ANÁLISE DA CAPACIDADE DE ARMAZENAMENTO DAS ONDAS DE CHEIA PELA BARRAGEM NORTE E SUAS IMPLICAÇÕES NAS COMUNIDADES DO VALE DO ITAJAÍ (SC) Ademar Cordero 1 Helio dos Santos Silva Dirceu Luis Severo Instituto de Pesquisas Ambientais da FURB Cordero@furb.rct-sc.br RESUMO Enchentes no Vale do Itajaí (SC) ocorrem desde o início de sua colonização, isto é, por volta de 1850. Muitos esforços foram realizados no sentido de controlar as enchentes na bacia do rio Itajaí. Dentre estes esforços podemos citar, como exemplo, a construção de três barragens de contenção. Para um melhor entendimento dos efeitos que uma barragem pode ter sobre um evento de cheia e, consequentemente, sobre as comunidades, é necessário, inicialmente, ter o conhecimento da capacidade que ela tem de armazenar o volume produzido pelo referido evento e a estimativa do total de chuva naquela região. Inicialmente foi realizada uma análise meteorológica sucinta de quatro eventos históricos de cheia ocorridos: em julho de 1983, agosto de 1984, maio de 1992 e julho de 1992; no intuito de caracterizar o sistema de tempo associado, bem como situá-lo no que concerne o total de chuva ocorrido e as suas consqüências na bacia hidrográfica. O intuito deste trabalho é investigar se na época dos quatro eventos a Barragem Norte estivesse pronta, qual seria o seu papel especificamente nestes eventos? Haveriam tais enchentes? Para isso foi feito um estudo da capacidade de armazenamento das ondas de cheia pela Barragem Norte, localizada no Alto Vale do Itajaí, para os quatro eventos, de modo a tentar responder a estas perguntas. Uma vez que este tipo de informação técnica é importante para o domínio completo do conhecimento de um evento de cheia em si, a relevância deste estudo está na possibilidade de incorporação deste conhecimento como fator de análise e comparação no monitoramento das futuras cheias na região. Os elementos hidráulicos existentes exercem sobre as comunidades, potencialmente atingidas ou não, um falso papel de solução total do problema, sendo importante, pois, certificar-se tecnicamente das limitações destes elementos para que, em seguida, haja mais esclarecimentos dessas limitações às comunidades da região. Os resultados obtidos apontam para uma possível redução nos níveis a jusante da Barragem Norte, indicando que possivelmente os eventos de 1984 e 1992 pudessem ser aliviados. Todavia, o evento de 1983, por causa da influência direta, intensidade e duração do sistema de tempo associado, dificilmente teria evitado a catástrofe. 1. INTRODUÇÃO O homem desde a sua origem convive com os fenômenos da natureza, entre eles encontram-se as cheias dos rios. Quando a precipitação é intensa e prolongada, a quantidade de água que chega simultaneamente ao rio pode ser superior à sua capacidade de drenagem, ou seja, a da sua calha principal, resultando neste caso, na inundação das áreas ribeirinhas. Os problemas resultantes da inundação dependem do grau de ocupação da várzea pela população e da freqüência com a qual ocorrem as inundações. A ocupação da várzea pode ser para habitação, recreação, uso agrícola, comercial ou industrial. As cheias caracterizam-se, nesses casos, como enchentes. Os processos físicos ocorrem num meio onde o homem não projetou, mas ao qual deve adaptar-se, procurando conviver com o comportamento deste ambiente. No passado, a ocupação do homem na bacia hidrográfica foi realizada com pouco planejamento, tendo como objetivos, o mínimo custo e o máximo beneficio de seus usuários, sem uma maior preocupação com a preservação do meio ambiente (TUCCI, 1993). Nas últimas décadas, os hidrologistas e os meteorologistas têm-se aprofundado e avançado muito, nas questões voltadas ao entendimento das enchentes. Os meteorologistas, no sentido de adquirir maior entendimento no que se refere às previsões da chuva (tipo, intensidade e duração), em uma determinada região e, os hidrologistas, no que se refere às conseqüências das chuvas de grande intensidade em bacias hidrográficas. Sabemos hoje que certas condições meteorológicas e hidrológicas propiciam a ocorrência de uma inundação. O conhecimento do comportamento de longo prazo da atmosfera é muito difícil e ainda pouco devido ao grande número de fatores envolvidos nos fenômenos meteorológicos e à interdependência dos processos físicos a que a atmosfera terrestre possui e está sujeita. Na verdade, a hidrologia atualmente é tratada como uma ciência interdisciplinar e tem tido uma evolução significativa, face aos problemas crescentes, resultados da ocupação das bacias, do incremento significativo da utilização da água e do resultante impacto sobre o meio ambiente do globo. Profissionais de diferentes áreas como engenheiros, meteorologistas, matemáticos, estatísticos, geógrafos, biólogos, agrônomos, geólogos, entre outros, atuam nas interfaces das diferentes subáreas dessa ciência. O desenvolvimento da hidrologia moderna está ligado ao uso da água, ao controle da ação da mesma sobre a população e ao impacto sobre a bacia e o globo terrestre. As medidas de controle das cheias em uma bacia hidrográfica podem ser divididas, de uma forma geral, em duas categorias: as estruturais e as não-estruturais. As primeiras medidas influenciam na estrutura da bacia, seja na sua extensão (medidas extensivas), mediante intervenções diretas na sua sistematização hidráulico-florestal e hidráulico-agrário, seja localmente (medidas intensivas), mediante obras com o objetivo de controlar as águas, 1542
como por exemplo: reservatórios, caixas de expansões, diques, polders, melhoramento do álveo, retificações, canais de desvio, canais paralelos e canais extravasores. As medidas não-estruturais, por sua vez, consistem na busca de uma melhor convivência do homem com o as enchentes. Esta melhor convivência pode ser possível de ser alcançada, pela população que corre o risco de ser atingida, através de instrumentos de organização como cartasenchentes, sistemas de alerta, sistemas-respostas, seguros contra enchentes e estratégias educativas sobre a problemática e os seus riscos (CORDERO et al., 1999). Entre as medidas intensivas, os reservatórios de controle de cheias ocupam um lugar de destaque, seja pela imponência das obras de engenharia hidráulica que na sua execução muitas vezes comporta, seja pela eficácia na redução das vazões hídricas que eles conseguem obter. Para termos um melhor entendimento do potencial da Barragem Norte em reduzir vazões de enchentes na sua região a jusante, é necessário ter um aprofundamento sobre a capacidade que ela tem de armazenar e controlar os volumes d água nos eventos de cheia que passam pela seção do barramento. Este foi o motivo que nos levou a realizar este estudo. A Barragem Norte somente ficou pronta em setembro de 1992. Os eventos analisados ocorreram antes disso. A nossa pergunta aqui é: Caso a Barragem Norte estivesse pronta, qual seria o seu papel especificamente nestes eventos? Haveria possibilidade de evitar a enchente? Um estudo da capacidade de armazenamento das ondas de cheia pela Barragem Norte foi feito para estes quatro eventos de modo a tentar responder a esta pergunta. 2. REGIÃO DE ESTUDO A bacia do rio Itajaí, que é mostrada na Figura 2.1, está localizada na Vertente Atlântica do Estado de Santa Catarina e tem uma área de 15.000,00 km 2. Ela é considerada uma bacia estadual porque fica totalmente dentro do Estado. A bacia do rio Itajaí tem a sua situação caracterizada pela existência de altas serras nas nascentes sul, norte e oeste (entre 1000 a 1750 m) e de planícies pequenas a leste, nas vizinhanças do Oceano Atlântico. Seus principais B. PRATA Pinhal Cedros R. CEDROS Barragem Oeste V=83*10 6 m 3 TAIÓ M. Barragem Norte V=357*10 6 m 3 Rio Itajaí do Norte ou Hercilio TAIÓ IBIRAMA RIO do OESTE B. NOVO Rio Benedito Rio Itajaí-Açu APIUNA TIMBÓ GASPAR ILHOTA INDAIAL BLUMENAU BRUSQUE ITAJAÍ OCEANO Rio Itajaí do Oeste T. CENTRAL RIO do SUL BOTUVERÁ Rio Itajaí Mirim ATLÂNTICO ITUPORANGA V. RAMOS Rio Itajaí do Sul Barragem Sul V=93,5*10 6 m 3 FLORIANÓPOLIS A. WAGNER ÁREA DA BACIA = 15.000 km 2 PONTOS DE COLETA DE DADOS POR TELE-OBSERVADORES PONTOS DE COLETA DE DADOS POR TELEMETRIA BARRAGENS RIOS PRINCIPAIS Figura 2.1 Bacia do rio Itajaí afluentes são o rio Itajaí do Sul, o rio Itajaí do Oeste, o rio Itajaí do Norte ou Hercilio, o rio Benedito e o rio Itajaí Mirim. 1543
Segundo SILVA et alii (1988), as chuvas na bacia hidrográfica do rio Itajaí são bem distribuídas ao longo do ano, sendo que nas estações mais quentes elas são de maior intensidade mas geralmente de duração não muito prolongada. Nas estações mais frias elas são menos intensas mas mais duradouras. Sendo que, no Vale do Itajaí, tem sido registradas cheias em todos os meses do ano. Diversas obras de contenção já foram executadas em vários pontos da bacia, sendo as principais, a construção da Barragem Sul, que tem capacidade para armazenar 93,5.10 6 m 3 de água, a da Barragem Oeste, que tem capacidade para armazenar 83,0.10 6 m 3 e a da Barragem Norte, que será alvo de uma análise minuciosa mais adiante. A Barragem Oeste foi a primeira a ser construída, ficando pronta no ano de 1973; a Barragem Sul foi a segunda e ficou pronta no ano de 1976, e a terceira, Barragem Norte, foi concluída em setembro de 1992. Alguns outros barramentos, como Pinhal e Cedros, que podem ser observados na Figura 1, ainda não têm uma participação efetiva com respeito à contenção de cheias por serem específicas para geração de energia elétrica. Há atualmente uma preocupação no sentido de torná-las de função dupla. 3. A BARRAGEM NORTE A Barragem Norte, que fica localizada a montante da cidade de José Boiteux, é a maior obra de controle de cheia realizada até hoje na bacia do rio Itajaí, tendo ela capacidade para armazenar 357,0.10 6 m 3 de água até a crista do vertedor. Nesta barragem existem cinco descarregadores de fundo, sendo que dois deles (tulipas) são controláveis por comportas e três não-controláveis (células). Na referida barragem há também um descarregador na superfície denominado vertedor ou extravasor (sem controle). Na Tabela 3.1 são apresentados alguns os dados técnicos da Barragem Norte. Tabela 3.1 Principais características da barragem Norte DISCRIMINAÇÃO BARRAGEM NORTE Localização (município) José Boiteux Bacia Itajaí Instalação (Rio) Itajaí do Norte ou Hercilio Finalidade Controle de Cheias Inicio da operação 09/1992 Área da bacia de contribuição 2.318,00 km 2 Altura do barramento 58,5 m Cota do coroamento (crista da barragem) 306,5 m Cota do vertedor 302,00 m Nível mínimo 257,00 m Nível máximo 304,25 m Tipo de barragem Enrocamento Volume do reservatório até a crista do vertedor 357.000.000,00 m 3 Área do reservatório (cheio) 14.000.000,00 m 2 Descarregadores de fundo controláveis 2 túneis com controle das comportas (Tulipas) (Dimensões 2,60 m x 2,60 m) Descarregadores de fundo não controláveis (Células) 3 células sem controle de comportas (Dimensões 1,65 m x 1,65 m) Vertedor Dimensão 300,0 m x 4,5 m Fonte: DEOH 4. METODOLOGIA Inicialmente foi feita uma análise meteorológica sucinta dos eventos. Depois foi analisada a operação de um reservatório e o seu funcionamento. Após isso, para cada evento, foi realizada a transformação dos níveis do rio em vazão, no posto fluviométrico de Ibirama. Em seguida, estas vazões foram transportadas de Ibirama para a seção do rio onde foi construída a Barragem Norte, através da relação de áreas. Em seguida, foram calculados os volumes d água de cada evento de cheia estudado e, finalmente, estes volumes calculados foram comparados com a capacidade de armazenamento da referida barragem. Os dados de nível e de precipitação utilizados foram cedidos pela ANEEL. 4.1 ANÁLISE METEOROLÓGICA SUCINTA DOS EVENTOS DE CHEIA Os eventos de chuva intensa e duradoura ocorridos em julho de 1983, agosto de 1984, maio de 1992 e julho de 1992 podem ser vistos como decorrentes de sistemas frontais moderados a fortes, semi-estacionários, com totais 1544
de chuva superiores a 100 mm nas 48 horas iniciais do evento, com focos pronunciados e posicionados nos divisores de água do Alto Vale do Itajaí, de modo que a participação das pequenas barragens na retenção do escoamento da chuva inicial para o rio principal foi significativa. O evento de 1983 saiu do controle operacional devido às suas dimensões catastróficas, pela sua duração de cerca de 8 dias, com um total de chuva naquele mês da ordem de 600 mm (para uma média mensal de 85,3 mm). Efeitos de grande escala predominaram sobre os de mesoescala, que por sua vez, se não contribuiram para a estacionaridade, certamente o fizeram para a alimentação do sistema. O evento de 1984 foi intenso e seu total de chuva ficou concentrado basicamente nos primeiros dois dias. Apesar da duração relativamente curta, o total de 120 mm em média na região foi o suficiente para uma resposta calamitosa do rio. Os dois eventos de 1992 foram mais bem comportados, porém seus totais de chuva associados com uma operação precária das barragens menores proporcionaram a ocorrência das cheias, porém com mínimos prejuízos (ver SEVERO e SILVA, 1998). Nessas situações os sistemas frontais moderados e lentos associados com os controles regionais, estes de difícil mensuração, compuseram os quadros meteorológicos propícios ao excesso de chuva. 4.2 OPERAÇÃO DO RESERVATÓRIO Um reservatório de controle de enchentes funciona substancialmente retendo parte do volume da água que constitui a onda de cheia por um certo tempo, a qual vem descarregada à jusante mais tarde, e com redução das vazões com respeito aquelas que ocorreriam sem a influência da barragem, ou seja, com relação ao desenvolvimento natural do fenômeno. Em outras palavras, o reservatório reduz as vazões a valores toleráveis no rio a jusante, a preço de um prolongamento da duração da cheia neste rio. Um reservatório pode funcionar com ou sem controle de operação. Um reservatório sem controle de operação é aquele que não dispõe de comportas nos descarregadores de fundo e nem no vertedor. Neste caso, a cheia é regulada pelas condições dos orifícios de fundo e pelo vertedor livre. Quando existem comportas nos descarregadores de fundo com dispositivos mecânicos capazes de abrir e fechar as comportas do reservatório é possível utilizar com maior eficiência o volume disponível para o controle de enchentes. Para que isto ocorra é importante que seja definida uma regra básica para a operação das comportas. Figura 4.1 Esquema funcional de um reservatório A regra operacional pode ser a seguinte: a) o reservatório deve procurar operar de tal forma a escoar a vazão natural até que a jusante sejam atingidas as cotas limites; b) a partir deste momento utilize o volume do reservatório para manter ou reduzir a vazão. Estas condições operacionais dependem das características hidráulicas do reservatório, isto é, dos orifícios de fundo e do vertedor. 1545
4.3 O FUNCIONAMENTO DE UMA BARRAGEM Uma barragem de contenção de cheia (vazia) funciona como um reservatório de armazenamento, no qual uma parte do volume da água (chuva inicial) que constitui a onda de cheia é armazenada por um certo tempo, e mais tarde é descarregada a jusante com uma vazão menor com respeito àquela que ocorreria no desenvolvimento do fenômeno natural. Em outras palavras, o reservatório reduz a vazão a valores toleráveis ao rio na parte de jusante da barragem, a preço de um prolongamento da duração da cheia no mesmo rio. Existem diversos tipos de reservatórios para o controle de cheias, mas do ponto de vista funcional, um reservatório se reduz essencialmente, como é mostrado na Figura 4.1, a uma estrutura que barra a água, em uma oportuna seção de um curso d água, a qual é acompanhada de dois tipos de descarregadores: um de fundo, dito em hidráulica, de orifício e outro na superfície da barragem, do tipo vertedor ou extravasor. Em qualquer reservatório de controle de cheias, o vertedor funciona sempre aberto, ou seja, fica sem controle, enquanto que os descarregadores de fundo geralmente são equipados com instrumentos mecânicos e com comportas que permitem regular a abertura da seção disponível para a saída da água. No vertedor de uma barragem também pode ser instalado uma comporta regulável, mas este mecanismo é instalado com freqüência em reservatórios destinados a reservar água para multiuso; não se constrói nunca nos reservatórios destinados para o controle de cheias. Para avaliar a ação de um reservatório, também sob o ponto de vista quantitativo, é conveniente referir-se ao diagrama da Figura 4.2, na qual a abcissa representa o tempo t, contado a partir do inicio da cheia e a ordenada a vazão q, isto é, os volumes hídricos que atravessam a seção considerada do curso d água em cada unidade de tempo, de forma que as vazões são expressas em metros cúbicos por segundo. A curva que surge neste tipo de gráfico representa um evento de cheia, isto é, a curva da variação das vazões com o tempo no curso da cheia, que se chama hidrograma de cheia. Em condições de defluxo natural, as cheias são caracterizadas por hidrogramas típicos representados na Figura 4.2, onde as vazões crescem rapidamente durante a primeira fase da cheia, até atingir o valor máximo (pico); segue após a fase da recessão, durante a qual as vazões decrescem, e que geralmente tem uma duração superior à da fase de crescimento da cheia. A fase de elevação ou de crescimento do hidrograma pode ser mais ou menos rápido, segundo as características da bacia e das precipitações; para chuvas muito longas a sua parte superior pode ser mais achatada como a Figura 4.2b, ou seja, pode-se manter entre a fase de crescimento e de recessão uma fase intermediária, caracterizada de vazões próximas à máxima. Com os hidrogramas de cheia podemos determinar o volume d água que atravessa uma seção do rio, desde o inicio da cheia até um certo intervalo de tempo. Assim, a partir de um tempo genérico t, no qual a vazão tem um certo valor q, se deixarmos passar um intervalo de tempo t, podemos calcular o volume d água que passou pela referida seção fazendo: v = q. t q elevação pico recessão a) q b) v q crescimento t recessão recessão t crescimento estável t Figura 4.2 Hidrograma de cheia que no gráfico é medido pela área do retângulo tracejado. É claro que o volume defluído no intervalo de tempo compreendido entre o inicio da cheia e um certo instante t, pode ser obtido repetindo este processo para todos os intervalos de tempo t compreendidos no referido intervalo e somando os respectivos v; vê-se, assim, que o volume é medido pela área compreendida no hidrograma. Naturalmente, se o cálculo numérico da área se efetua somando os produtos q. t, avaliada mediante as vazões que se tem no início de cada um dos intervalos t, cometese um certo erro, porque na realidade a vazão varia durante este mesmo intervalo. Mas esse erro é tanto menor, 1546
quanto menor forem os intervalos t, de modo que reduzindo estes intervalos, o processo de cálculo pode ser tanto preciso quanto se queira. Supomos agora que vamos barrar uma seção de um curso d água com uma barragem munida de orifício de fundo (um ou mais) e manter as comportas do orifício totalmente abertas. Até que a vazão do rio não supere um certo limite, essa vazão pode passar livremente através do orifício de fundo, e não há praticamente nenhuma alteração do regime natural: é a situação de magra que está representada esquematicamente na Figura 4.1a. Nesta situação, o reservatório permanece inoperante. Mas as coisas mudam quando chega uma cheia, que sem o reservatório daria logo um certo hidrograma, por exemplo o da Figura 4.3, com vazões superiores a um certo limite que poderia alagar uma certa área de jusante. Agora o orifício não consegue dar vazão para toda a água que chega nele, e um certo volume liquido começa a ser armazenado no reservatório, sobrelevando o espelho livre da água. Nestas condições, representada esquematicamente na Figura 4.1b, a vazão q f de saída do orifício depende do nível da superfície livre no reservatório e cresce com este: precisamente, essa é proporcional a raiz quadrada da carga h f, isto é do desnível entre a superfície livre no reservatório e o baricentro na seção de saída, multiplicada por uma oportuna constante de proporcionalidade A que dependa da forma e da dimensão do orifício, portanto neste caso a equação fica: q f = A h f (4.1) Como durante uma cheia o reservatório vai enchendo e esvaziando, a sua superfície livre muda de cota, portanto h f é variável com o tempo, e consequentemente a vazão de saída q f também varia com o tempo. Se o volume e a vazão da cheia são assim tão elevados, que a superfície livre no reservatório supera a crista do vertedor, entra em função também o descarregador de superfície, o qual deixa passar uma vazão q s, que depende da carga do vertedor h s, isto é, do desnível da superfície livre no reservatório e a crista ou soleira do vertedor: precisamente dito B um coeficiente que depende da forma da soleira e de sua largura, q s que resulta proporcional a potência 3/2 da carga, isto é, do produto da carga pela raiz quadrada, segundo a seguinte relação: q = Bh h (4.2) s s s Em esta situação, como mostra o esquema da Figura 4.1c, sai do reservatório contemporaneamente as duas vazões q f do orifício e q s do vertedor, respectivamente expressas pelas equações (4.1) e (4.2), ambas variáveis com o tempo em dependência com a variação da cota do espelho liquido do reservatório. Portanto nesta situação a vazão de saída do reservatório é a soma daquela que sai pelo orifício mais a do vertedor ficando a equação assim: q = q + q = A h + B h (4.3) t f s É obvio que a equação (4.1) seria desconsiderada, se o orifício de fundo fosse fechado por uma comporta. q Pico do hidrograma natural f s Redução do pico Hidrograma amortecido ou laminado 4.4 UMA VISÃO SOCIOTÉCNICA t Figura 4.3 Esquema da laminação da onda de cheia por uma barragem O tratamento técnico-científico das cheias dos rios e seus afluentes tem sido alvo de estudo da hidrologia e da engenharia hidráulica. Com isso, engenheiros civis estão cada vez mais envolvidos no tratamento desta questão. Todavia, a enchente em si pode ser vista como um problema complexo e de tratamento interdisciplinar, pois envolve ações de Estado, questões econômicas, prejuízos pessoais, etc., requerendo, portanto, uma visão mais ampla, tanto no que diz respeito aos conceitos técnicos como aos sociais. Assim, a integração analítica dos fatores naturais com os sociais parece ser um bom caminho a se seguir em busca de uma melhor convivência com estas 1547
situações problemáticas. As análises hidrometeorológicas, por sua vez, têm contribuído com uma visão de interface para a solução de problemas hidrológicos, no que tange à análise espacial e temporal da precipitação pluviométrica, e na previsão quantitativa de chuva a nível regional. Todavia, enquanto a primeira tarefa tem sido feita de uma forma multivariada, a segunda ainda tem sido alvo de muito esforço, resultados aproximados e algumas incertezas. A interdisciplinaridade, vista aqui como processo, tem sido uma boa forma de trabalhar esta questão, envolvendo atores de diversas formações, com o intuito principal de conhecer cada vez mais os fatores envolvidos que podem ser compreendidos. Do ponto de vista da análise do risco, há que se destacar que a crescente vulnerabilidade social às situações de emergência não deve ser vista apenas como um obstáculo, mas, principalmente, como um resultado desse processo de desenvolvimento socioeconômico. Assim, podemos caracterizar uma enchente no Vale do Itajaí (SC) como um fato social. Com respeito ao sistema de previsão de tempo, quando o interesse reside nas condições de geração e disseminação da informação meteorológica, a sua confiabilidade e, em especial, aquela associada com as chuvas intensas e duradouras fica a desejar. As peculiaridades de uma bacia hidrográfica e do sistema atmosférico atuante sobre a região de interesse compõem fatores que levam uma enchente a caracterizar-se como um acidente "normal", conforme SILVA (2000). Do ponto de vista da previsão dos fenômenos naturais, a necessidade de obtenção dos totais de chuva nos períodos antecedentes a uma possível elevação dos níveis dos rios, e a medição das taxas de elevação destes níveis, tornou a tarefa possível de ser organizada em três etapas distintas: o estudo do clima local e o desenvolvimento das tarefas inerentes à confecção ou obtenção da previsão do tempo regionalizada; o estudo da propagação das ondas de cheia ao longo da bacia hidrográfica para subsidiar a implantação de modelos matemáticos pluvio-hidrométricos e de propagação da água, para fins de previsão dos níveis em diversos pontos da região; e o estudo das possibilidades de realização de obras hidráulicas na região de modo a amenizar os efeitos da cheia nos municípios mais a jusante da bacia. 5. RESULTADOS O estudo da capacidade de armazenamento das ondas de cheia pela Barragem Norte foi realizado para quatro eventos bem representativos de cheias, o primeiro ocorrido em julho de 1983, o segundo em agosto de 1984, o terceiro em maio de 1992 e o quarto em julho de 1992. Inicialmente, foi realizada a transformação dos níveis em vazão, para cada evento selecionado, no posto fluviométrico de Ibirama. Logo a seguir, as vazões calculadas foram transportadas desde o posto fluviométrico de Ibirama até a Barragem Norte, através da relação de áreas, já que não há estação fluviométrica nas imediações da barragem. Na determinação dos volumes, os eventos de cheia foram discretizados em intervalos de 2 horas. Também foi considerada uma vazão constante efluente da barragem de 150 m 3 /s, pelo fato de haver três descarregadores de fundo sem controle (células). Nas Figuras 5.1 a 5.4 estão apresentados os hidrogramas de cheia estudados e seus respectivos volumes e finalmente, foram calculados os volumes d água para cada evento (ver Tabela 5.1). Vazão (m3/s) 1800,00 1600,00 1400,00 1200,00 1000,00 800,00 Barragem Norte Evento: 07/83 Vazão observada 150 m3/s V T = 618*10 6 m 3 600,00 400,00 200,00 V=357*10 6 m 3 V=261*10 6 m 3 0,00 1 11 21 31 41 51 61 71 81 91 101 111 121 131 141 151 161 Tempo (2 horas) 1548
Figura 5.1 Evento de cheia de julho de 1983. Vazão (m 3 /s) 1800,00 1600,00 1400,00 1200,00 1000,00 800,00 600,00 400,00 200,00 0,00 Barragem Norte Evento: 08/84 232*10 6 m 3 /s Vazão observada 150 m3/s 1 11 21 31 41 51 61 71 81 91 Tempo (2 horas) Figura 5.2 Evento de cheia de agosto de 1984. Vazão (m 3 /s) 1200,00 1000,00 800,00 600,00 400,00 200,00 0,00 Barragem Norte Evento: 05/92 V=316*10 6 m 3 Vazão observada 150 m3/s 1 11 21 31 41 51 61 71 81 91 101 111 Tempo (2 horas) Figura 5.3 Evento de cheia de maio de 1992. Tabela 5.1 Volumes obtidos nos eventos estudados e capacidade de armazenamento Evento Volume do Evento Capacidade da barragem (10 6 m 3 ) em armazenar (10 6 m 3 ) Julho/83 618 357 Agosto/84 232 232 Maio/92 316 316 Julho/92 128 128 1549
Vazão (m 3 /s) 900,0 800,0 700,0 600,0 500,0 400,0 300,0 200,0 100,0 0,0 Barragem Norte Evento: 07/92 Vazão observada 150 m3/s V=128*10 6 m 3 1 11 21 31 41 51 61 71 Tempo (2 horas) Figura 5.4 Evento de cheia de julho de 1992 5.1 ANÁLISE DOS RESULTADOS E CONCLUSÕES Baseado nestes resultados podemos dizer que no primeiro caso, evento de julho/83, a laminação da onda de cheia seria limitada devido ao volume da onda de cheia ter sido maior do que a capacidade de armazenamento do reservatório, enquanto que nos demais eventos, o reservatório teria grande capacidade de laminar as ondas de cheia, já que os volumes das cheias registradas foram menores do que a capacidade de armazenamento do reservatório. Assim, somente no evento de julho/83 a Barragem Norte não teria capacidade de reter toda a água que passou pela seção do rio onde foi construído o reservatório. Nos demais eventos estudados, toda a água que passou pela referida seção poderia ser retida pela barragem. Baseado nestes eventos podemos dizer que no primeiro caso, evento de julho/93, a laminação da onda de cheia seria restrito a uma parte do evento, pelo fato de que o volume da onda de cheia ter sido maior do que a capacidade de armazenamento da barragem, enquanto que nos demais casos, o reservatório teria grande capacidade de laminar as ondas de cheia, já que os volumes das respectivas ondas de cheia foram menores que a capacidade de armazenamento do reservatório. Portanto, os resultados numéricos encontrados nos levam a concluir que a Barragem Norte terá grande influência sobre os níveis do rio Itajaí do Norte e razoável no trecho do rio Itajaí-Acú, que fica localizado a jusante da referida barragem. Isto é mais provável para a grande maioria dos eventos de cheia que ocorrerão no futuro, sendo que, nos pontos mais próximos da barragem, o efeito de atenuação da onda de cheia deverá ocorrer com uma maior intensidade. Para os eventos de cheias de grandes volumes d água deverão ser observadas algumas limitações e talvez essa barragem possa ter uma influência menor. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS O conhecimento dos volumes que poderiam ser retidos na Barragem Norte, nos eventos estudados os quais foram registrados antes da construção da mesma, serviu para termos um melhor entendimento da potencialidade que o reservatório tem em controlar as ondas de cheia e assim, poder contribuir para as tomadas de decisões nas operações futuras da referida barragem. O estudo aqui apresentado não teve como objetivo definir regras de operação para o reservatório, pois tais regras são extremamente complexas e não podem ser definidas com segurança apenas com este tipo de estudo limitado, senão através de um modelo matemático aplicado à bacia inteira. No decorrer da evolução de uma cheia, para a operação de tal modelo, deve-se fazer chegar automaticamente à central de tomada de decisões, os dados pluvio-hidrométricos das estações localizadas nos vários pontos da bacia, além dos dados da situação de cada reservatório. Então, de posse do modelo, é possível examinar as conseqüências de vários conjuntos de manobras das comportas e, consequentemente, decidir qual delas efetuar. Mas, para que as decisões sejam rápidas, as várias tentativas computadas no modelo devem ser realizadas com extrema rapidez, em tempo real, o que é possível. 1550
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CORDERO, Ademar, LEON, Albanella Terán, MEDEIROS, Péricles Álves. Medidas de Controle de Cheias e Erosões. Revista de Estudos Ambientais. Blumenau: Editora da FURB, v.1, n.2, 27-45, 1999. DEOH. Departamento Estadual de Obras Hidráulicas, Florianópolis, 1997 SEVERO, D. L. e H. S. Silva; Aspectos Sinóticos da Enchente de Maio de 1992 no Vale do Itajaí. Anais do VIII Congresso Latino-Americano e Ibérico de Meteorologia e X Congresso Brasileiro de Meteorologia, 26 a 30 de out./1998, (em CD-ROM). LBV, Brasília, DF. SILVA, H. S. Uma Enchente no Vale do Itajaí (SC) é um Acidente Normal? Revista de Estudos Ambientais. Blumenau: Editora da FURB. Submetido para publicação, 2000., B. Frank, D. L. Severo e P. R. Rizzo; Estudo Climatológico da Precipitação na Bacia do Itajaí Santa Catarina. Anais do V Congresso Brasileiro de Meteorologia, de 7 a 11 de nov./1988, Vol. II, p. 89-93. Copacabana Palace, Rio de Janeiro, RJ. TUCCI, Carlos (Org.). Hidrologia Ciência e Aplicação. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1993. Agradecimentos Gostaríamos de agradecer aqui à CAPES/PICDT e à FURB pelo suporte financeiro e disponibilização da infraestrutura necessária. 1551