Gênero, Etno-conhecimento e Meio Ambiente ST. 31 Flávia Rodrigues dos Santos UFT Palavras-chave: turismo, percepção ambiental e unidades de conservação A relação entre o desenvolvimento do turismo e a percepção ambiental das mulheres que vivem no entorno do Parque Estadual do Jalapão, TO i. O turismo é uma atividade dinâmica que envolve diversos níveis de interação entre as pessoas, culturas e o meio ambiente. Tem condições de suscitar nas comunidades envolvidas valores e experiências que perpassam tanto a sobrevivência como a auto-estima das mesmas. Essas experiências reforçam o imaginário de segurança, bem estar e satisfação, que consistem nas principais expectativas das comunidades em relação à atividade turística. O deserto do Jalapão ii esteve isolado durante muitos anos, e as repercussões deste isolamento podem ser compreendidas sob vários aspectos que podem contribuir na leitura da forma como estas comunidades conduzem as suas vidas e como elas se comportam frente aos inúmeros movimentos que ocorrem na região, sendo um deles, talvez o mais forte, o turismo. A região tem se destacado no cenário nacional e internacional como um destino que proporciona aos visitantes experiências relacionadas a aventura, devido as suas belezas cênicas e suas características biogeofísicas, além dos aspectos culturais da população local, principalmente o artesanato feito a partir do capim dourado (Syngonanthus nitens), que é uma espécie da família das sempre vivas (Eriocaulaceae), característica das áreas de campos úmidos adjacentes às veredas da região, que tem sido coletada de forma não sustentável. Entretanto, a visitação no Jalapão é recente, tendo o seu início apontado nos idos de 1997, quando o governo do Estado iii começou a concentrar esforços no sentido de desbravar o Jalapão e colocá-lo como um dos principais destinos turísticos do país. O turismo surge neste contexto como um fenômeno que abre um portal para a emergência do novo. Aproximações com outras culturas, com modos de vida, valores e posturas bem distantes do contexto no qual as comunidades do Jalapão estavam imersas. Esse movimento acompanha uma conjuntura política internacional favorável a questão ambiental, no que tange ao desenvolvimento da atividade turística em áreas protegidas, que incentivou a criação de unidades de conservação federais e estaduais, como foi o caso do Parque Estadual do Jalapão iv. Somado a isso uma intensa participação do 1
governo no âmbito estadual, com cultura assistencialista, adotando uma postura verticalizada tanto na elaboração como na execução das políticas para o desenvolvimento da região. Estes pontos contribuem para a nossa reflexão no momento em que se percebe que houve uma mudança tanto nas relações familiares destas comunidades como na forma como as pessoas passaram a enxergar os recursos naturais. O contato com o novo, sugerindo outros desejos, anseios modificando a visão de mundo que passa a ser encarada de uma outra forma, e dentre muitas coisas, a vida na cidade v aparece como uma alternativa mais atraente, com possibilidades de experenciar diferentes formas de relações e de obter vantagens concretas como um melhor acesso à educação e a saúde, além de conforto, como o acesso à energia elétrica, por exemplo. A principal atividade econômica era a criação de gado, e agricultura de subsistência. Ao homem cabia a lida com os animais, e às mulheres, todo o trabalho de educar os filhos, cuidar da família e da roça. Destas responsabilidades vêm a representação social da família matriarcal, devido ao importante papel atribuído as mulheres, embora a maior parte fosse responsabilidade masculina. Vamos compreender melhor a mudança ocorrida, à luz do turismo, que é uma atividade que vem alterando, de forma gradativa, o cotidiano das comunidades locais. O interesse turístico do Jalapão é composto pela paisagem, com uma grande diversidade de atrativos e também pelo artesanato confeccionado a partir do capim dourado, que tem uma ocorrência bastante específica na região e que começou a ser difundido como uma alternativa de sobrevivência das comunidades locais. A divulgação do artesanato acabou por despertar o interesse do governo do Tocantins, que em 1992, por meio da Secretaria de Cultura do Estado resolveu promover cursos para melhorar a qualidade dos artigos e ampliar sua diversidade. (BEHR; ARRUDA, 2002) O interesse despertado pelo capim dourado foi imenso e passou a ser um referencial da região. O que antes era considerado apenas um capim com o qual se podia produzir alguns utensílios domésticos passou a ser o ouro, que só podia ser encontrado lá. Observamos a partir dos depoimentos vi, que esse fato por si só já eleva a auto-estima da comunidade, a impressão é que capim é um dos elos destas comunidades, até então isoladas, com outros mundos. (...) o capim foi muito bom pra nós. Por causa dele, todo mundo conhece o Jalapão. É bom olhar na TV e vê o nosso produto lá. (entrevista dia 25/04/2006 D. Jovenice) 2
Uma revolução nada silenciosa Com o incentivo governamental, as artesãs começaram a trabalhar melhor o produto, para que estivessem adequados a atender as demandas de exportação e como conseqüência ocorreu a valorização do mesmo. Paralelo a isso também o incentivo a formação de associações, em sua maioria formada por mulheres, por ser uma atividade predominantemente feminina. No entanto, a distribuição de tarefas na manufatura do capim conta com homens e meninos para a colheita e confecção de algumas peças, ainda de forma tímida. Ocorre então, uma inversão de papéis vii. A mulher passa de uma condição de cuidadora da família, para a de provedora, uma vez que vem das suas mãos a maior fonte de recursos. Embora as mulheres tenham assumido um outro papel na família, esse é um processo que tem implicações diretas nas relações. Conforme depoimento das entrevistadas, houve em um primeiro momento certa rejeição por parte dos homens, inclusive com alguns casos de violência contra a mulher, que dedicava maior parte do seu tempo para aprender e aperfeiçoar o artesanato e não estava mais tão disponível para o lar. Gradativamente, esta visão vem sendo modificada, mas ainda assim socialmente, o papel de provedor ainda é do homem. Ele é que é o chefe, porque é o homem, mas quem é chefe mesmo de botar as coisas na casa é eu. Só levam o nome. (entrevista dia 24/04/2006, D. Hortalina) As mulheres que atuam no receptivo turístico do Jalapão, procuram se organizar e conquistar espaços legítimos com voz para opinar e defender a própria atividade, como é o caso da parceria entre as associações de artesãs do capim dourado com o Naturatins viii, na implementação da portaria n 0 005 ix, que visa regulamentar a coleta, de forma que garanta a sustentabilidade do capim e consequentemente do artesanato da região. Este aspecto é um reflexo da mudança ocorrida na percepção destas pessoas com relação ao meio ambiente. A criação do Parque Estadual do Jalapão, trouxe consigo a noção de que era preciso estabelecer limites para o uso dos recursos naturais, para a preservação a biodiversidade e consequentemente da qualidade de vida da população local, a medida que foi estabelecendo regras para o uso destes recursos, juntamente com o trabalho de educação ambiental, desenvolvido pela equipe do Parque. A conservação começa a ser percebida (ainda que de forma incipiente) como condição para a sustentabilidade econômica. Os entrevistados revelaram uma visão para 3
a existência de diversos tipos de turistas e dos distintos interesses e usos sobre a natureza. Há uma noção de que o turista que degrada o ambiente e não respeita as fragilidades dos atrativos, além de não deixar renda no local. Um dos maiores impactos que nós temos é a época do Rally x, porque esse pessoal não trazem benefícios. A degradação das estradas e do meio ambiente é muito grande e já trazem tudo de fora. Esse tipo de turista nós estamos dispensando. (entrevista dia 25/04/2006, D. Jovenice) Os ecoturistas xi são frequentemente relacionados àqueles que levam orientação acerca da importância de se conservar a natureza. Não tem nada de ruim. O turista orienta as crianças para guardar o lixo porque eles falam que onde tem lixo não tem turista. (entrevista dia 22/04/2006, Tonha) A noção de que o recurso capim dourado é esgotável, contribuiu para que estas pessoas começassem a perceber o meio ambiente de forma diferente. Somado a este movimento, o aumento do fluxo turístico, traz a tona reflexões que não faziam parte do cotidiano local, como por exemplo, a sustentabilidade dos recursos naturais. O capim ainda sofre pressões das queimadas descontroladas na época de seca, coincidindo com a época da colheita (setembro). Neste sentido, em 2002 começou a ser desenvolvida uma pesquisa intitulada Conservação e Manejo de capim dourado no Jalapão, realizada pela Ong Pequi, em parceria com a Diretoria de Florestas do Ibama e com apoio da Associação Capim dourado do Povoado da Mumbuca, do Parque Estadual do Jalapão, da Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins e do Naturatins xii. Vale ressaltar que o contato da comunidade local com algumas pesquisas realizadas na região também tem contribuído para a mudança da percepção em relação ao meio, que também é revelada pela atitude das pessoas que sobrevivem do capim frente a coleta indiscriminada feita por outras comunidades não inseridas na região, causando um forte pressão. Se a comunidade não se unir, acaba o capim. Acabando o capim, acaba o dinheiro. (entrevista dia 25/04/2006, D. Jovenice) No que se refere à percepção do público pesquisado em relação à conservação dos recursos naturais, podemos dizer que há uma consciência de que os recursos não são eternos, que precisam ser conservados, mas isto em função da própria atividade turística e do desenvolvimento do artesanato. O contato com um tipo de turista que procura deixar renda no local e que demonstra posturas pró-ativas em relação ao meio ambiente (que é encarado como um respeito a ela mesma) e o risco de desaparecer a principal 4
fonte de renda, parece ser o incentivo para que a comunidade mude a sua forma de lidar, ou de pelo menos enxergar, o meio em que vivem e se torne atuante no processo. Referências BEHR, Miguel Von; ARRUDA, Moacir Bueno (org). Jalapão: expedição científica e conservacionista. Brasília: Ibama, 2002. FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (coord.). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996. PARENTE, Temis Gomes. Gênero e memória de mulheres desterritorializadas. (impresso, 2006) SEPLAN. Plano de Manejo do Parque Estadual do Jalapão. Secretaria de Planejamento e Meio Ambiente, Governo do Estado do Tocantins. Palmas, 2003. i O presente artigo é parte da pesquisa Turismo no Parque Estadual do Jalapão: identificação dos usos e proposição de medidas de controle e monitoramento, realizado através da parceria do Núcleo de Estudos Estratégicos em Ambiente e Turismo Sustentável (NEATUS/UFT) com Fundação Boticário de Proteção da Natureza e do projeto de pesquisa de mestrado Análise da implementação do Parque Estadual do Jalapão na percepção da comunidade em relação à conservação do cerrado, desenvolvida pela autora no Programa de Mestrado em Ciências do Ambiente (PGCIAMB/UFT). ii A região do Jalapão concentra a maior área protegida de Cerrado, com uma grande variedade de ambientes e alta biodiversidade. Está localizada no extremo leste do estado do Tocantins, cerca de 260 Km de Palmas, sendo cortada por importantes afluentes dos rios Tocantins e Parnaíba bacia do rio Tocantins, abrangendo principalmente os municípios de Mateiros, Ponte Alta e São Félix do Tocantins (SEPLAN, 2003). iii O Estado do Tocantins foi criado em 1988, e até então a região do atual estado, chamada de norte goiano, pertencia ao Estado de Goiás. Esse fato permitiu que a região do Jalapão começasse a receber apoio governamental tanto em termos de infra-estrutura como apoio para desenvolvimento da economia local. iv Em 2000, o Governo do Tocantins criou o Parque Estadual do Jalapão com a finalidade de conservar esse fragmento. É uma unidade de conservação que coincide com outras UCs de uso direto e indireto como a APA Estadual do Jalapão, a APA Federal da Serra da Tabatinga e Estação Ecológica da Serra Geral do Tocantins e o Parque Nacional das Nascentes do Parnaíba. Essa configuração requer um manejo integrado dessas UCs principalmente no que tange a inserção das comunidades envolvidas no processo de tomada de decisões e da participação das mesmas na conservação desse bioma. v Segundo dados do Censo Demográfico de 2000, havia um total de 1642 pessoas no município, distribuídas entre a área urbana (636 habitantes) e rural (1006 habitantes). Embora haja predominância da população rural com 61, 27%, este percentual veio caindo nos últimos anos, detectando-se uma pequena tendência de urbanização do município. No decênio de 1991/2000, a população rural caiu em torno de 5
8%, e igual percentual foi evidenciado no crescimento da população urbana, refletindo um certo processo migratório (Seplan, 2003) vi O método utilizado nesta pesquisa foi a história oral, que, conforme o FERREIRA E ARRUDA (1996), proporciona o encontro com subjetividade de narrativas nas quais se encontram um rico potencial para explorar as diferenças e o movimento que buscamos na realidade social, no caso a compreensão do movimento gerado pelo turismo no Jalapão. As entrevistas foram realizadas entre 26/04/06 e 12/05/2006, com as mulheres que atuam no receptivo turístico, mais especificamente as donas de equipamentos turísticos (hotéis, pousadas, bares, restaurantes, atrativos), além de mulheres que sobrevivem do artesanato do capim dourado. vii Os papeis de gênero representado pelas mulheres são aqui definidos como comportamentos e atitudes socialmente esperados dos membros de uma sociedade, diferenciados por sexo, pois falar de papeis de gênero é falar de padrões, regras que uma dada sociedade estabelece para com seus membros (PARENTE, 2006) viii O Naturatins é o órgão executor da política ambiental do estado. É de sua responsabilidade a gestão das Unidades de Conservação do estado. ix http: //www.naturatins.to.gov.br, acessado em 04/05/2006 x São chamados rallys todo o tipo de turismo que utilize moto ou 4x4, onde os turistas adotam uma postura de degradação da natureza e desrespeito a comunidade. xi O ecoturismo é considerado um tipo de turismo, voltado para o contato com a natureza e que visa o mínimo impacto ambiental. xii Disponível em http://www.pequi.org.br/capim.html, acessado em 28/05/3006. 6