qual ele teria doado verbalmente cada uma de suas praias a um conjunto de famílias, elegendo entre elas aqueles que deveriam ficar encarregados da chefia dos outros (cap. 3). Isso encontra correspondência com uma prática documentada historicamente em todo o território fluminense do final do século XIX de doações de terras a ex-escravos, pouco antes ou depois da abolição da escravatura (cap. 2). Apesar desse ato não poder ser recuperado no inventário (extraviado) do comendador, ele encontra-se registrado no inventário de seu irmão, que doou outra das fazendas da família aos ancestrais dos atuais moradores da comunidade de remanescentes de quilombo de Bracuhy, em Angra dos Reis (cap. 2 e 3). 4. Não só o modo pelo qual se deu a formação dessa posse, mas também a maneira como tais moradores organizaram a apropriação territorial, adotando uma apropriação coletiva da terra (cap. 3 e 4), faz com que a Ilha da Marambaia se enquadre, de forma absolutamente coerente, na caracterização sociológica apresentada por Almeida (1989) acerca das chamadas terras de preto. As famílias de pescadores da Marambaia permaneceram, de fato, dentro de um regime próprio de uso do território, que ainda hoje pode ser documentado (cap. 4). Além da pesca, a população utilizava-se das terras da ilha para cultivos agrícolas de subsistência, que davam ao grupo uma grande capacidade de autonomia com relação ao continente e ao mercado. Nesses casos, estamos diante das terras de uso comum categoria sociológica mais ampla da qual as terras de preto são uma variante, nas quais o controle dos recursos básicos se dá por meio de normas 11

específicas instituídas para além do código legal vigente e acatadas, de maneira consensual, pelos vários grupos familiares que compõem uma unidade social (cap. 3). 5. A memória do grupo permite reconstituir com detalhe a complexa organização social da ilha desde os momentos finais do período escravista, com três regiões funcionalmente distintas, até aquela que se instituiu com a abolição, onde uma rede de autoridades organizava as famílias pelas praias e estas, sob a subordinação de comissários, que mantiveram uma relação de autonomia com as autoridades do continente, observantes, por sua vez, desta autonomia dos ilhéus (cap.3). 6. Esse regime foi alterado pela primeira vez com o impacto da atuação tirânica de um representante militar da Aeronáutica nos anos de 1920 e 1930 e, depois, por influência da instalação da Escola de Pesca Darcy Vargas, em 1939. Nesse segundo momento, porém, a memória dos ilhéus identifica um período extremamente favorável, quando passaram a contar com serviços públicos de que não dispunham antes. O terceiro impacto maior de agentes externos seria com a tardia implantação dos serviços da Marinha na ilha, em 1971, quando então os moradores são proibidos de continuarem realizando suas roças de subsistência e perdem os serviços públicos antes oferecidos, sem nenhum tipo de compensação por tais perdas. Daí advém a incompreensão de seus moradores com a possibilidade da justiça acolher as acusações, feitas pela Marinha a partir de 1998, de que eles são invasores de uma terra que o próprio Estado documenta estar sob suas posses desde o início do século XX (cap. 3). 7. Os moradores também implantaram o controle e o uso coletivo e de caráter tradicional em um outro território sob seu domínio, o território marinho, que se constituiu como uma das alternativas mais importantes aos recursos agrícolas e que, depois das sucessivas transformações vividas pelo grupo pós-década de 1940, tornar-se-ia a sua principal fonte de recursos até os dias de hoje (cap. 3, 4 e 5). Além disso, a análise do seu modelo de uso dos recursos pesqueiros caracteriza o grupo como um típico caso de pesca artesanal, que mereceria ser contemplada com um tipo específico de proteção, conhecida como reserva extrativista marinha (cap. 5). 8. Os processos da Marinha, que têm levado à expulsão dos moradores da área, coincidem justamente com o momento de maior popularidade do tema das comunidades remanescentes de quilombos e se acirraram depois das primeiras iniciativas da Diocese de 12

Itaguaí na defesa daquelas famílias, pautada em tal argumentação. De forma coerente a isso, tais processos são cuidadosa e trabalhosamente fragmentados em processos individuais, distribuídos por diferentes varas, como forma de impedir que o caráter coletivo do conflito se manifeste. No entanto, uma leitura em conjunto dos processos aos quais pudemos ter acesso não deixa dúvidas de que se trata de uma ação que incide sobre uma coletividade: o mesmo autor, o mesmo objeto e as mesmas argumentações, tendo por réus pessoas que vivem sob as mesmas condições e que fazem parte de um grupo social estreitamente tecido por relações de parentesco e de memória. Qualquer argumentação jurídica que se sustente em particularidades relativas a um ou outro caso em pauta tem por objetivo, em primeiro lugar, obscurecer a natureza coletiva do conflito instaurado pelas ações práticas e judiciais da Marinha (cap. 3 e 4). 9. A caracterização dos ilhéus hoje permite distinguir uma segmentação dos moradores em dois grupos que, embora unidos em suas características socioeconômicas e educacionais, são distintos na sua distribuição geográfica (os lados de cima e de baixo da ilha), na sua forma de apropriação territorial (diferentes tipos de pescaria) e em determinados traços culturais e ideológicos, evidenciados historicamente pela existência de dois grandes blocos de parentesco e contemporaneamente pela expansão da religião evangélica em um dos lados da ilha (cap.3 e 4). Tal segmentação, no entanto, em nada interfere no reconhecimento recíproco dos direitos históricos estabelecidos por ambos os segmentos sobre as terras historicamente ocupadas, ainda que tenha sido importante na definição da área territorial proposta para a demarcação como terra de remanescentes de quilombos. 13

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