A terra como material de construção Teresa Diaz Gonçalves, Investigadora Auxiliar do LNEC, teresag@lnec.pt Maria Idália Gomes, Docente do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL), Estagiária do LNEC, idaliagomes@dec.isel.ipl.pt 1 - Introdução A terra é um material de construção tão antigo como a própria humanidade. É a base de alguns dos monumentos e conjuntos arquitectónicos mais valiosos e interessantes do mundo, como a aldeia de Ait-Bem-Haddou, em Marrocos, a mesquita de Djenné, no Mali, a cidadela de Chan Chan, no Peru, ou a cidade antiga de Shibam, no Iémen, todas classificadas como património mundial pela UNESCO. A terra foi utilizada como material de construção em todos os continentes, o que lhe dá um carácter claramente universal. A sua importância ressalta também do facto de, na actualidade, pelo menos 30% da população mundial viver ou trabalhar em construções de terra, especialmente na Ásia, em África e na América do Sul. As técnicas tradicionais baseadas no uso da terra crua enquadram-se, de uma forma lata, no grupo das chamadas técnicas vernaculares pois utilizam materiais disponíveis no próprio local da construção e, de uma forma geral, recursos locais. Por essa razão, apresentam normalmente variações acentuadas de região para região ou mesmo diferenças entre construções situadas em terrenos relativamente próximos. Apesar disso, é possível distinguir alguns tipos principais de sistemas, a maior parte de génese tradicional. 2 - Principais sistemas construtivos De acordo com o CRATerre, ONG internacional dedicada à investigação e formação na área da construção de terra, e com o diagrama estabelecido por esta organização em 1986, há três tipos fundamentais de sistemas, enquadrando dezoito sistemas construtivos: 1/9
A - sistemas monolíticos B - sistemas de alvenaria C - sistemas de enchimento ou revestimento Fig. 1 Diagrama estabelecido pelo grupo CRATerre (1986) A estas três famílias de sistemas, julga-se pertinente acrescentar uma quarta, também muito relevante: D - sistemas de ligação Descrevem-se sumariamente a seguir os principais sistemas construtivos que constituem estas quatro famílias (não se segue estritamente o diagrama do CRATerre): A - SISTEMAS MONOLÍTICOS A terra escavada, na horizontal ou na vertical, que é utilizada desde a pré-história. A terra modelada, que consiste em moldar barro à mão, executando a construção por faixas, segundo o chamado método dos rolos de oleiro. A terra empilhada, que consiste em sobrepor molhes de terra misturada com palha, formando fiadas que são aparadas por corte vertical. Esta técnica existe por todo o 2/9
globo, sendo muito mencionada por autores e técnicos de língua inglesa, nomeadamente porque é comum no Reino Unido (onde se designa cob ). A terra vazada, em que se usa terra argilosa que é misturada com água e areia grossa ou gravilha e depois é vazada em cofragens, como se fosse betão. A taipa (Br: taipa de pilão ), que utiliza em geral terras arenosas com agregados mais ou menos grosseiros e baixo teor de água, sendo compactada entre cofragens que se chamam taipais. A compactação pode ser feita manualmente, utilizando um pilão de madeira ou, mais recentemente, com equipamentos pneumáticos. As paredes de taipa são também construídas por faixas. Acima do solo, os taipais são fixos à estrutura subjacente por peças que se denominam agulhas. A taipa foi a técnica construtiva mais utilizada no sul de Portugal (Alentejo e Algarve) até, pelo menos, aos anos 50 do século XX. Hoje, muitas das construções de taipa portuguesas estão ao abandono, especialmente em zonas rurais. Felizmente há, desde alguns anos e tal como em vários outros países, um renascimento do interesse por esta técnica, que é actualmente uma das mais importantes na nova construção de terra crua. B - SISTEMAS DE ALVENARIA Os blocos talhados, que podem ser simplesmente cortados de zonas de terra vegetal coesa, caso em que se designam torrões de terra. Podem também ser obtidos a partir de laterite, que é um tipo de solo alterado, com boa coesão, que se forma por acção da humidade. O adobe é um sistema ancestral com grande utilização actual. Note-se que o termo adobe pode ser utilizado para designar o próprio bloco ou a técnica construtiva. Os adobes são blocos de terra bastante argilosa, que são moldados sem compactação e secos ao sol, normalmente no próprio local da construção. Na sua forma mais rudimentar, os tijolos de adobe podem ser simplesmente moldados à mão, adquirindo forma arredondada. Os adobes também podem ser moldados artesanalmente em formas de madeira, que é o processo mais comum, tendo as formas de compartimentos múltiplos sido introduzidas já no séc XX. A terra utilizada no adobe inclui normalmente fibras vegetais e por vezes é estabilizada com cal aérea (ou até alguma percentagem de cimento, em certas variações mais recentes da técnica). O processo artesanal é o mais 3/9
comum na produção de adobe que, no entanto, também pode ser obtido por processos semi-industriais, com recurso a tractores adaptados. Os blocos de terra comprimida são outro importante sistema construtivo. Estes blocos podem ser simplesmente apiloados à mão, usando formas de madeira e um pilão. Esta técnica rudimentar é tradicional, por exemplo, de certas regiões de África. Modernamente, estes blocos são fabricados com o auxílio de máquinas e constituem os chamados BTC (blocos de terra comprimida), que são outra das técnicas com grande significado na nova construção de terra. O BTC é obtido a partir de terra estabilizada com certa percentagem de cal ou, mais comummente, cimento. O método de fabrico mais simples usa prensas manuais. A primeira prensa manual de fabrico de BTC (a Cinva-Ram) foi inventada na Colômbia, nos anos 50, para permitir a construção de habitações de baixo custo. Hoje existem muitos outros tipos de máquinas de fabrico de BTC, manuais, a gasóleo ou gasolina, incluindo equipamentos verdadeiramente industriais. A utilização de blocos de BTC pode reduzir o custo global das construções e também promover o desenvolvimento económico local, permitindo o estabelecimento de pequenos empreiteiros, fabricantes e aplicadores especializados na utilização dos materiais da região. Isto pode decorrer também da utilização da taipa e do adobe, mas o BTC é em muitas situações mais fácil de implementar pois está próximo das actuais técnicas de construção (que usam blocos de betão ou tijolo cerâmico), inclusive pela maior regularidade dimensional dos blocos. A terra extrudida deriva do modo de produção de tijolos cerâmicos. Neste caso, porém, além da argila usa-se também por vezes um ligante (cimento ou cal) e não há obviamente lugar a cozedura. Existem empresas que comercializam correntemente este tipo de blocos em vários países. A terra ensacada é um sistema que ganhou significado mais recentemente (e talvez por essa razão não é mencionado no diagrama de 1986 do CRATerre). Evoluiu das técnicas de construção de bunkers militares e de diques temporários e destina-se a proporcionar abrigos de construção rápida, embora haja também algumas utilizações mais arquitectónicas. Este tipo de sistema foi popularizado nos anos 80 pelo arquitecto iraniano Nader Khalili, que lhe chamou superadobe (pois usava terra semelhante à utilizada no fabrico do adobe) e utilizou sacos longos, em forma de tubo. 4/9
C - SISTEMAS DE ENCHIMENTO OU REVESTIMENTO Na terra de guarnição, em que se inclui o tabique (Br: taipa de fasquio ), a terra não tem função estrutural, como aliás acontece com os restantes sistemas de enchimento ou revestimento. O tabique foi muito utilizado no Norte de Portugal, na construção de andares elevados (normalmente o último andar), e consiste na aplicação de terra misturada com uma certa percentagem de fibras naturais (palha, por exemplo) sobre uma estrutura de madeira. Este tipo de sistema existe também noutros países, com muitas variações e diferentes designações (como o torchis, em França). A terra de enchimento é corresponde ao material utilizado, em muitas construções tradicionais e históricas, no preenchimento do espaço entre panos de alvenaria. Existem também soluções actuais que se enquadram nesta classificação, em se usa terra crua para, por exemplo, encher blocos de betão ocos. A terra-palha utiliza argila líquida misturada com uma quantidade substancial de palha e é aplicada utilizando cofragem. Usa-se associada a uma estrutura de madeira e existe por exemplo em países como a Alemanha ou a Bélgica. Os revestimentos de terra são uma utilização tradicional, mas que também encontra lugar em aplicações actuais. A terra é usada como revestimento de suportes de tipo variado, nomeadamente, de vários dos tipos mencionados (taipa, adobe, cob, etc.). As coberturas de terra são outro sistema com relevância e, tradicionalmente, eram construídas sobre uma estrutura de madeira. D - SISTEMAS DE LIGAÇÃO Os sistemas de ligação referem-se à utilização da terra em argamassas de assentamento, em alvenarias de blocos (regulares ou irregulares) de terra, pedra ou tijolo cerâmico. 5/9
3 - Relevância actual das técnicas construtivas da terra crua As técnicas da terra crua têm hoje interesse devido à existência de um vasto património constituído por construções de terra. Existem, nomeadamente, várias localidades Portuguesas que se baseiam em edificações de terra. Podemos referir, por exemplo, a cidade de Aveiro, cujo centro histórico se está a concluir ser maioritariamente constituído por construções de adobe, e a vila de Mértola, que é representativa do sul de Portugal, onde a taipa predominou até pelo menos aos anos 50 do século XX. No âmbito da conservação do património e da reabilitação habitacional, as técnicas da terra crua permitem utilizar materiais compatíveis, que são funcionalmente adequados e que respeitam o carácter histórico dos edifícios. A utilização da terra crua tem também muito interesse no âmbito da construção actual, o que tem motivado uma crescente atenção dos técnicos e utilizadores em todo o mudo. Há hoje abordagens essencialmente artesanais da construção de terra, nomeadamente a que existe nos locais em que as técnicas tradicionais ainda são uma realidade e a que praticam muitos utilizadores de zonas industrializadas, que procuram uma maior aproximação à natureza. Mas há ainda outro tipo de abordagem da terra crua, enquadrada no âmbito da engenharia, que usa hoje três técnicas principais: a taipa, o adobe e o BTC. Estas técnicas sofreram importantes desenvolvimentos recentes e viram muito aumentada a sua competitividade. As principais razões do interesse crescente que a nova construção de terra crua desperta são as seguintes: As vantagens ambientais que proporciona: O baixo consumo de energia associado à própria construção e ao fabrico e transporte dos materiais, que permite a cada vez mais procurada e necessária redução da pegada de carbono. Esta redução poderá decorrer da utilização generalizada da terra a toda a construção ou de uma utilização apenas parcial, por exemplo, só em paredes interiores. A facilidade de reciclagem que, no caso dos elementos de terra, pode envolver apenas a simples desagregação e englobar 100% do material. As enormes possibilidades arquitectónicas dos materiais de terra, que têm um carácter estético particular e extremamente actual. 6/9
As reclamadas características de conforto térmico, hídrico e acústico que a terra proporciona, decorrentes da sua baixa condutividade térmica, da sua higroscopicidade (que favorece a regulação da humidade relativa dos ambientes) e da massa significativa das paredes de terra (que proporciona grande inércia térmica e bom isolamento acústico). O custo associado à construção de terra crua. Este custo poderá variar com as técnicas em causa e as circunstâncias locais, nomeadamente o preço da mão-de-obra e o conhecimento técnico disponível. Contudo, de uma forma geral, o baixo custo poderá ser uma das grandes vantagens da construção de terra. Duas das maiores limitações normalmente apontadas aos sistemas construtivos de terra crua são a baixa resistência sísmica e a sensibilidade à acção da água. Essas limitações têm que ser devidamente consideradas e avaliadas face às condições específicas de cada local. Em geral, poderão ser ultrapassadas ou minimizadas com recurso a disposições construtivas adequadas, por exemplo: Reforço das paredes de terra com estrutura de madeira ou mesmo a associação destas paredes a uma estrutura de betão ou de aço em zonas sísmicas. Utilização de fundações, embasamentos, coberturas e revestimentos que permitam uma adequada protecção em relação à água. De facto, muitas técnicas tradicionais de terra crua utilizadas em zonas húmidas recorrem a este tipo de soluções, com resultados muito positivos, como decorre da sobrevivência de construções de terra centenárias. Existem hoje vários documentos regulamentares relativos à construção de terra, nomeadamente os que a seguir se indicam a título de exemplo: As normas da Nova Zelândia, NZS 4297:1998, 4298:1998 e 4299:1998 - Earth Building Set que, além da taipa, adobe e BTC, focam também a terra vazada. O código alemão Lehmbau Regeln (1999) da DLV (Dachverband Lehm e.v.), uma associação não-governamental para a construção de terra, que foi o primeiro código publicado na União Europeia. A norma peruana E.080:2000 sobre adobe. A norma do Zimbabué SAZ 724:2001 - Code of Practice for Rammed Earth, que foca a taipa. 7/9
A norma australiana CSIRO 5:2002 - Earth-wall construction, sobre adobe, taipa e BTC. O código do novo México Earthen Buildings Materials Code (2003), também sobre taipa, adobe e BTC. 4 - Questões em aberto: o papel dos Laboratórios de Estado Não obstante todas as possibilidades e o grande interesse actual que a construção de terra suscita, há várias questões a requerer investigação. Indicam-se seguidamente três linhas que serão actualmente talvez as mais relevantes. É necessária investigação de carácter tecnológico sobre os sistemas construtivos, os materiais e a sua utilização na indústria da construção. A selecção destes sistemas, a definição das características (que importa e é possível obter) dos materiais e o estabelecimento das disposições construtivas associadas, bem como a avaliação das potenciais vantagens económicas da utilização da terra crua devem ser efectuadas com base no conhecimento das circunstâncias locais e visando uma boa adaptação a estas. A compatibilidade dos materiais de terra crua com os modernos materiais de construção é outro tema que exige atenção. Verificam-se, por exemplo, casos de ocorrência de degradação na interface entre a terra e materiais cimentícios, nomeadamente elementos construtivos de betão, em presença de humidade. Uma das principais hipóteses é a formação e cristalização de sais carbonatos, segundo processos expansivos. É, no entanto, necessário compreender efectivamente a patologia associada a estes processos, de modo a evitar a sua ocorrência em novas construções e permitir uma adequada reparação das construções afectadas. Refere-se, por último, a questão das vantagens ambientais, que é certamente um dos mais relevantes tópicos de investigação dentro do tema da construção de terra crua. Estas vantagens são, de facto, geralmente nomeadas de modo tão entusiástico como genérico. Julga-se que devem ser avaliadas com realismo e precisão pois podem ser diferentes para os diversos sistemas construtivos, bem como variar com os materiais e as tecnologias utilizados em cada caso. Há, por exemplo, a questão de como a incorporação de estabilizantes, nomeadamente cimento (que é utilizado em proporções diversas), poderá 8/9
afectar a reciclabilidade do material. E também o impacto das diferentes técnicas no consumo energético. Este impacto será certamente diferente para os métodos manuais de execução da taipa, adobe e BTC e para os métodos semi-industriais, como a compactação da taipa com martelos pneumáticos, a produção de adobe com tractores adaptados ou a utilização de máquinas a gasóleo ou gasolina de fabrico de BTC. E há certamente também diferenças, que cumpre avaliar, entre estes e os métodos industriais, por exemplo, de produção de blocos de terra extrudida, que são comercializados e transportados como os tijolos correntes. A análise e o esclarecimento destas e de outras questões específicas de cada região, relativas às vantagens e limitações da utilização da terra crua na construção, estão claramente enquadrados no âmbito de actividade dos Laboratórios de Estado.. Bibliografia principal Associação Centro da Terra - Glossário. Consultado em Dezembro de 2009 em http://www.centrodaterra.org/pt/ferramentas/glossario/index.html. Portal do Cal-Earth - The California Institute of Earth Art and Architecture. Consultado em Dezembro de 2009, http://calearth.org/. Maria Fernandes - Terra: material, patologia, conservação. Apresentação efectuada ao 6º curso de mestrado em reabilitação de arquitectura e núcleos urbanos da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, 2007, http://mestradoreabilitacao.fa.utl.pt/disciplinas/jaguiar/mariafernandesterra2.pdf. Arquitectura de terra em Portugal. Argumentum, Lisboa, 2005. Jean Dethier - Des architectures de terre ou l'avenir d'une tradition millénaire [exposition / catalogue]. Centre Georges Pompidou, Paris, 1981. 9/9