Filosofia da linguagem: possibilidades dialógicas de estudo entre comunicação, sociedade e cultura 1

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Transcrição:

Filosofia da linguagem: possibilidades dialógicas de estudo entre comunicação, sociedade e cultura 1 Francismar FORMENTÃO 2 Universidade Estadual do Centro-Oeste, Guarapuava, PR Maria José Rizzi HENRIQUES 3 Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel, PR RESUMO: A concepção dialógica da linguagem e da comunicação engloba a relação vida/cultura, o real concreto, a formação da consciência dos indivíduos e a materialidade sígnica de todas as produções humanas; descentraliza o sujeito e o reconduz à situação de agente ativo em interação constante e fluída: um sujeito responsivo e responsável. A Filosofia da Linguagem de Mikhail Bakhtin proporciona estudos teórico-metodológicos relevantes na elucidação dos processos sígnicos de comunicação, da formação de consciências e da produção humana na cultura, centrada no dialogismo dialético. A ênfase do autor recai nos processos de reconhecimento comunicacional propondo em sua episteme o necessário e obrigatório enraizamento interdisciplinar. A também denominada semiótica discursiva de Bakhtin projeta-se como constructo teórico do pensamento comunicacional pelo seu alcance das complexas interações. PALAVRAS-CHAVE: Estudos Interdisciplinares; filosofia da linguagem; comunicação; sociedade; cultura. A importância e a justificativa das pesquisas em Filosofia da Linguagem ocorrem pela sua proposta de uma metodologia inovadora, dando continuidade aos estudos do materialismo histórico, refletindo suas raízes e solucionando suas redutibilidades. Nossos objetivos se clarificam do mesmo modo, pois a apreensão dos fundamentos teórico-metodológicos de Mikhail Bakhtin na linguagem, na comunicação e no estudo da cultura apresenta pertinência na sua tradutibilidade e compreensão do passado e do presente históricos em relações dialógicas (interdisciplinares, de interação discursiva) privilegiando a tradição dialética/dialógica e materialista histórica (conteúdo/forma), mas ampliando-a: conteúdo se constitui para Bakhtin no elemento ético-cognitivo e a forma em elemento estético de sentido. 1 Trabalho apresentado DT 8 Estudos Interdisciplinares do XI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul e realizado de 17 a 19 de maio de 2010. 2 Graduado em jornalismo, Especialista em Comunicação, Educação e Artes, Mestre em Letras Linguagem e Sociedade (Unioeste), doutorando em Comunicação e Cultura (UFRJ); docente da Universidade Estadual do Centro- Oeste (Unicentro) Guarapuava PR. E-mail: fformentao@yahoo.com.br. 3 Doutora em Educação (UFSCar); docente da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) Cascavel PR. E-mail: zeze-henriques@hotmail.com. 1

Unem-se a realidade do conhecimento como o mundo e seus momentos com todos os seus valores éticos e do conhecimento e a forma ao expressar uma relação substancial com todos os valores do conhecimento e do ato. (BAKHTIN, 1998, p. 35). A pertinência e a atualidade teórica e metodológica de Bakhtin são demonstradas pelo acúmulo de pesquisas realizadas no Brasil nos últimos anos, assumindo esses aspectos salientados uma condição de enfrentamento necessário ao pesquisador e não um óbice. De fato, a [...] obra de Bakhtin e de seu Círculo deu origem a uma das correntes de pensamento mais influentes do século XX. Entre os aspectos responsáveis pela sua repercussão, está a formulação de uma complexa malha conceitual, construída nos interstícios de diversos domínios das Ciências Humanas (a Filologia, a Filosofia da Linguagem, a Lingüística, a Sociologia, a Estética, a História, a Antropologia) e, por isso mesmo, capaz de produzir questões, de orientar abordagens e de apontar caminhos de pesquisa que não se esgotam em uma única disciplina acadêmica. Essa natureza interdisciplinar pode explicar o fato de que a obra do Círculo tenha sido incorporada e articulada a diversos outros teóricos, das formas as mais variadas. (GRILLO. In: BRAIT, 2006, p. 133). A concepção dialógica da linguagem e da comunicação engloba a relação vida/cultura, o real concreto, a formação da consciência dos indivíduos e a materialidade sígnica de todas as produções humanas, dotadas de valor; descentraliza o sujeito e o reconduz à situação de agente ativo em interação constante e fluída, um sujeito responsivo e responsável. Nessa concepção, a mediação é integrante teóricoprático no plano volitivo-emocional e ético-cognitivo e estético, unindo o mundo sensível e o mundo inteligível em conteúdo-forma-processo. O conjunto das obras de Bakhtin e seu círculo demonstram os aspectos citados na dimensão da materialidade sígnica e no encadeamento de todos os conceitos/categorias, melhor dizendo, movimentos de uma dialética enraizada no materialismo histórico. Em a Estética da Criação Verbal (2003, p. 393-410) Bakhtin apresenta no capítulo Metodologia das ciências humanas um claro dialogismo com as obras de Karl Marx: as unidades dialéticas, homem-natureza, conteúdo-forma, sujeitoobjeto, a teoria da alienação, a crítica ao hegelianismo, a crítica ao pensar monológico. A dimensão política, simbólica, imaginária, tanto quanto qualquer outra dimensão possível surge somente quando se tem uma existência real na infraestrutura. Essa perspectiva é elaborada na linguagem e pela linguagem, e captada em discursos, eivados de valor. 2

Pode-se afirmar que a cultura existe em um universo sócio histórico definido, e se institui em um horizonte axiológico partilhado por comunidades semióticas em constante interação. Ao estabelecer a perspectiva semiótica na comunicação e nas culturas humanas, Bakhtin assume a prevalência do movimento da história na produção dos discursos. As contribuições bakhtinianas para uma teoria/análise dialógica do discurso, sem configurar uma proposta fechada e linearmente organizada, constituem de fato um corpo de conceitos, noções e categorias que especificam a postura dialógica diante do corpus discursivo, da metodologia e do pesquisador. A pertinência de uma perspectiva dialógica se dá pela análise das especificidades discursivas constitutivas de situações em que a linguagem e determinadas atividades se interpenetram e se interdefinem, e do compromisso ético do pesquisador com o objeto, que, dessa perspectiva, é um sujeito histórico. (BRAIT. In: BRAIT, 2006, p. 29); Sob a perspectiva de Bakhtin, podemos estudar o processo de produção de sujeitos e discursos relacionados ao movimento da história em seu devir, que tende para a incompletude e para a polifonia: as vozes perceptíveis e as imperceptíveis, as pessoais, as anônimas, as próximas e as distantes que dele fazem parte. (BRAIT. In BARROS; FIORIN, 2003, p. 14). O método dialógico consiste em conceber a linguagem como geradora de todos os aspectos que erigem uma sociedade e que conseqüentemente produzem a dinâmica da vida social política-econômica em geral e os resultados das ações humanas sobre a natureza. Fundamentado no materialismo histórico, o autor explicita que as ciências humanas têm como objeto os processos de significação que se definem pela compreensão responsiva entre interlocutores, entre discursos/enunciados em seu sentido lato. (BARROS. In: FARACO et al. 2001, p. 24). No princípio dialógico há uma interdependência entre sujeitos que se comunicam, entre o eu e o outro. A alteridade é indispensável em todas as relações: entre o sujeito e o objeto do conhecimento, entre o homem e o mundo, entre a vida e a arte. Os discursos falam vozes diversas que mostram a compreensão que cada classe ou segmento de classe tem do mundo, em um dado momento histórico, os discursos são, por definição, ideológicos, marcados por coerções sociais. (BARROS. In: FARACO, et al, 2001, p. 34). 3

O arcabouço conceitual em torno da semiótica de Bakhtin incorpora dialogicamente o processo histórico e as condições de elaboração de epistemes no processo de transformação contínua e em devir da história, na dinâmica das forças sociais de forma ética e estética. No dialogismo, a criação verbal engloba a relação vidacultura, o real concreto, a formação de consciências e a materialidade sígnica das produções culturais, apresentadas em signos ideológicos, com uma mediação integrante do plano volitivo-emocional e ético-cognitivo, unindo o sensível e o inteligível em conteúdo-forma-processo. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem (1999), Bakhtin especifica que a linguagem é produto material da criação ideológica, negando as interpretações da ideologia como falsa consciência e afirmando que, um produto faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo o que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia. (BAKHTIN, 1999, p. 31). Nessa mútua correspondência entre signo e ideologia, todos os fenômenos ideológicos estão subsumidos à mesma definição geral. (BAKHTIN, 1999, p. 33). As ciências humanas ao descreverem um sujeito, um objeto, ao propor nesta descrição conhecê-los, e ao dispor nos discursos este conhecimento determina que o método existente no dialogismo (a compreensão respondente) seja de ordem cognitiva, ética, moral, científica, interpretativa, implicando em uma contrapalavra que se orienta para esta descrição, para esta proposta e para esta configuração do conhecimento. Como os sujeitos pertencem a classes sociais distintas e dialogam com os diferentes discursos existentes, fomentam um jogo complexo em que inúmeras vozes sociais surgem para aceitar, recusar, duvidar, criticar, complementar, parodiar os discursos sociais. Assim surge a plurivalência social do signo, os índices de valor contraditórios dos signos que se confrontam nos interesses sociais de uma comunidade semiótica e que conduzem ao entendimento da cultura como o universo dos discursos. Universo com diferentes materialidades ideológicas em constante fluxo de sentidos e significados, conexões e processo de cadeias interdiscursivas que transitam entre a ideologia do cotidiano e os sistemas ideológicos já cristalizados e constituídos (moral, ciência, arte e religião por exemplo). (BAKHTIN, 1999, p. 119). 4

Os inúmeros discursos que alicerçam a cultura, a economia, a política, a religião, a ciência, entre outros, compreendem diferentes conjuntos ideológicos propiciando um incessante intercurso plural em seus sentidos e significados, de tal sorte que a linguagem funcionará de modo diferente para cada grupo social. Na cadeia semiótica interdiscursiva, a consciência humana constrói-se como realidade mediante a encarnação material em signos ligada por elos de signos relacionados entre si e por cadeias sucessivas entre as consciências individuais (BAKHTIN, 1999, p. 33, p. 34). A identidade é construída e determinada por relações entre a infra e a superestrutura, na comunicação interativa, refletindo e refratando uma realidade histórica. (BAKHTIN, 1999). As formas de intercurso social e suas características, os múltiplos discursos que abarcam variados elementos ideológicos contidos na interação comunicativa permitem a realização da significação do que é dialogizado e o processo de formação ideológica da identidade de sujeitos. O sujeito interativo forma a sua consciência pela cadeia ideológica que [...]estende-se de consciência individual em consciência individual, ligando uma às outras. Os signos só emergem, decididamente, no processo de interação entre uma consciência individual e uma outra. E a própria consciência individual está repleta de signos. A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, conseqüentemente, somente no processo de interação social. (BAKHTIN, 1999, p. 34). Trata-se de uma cadeia de significação de aproximação de um signo a outro ou outros signos conhecidos, ocorrendo a compreensão pelo encadeamento de um signo a outro. E essa cadeia de criatividade e de compreensão ideológicas, deslocando-se de signo em signo para um novo signo, é única e contínua: de um elo de natureza semiótica (e, portanto, também de natureza material) passamos sem interrupção para um outro elo de natureza estritamente idêntica. (BAKHTIN, 1999, p. 34). No dialogismo existe uma cadeia ininterrupta de compreensão ideológica (semiótica), de elos encadeados, conectados à consciência de outro indivíduo, dentro da mesma esfera, dentro da cultura de uma determinada comunidade semiótica. A identidade constituída semioticamente e forjada interativamente no e pelo outro(s) sustenta-se na diferença, apresentando aspectos subjetivos e objetivos provenientes do processo de internalização de relações sócio-histórico-ideológicas e culturais no fluxo da cadeia sígnica. 5

Esta identidade caracteriza-se pelo agir do sujeito no fluxo da comunicação, pela compreensão responsiva que o sujeito tem deste fluxo, pela compreensão responsiva que o sujeito empreende em suas relações interdiscursivas tanto quanto pela perspectiva de classe em que está inserido, isto é, no uso do material semiótico que se encontra a sua disposição, no confronto sígnico que recebem valores contraditórios. A filosofia da linguagem permite explicar como em cada campo da criação humana (literário, científico, religioso, filosófico, político etc.) se orienta a refração da realidade, que está encarnada no signo e na própria consciência humana, verificada na produção discursiva, na interação comunicativa. Como o dialogismo é também o princípio gerador da linguagem e da produção de sentido do discurso, todos os discursos realizados pelo sujeito empreendem o dialogismo retrospectivos e prospectivos com outros enunciados/discursos (SOBRAL. In: BRAIT, 2005, p. 106). O sujeito que habita um mundo polifônico e pluridiscursivo, transformando-o e sendo transformado dialogicamente nele e por ele, é aquele que julga, interpreta, avalia as formas de representação e de transmissão discursiva. (BRAIT. In: FARACO et al. 2001, p. 78-80). Concordando ou confrontando, parodiando, ironizando, se opondo entre tantas outras formas possíveis de compreensão responsiva, o sujeito é mediado pelo outro para instituir o seu pensamento, a sua consciência e suas funções cognitivas. Todo conhecimento é construído inicialmente entre pessoas, através da linguagem, como interação social, para depois se tornar interpessoal, discurso interior. (FREITAS. In: FARACO et al., 2001, p. 74). O eixo triádico eu-para-mim, eu-para-os outros, o outro-para-mim, é a categoria/movimento nuclear da relação estética e ética, entre a arte, o mundo e a vida. A assimilação sígnica (ideológica) e experencial do ser e estar no mundo na tríade assinalada, abrange a análise dos atos do sujeito em uma realidade concreta, seu contexto e todos os demais elementos que fazem parte da interação: horizonte axiológico, compreensão responsiva, esfera/campo da comunicação, por exemplo. O caráter responsável do agir humano é relacional, é criador, impregnado de valor em um sistema aberto para a contradição, a anuência, a negação, a oposição, entre tantas outras possibilidades. Unindo o plano sensível e o inteligível, conteúdo e forma, a objetividade e a subjetividade existentes em uma dada sociedade, as categorias/movimentos da dialética 6

da Filosofia da Linguagem de Mikhail Bakhtin, permite uma ampla construção teórica de um mundo plural em signos, em esferas/campos, em mediações. CONSIDERAÇÕES FINAIS O mundo contemporâneo, essencialmente contraditório nos aproxima e nos separa, nos determina à reciprocidade e à luta fratricida, nos incita a propósitos afetivos mas, também, à exploração. O seu movimento histórico, claramente se define como unidade de opostos que produzido na conexão da superestrutura com a infraestrutura se caracteriza pelo distanciamento/interação. As fronteiras entre o homem e a natureza são do sujeito do conhecimento imerso na contradição histórica e nos impelem ao questionamento das relações entre eu e os outros em termos de formação de consciência, de identidades, de valores, de educação, de direitos e deveres, de uma existência particular numa vida coletiva. A linguagem torna-se na fundamentação de Bakhtin uma área abrangente de estudos na sua variação lingüística, na expressividade discursiva, na construção de imagens e dos simulacros existentes na cultura, na competência dada a determinados sujeitos da comunicação para a diversidade que ela institui. Esta pluralidade de vozes, de línguas, de discursos surge em decorrência da [...] coexistência de contradições sócio-ideológicas entre presente e passado, entre diferentes épocas do passado, entre diversos grupos sócio-ideológicos, entre correntes, escolas, círculos etc. Estes falares do pluringüismo entrecruzam-se de maneira multiforme, formando novos falares socialmente típicos. (BAKHTIN, 1998, p. 98). Bakhtin deslocou o sujeito da posição central de emissor do discurso para a pluridiscursividade, que na interação comunicativa, se produz como sujeito sóciohistórico e ideológico na cultura. Estas considerações indicam que toda vida humana é vivida na linguagem e pela linguagem centrada em uma dimensão espacial temporal que não aceita as formas oficiais de preconceito lingüístico: a norma culta versus a norma vulgar, a forma superior versus a forma inferior, o público intelectual e o público popular. As conversas cotidianas, as discussões em família, entre patrão e empregado, as saudações, os encontros casuais e familiares, as brincadeiras, a vida na rua, a música são produções culturais instauradas no dialogismo. 7

Fazemos parte de uma totalidade social que adquire diferentes aspectos na produção de sentidos efetivada no processo de interação ininterrupto. Integrados a este processo, a diversidade e a pluralidade correspondem à cultura como a instância na qual transitam os discursos sócio-históricos originados do movimento dos índices de valor contraditórios decorrentes do confronto de interesses sociais. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: contexto de François Rebelais. São Paulo: Hucitec. 1987. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BAKHTIN, Mikhail. Discurso na vida e discurso na arte: sobre a poética sociológica. In: Freudism a marxist critique. Tradução de FARACO, C. e TEZZA, C. (UFPR) para fins didáticos. New York: Academic Press, 1976. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999. BAKHTIN, Mikhail. O freudismo: um esboço crítico. São Paulo: Perspectiva, 2004. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora UNESP, 1998. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Contribuições de Bakhtin às teorias do texto e do discurso. In: FARACO, Carlos Alberto et al (Orgs.). Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Editora da UFPR, 2001. BRAIT, Beth. Análise e teoria do discurso. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. BRAIT, Beth. A natureza dialógica da linguagem. In: FARACO, Carlos Alberto. TEZZA, Cristóvão; CASTRO, Gilberto de. Diálogos com Bakhtin. Curitiba: UFPR, 2001. BRAIT, Beth. As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz (orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 2003. FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Bakhtin e a psicologia. In: FARACO, Carlos Alberto et al (Orgs.). Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Editora da UFPR, 2001. GRILLO, Sheila V. de Camargo. Esfera e campo. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. 8

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