O SOBRENATURAL E O DEMONÍACO NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA

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Transcrição:

O SOBRENATURAL E O DEMONÍACO NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA Mateus Fernando de Oliveira (Bolsista PIBIC-UENP Institucional/ GP Leitura e Ensino/ G-CLCA-UENP/CJ) Nerynei Meira Carneiro (Orientadora-CLCA-UENP/CJ) Resumo: Este estudo trata-se de uma análise do fantástico contemporâneo presente na obra O Pacto do escritor norte americano Joe Hill. O intuito desta análise é buscar no texto insólito fundamentos e ligações a questões do Sobrenatural e do Demoníaco na literatura contemporânea, comparando essas leituras com obras clássicas, de modo a analisa-las sob as perspectivas do insólito, verificando até que ponto é estipulado um campo limítrofe da narrativa fantástica; como são incluídas as obras que possivelmente fazem parte do texto insólito na literatura. Um estudo que a partir dessa análise procura decodificar os símbolos presentes nessas leituras, baseando-se nas teorias de estudiosos como Tzevtan Todorov, Remo Ceserani, H. P. Lovecraft, Italo Calvino e David Roas. Na obra O Pacto, do escritor norte americano de literatura contemporânea Joe Hill, nos deparamos com a inusitada figura do diabo. O presente artigo vislumbra uma análise voltada ao personagem principal da trama: Ignatius Perrish, que num determinado momento da história, se vê transformado no diabo. Esse personagem consiste em objeto de estudo deste trabalho, que verifica, por meio dele e de outros fatos da narrativa, a caracterização do fantástico na obra. O intuito dessa análise é verificar, ainda nesta obra, a relação do fantástico contemporâneo com o fantástico puro defendido por Tvzetan Todorov, não com a intenção de contrapor teorias, mas justamente, a fim de vislumbrar o campo limítrofe do texto insólito, para que essas teorias possam ser delimitadas e, pertinentemente, estabelecer comparações entre obras contemporâneas e obras clássicas da literatura universal, mas essa comparação num outro momento da pesquisa, apontando, quais obras poderiam ser devidamente comparadas. Trata-se de um estudo bibliográfico baseado nas teorias e estudos do texto fantástico e do texto insólito, em geral, além de uma breve análise do personagem principal da obra, de modo a vislumbrar, não um estudo de caracterização de personagem, mas a presença do insólito na personagem analisada. Isto porque, basicamente, todo fantástico da obra se faz presente junto ao protagonista da trama. Dentre as principais teorias e estudos presentes neste trabalho, estão Tvzetan Todorov, Italo Calvino, Remo Ceserani, David Roas, além de outros. 431

O Pacto Lançado no ano de 2010 no Brasil, o livro O Pacto, do escritor Joe Hill, segundo a crítica é bom como o diabo! (USA TODAY, contracapa O Pacto, in HILL, 2010), assim nos é apresentado pelo jornal norte americano USA TODAY, que ainda acrescenta: Joe Hill é um escritor excepcional, com uma incrível imaginação. Ele tem o talento especial de conduzir os personagens e os leitores a situações sobrenaturais (USA TODAY, contracapa O Pacto, in HILL, 2010). A apresentação do enredo da obra é necessária para que sejam destacados alguns pontos e detalhes a fim de serem mais bem compreendidos. A história gira em torno do personagem Ignatius Perrish, Ig. O jovem vive um romance desde a adolescência com a jovem Merry, que fora brutalmente violentada e assassinada. Sem um álibi que comprove sua inocência e sem nada que possa também condená-lo, Ig passa a ser o principal suspeito do crime. Após uma noite turbulenta, acordou na manhã seguinte com dor de cabeça, levou as mãos às têmporas e sentiu algo estranho, um par de protuberâncias pontiagudas (HILL, 2010, p. 8). Seus chifres, não causavam estranhamento nas pessoas, pois, por conta dos chifres, ao se aproximarem dele, as pessoas passavam a confessar-lhe seus desejos mais perversos e inconfessáveis, ao tocá-las Ig passava a conhecer seus pecados mais ocultos. Com a ajuda desse seu novo poder, Ig descobre quem de fato matou sua namorada, o quanto ele era odiado pelas pessoas à sua volta e pior ainda, que seu irmão sempre soube o nome do cruel assassino, o que justifica os dizeres do autor na capa do livro: Quando as pessoas que você ama lhe viram as costas e sua vida se torna um inferno, ser o diabo não é tão mau assim (HILL, 2010). A literatura contemporânea e o pacto com o fantástico De um modo geral, na literatura universal, encontramos a presença do fantástico muitas vezes como um incidente, em O Pacto o fantástico se apresenta de uma forma mais estruturada, em que a presença do sobrenatural se faz mais explícita e mais forte por conta não só da presença dos fatos sobrenaturais, mas também pela presença do demoníaco, o que torna ainda mais forte e mais densa essa ponte entre o real e o sobrenatural. A narrativa apresenta ao leitor a verossimilhança ao expor o sobrenatural como algo verídico, e faz do insólito um fator real. Entende-se, então, o diabo na obra como uma representação do insólito infiltrada na realidade, envolvendo a obra toda numa atmosfera fantástica, configurando, assim, um dos elementos básicos do texto fantástico: a narrativa se situa dentro da realidade 432

do leitor, numa estrutura real, mas imaginária: A atmosfera é o mais importante, pois o critério definitivo de autenticidade [do fantástico] não é a estrutura da intriga a não ser a criação de uma impressão específica. (TODOROV, 1975, p. 20). A caracterização do fantástico nesta obra não cabe somente à atmosfera que envolve a leitura, mas também ao desenho dos personagens, personagens estes que apresentam variações psicológicas consideráveis, que possam talvez indicar leituras alternativas dentro do próprio texto. Antes de verificarmos densidades e variações psicológicas de personagens na obra, é necessário que analisemos fatores consideráveis que envolvem a obra como um todo, e que trabalham a caracterização desta dentre os textos do insólito. Em se tratando de uma análise de caráter insólito, verificando a presença do fantástico na obra, o primeiro elemento a ser averiguado na obra deve ser a verossimilhança, pois se este elemento estiver presente, se fantástico, os outros elementos virão, consequentemente, ao texto. De fato, é evidente a presença da verossimilhança na obra, O Pacto nos põe de frente à nossa própria realidade, à própria realidade do leitor, quando apresenta seus fatos improváveis de forma verossímil, não prendendo a narrativa somente ao texto em si, e sendo fantástico, nem poderia ser diferente. Neste sentido, o crítico Remo Ceserani afirma: A literatura fantástica não pode ser reduzida a uma simples operação retórica e linguística, mas trata-se (...) de algo que afunda suas raízes nas mais profundas camadas de significado e toca a vida dos instintos, das paixões humanas, dos sonhos, das aspirações (CESERANI, 2006, p. 100). Têm-se a realidade como fator fundamental no texto e o suspense como elemento relevante. Deparamos-nos com as sensações do leitor do fantástico: medo e hesitação. Definitivamente muitas sensações são provadas na leitura deste livro, porém, medo não faz parte dessa leitura e, sim, a hesitação, a inquietação. O medo deixa de ser parte da narrativa por se tratar de uma trama tão envolvente por outros aspectos que se destacam muito. Em meio a tantos conflitos, ainda há os conflitos psicológicos da personagem que torna a narrativa um instrumento de inquietação ao leitor. Inquietação ou hesitação, o fato é que desde o início da trama o leitor prova sensações únicas, seja no início do conflito ou no desenvolvimento da história, existem alguns momentos específicos que chamam ainda mais a atenção e afloram a inquietação do leitor. Momentos como quando Ig descobre o poder que seus chifres possuem, tanto quando toca alguém e descobre os segredos mais horríveis que algumas pessoas guardam. Ainda, o poder de induzir por meio deles as pessoas a serem espontâneas como jamais seriam ao ponto de tomarem atitudes que fogem a qualquer norma de civilidade, como, 433

por exemplo, fazendo-as dizer exatamente tudo aquilo que pensam de verdade e que jamais diriam. Isto, da forma mais crua possível, levando todos a se renderem a tal atitude, desde idosos até crianças. Este procedimento pode ser comprovado em uma conversa entre Ig e uma criança no hospital: Quando encostou nela soube que seu nome era Marcia Letterworth e que mais cedo ela tinha virado o café da manhã de propósito no colo da mãe, que a estava obrigando a ir ao médico para queimar suas verrugas. Ela não queria ir porque isso iria doer, mas a mãe era má e estúpida. Marcia virou seu rosto em direção ao dele. Seus olhos, cheios de lágrimas, eram de um azul intenso como o de um maçarico. Odeio a mamãe disse ela para Ig. Quero botar fogo na cama dela com fósforos. Quero queimar ela toda. (HILL, 2010, p. 19). Outro exemplo ocorre quando o padre mostra sua verdadeira face ao ser induzido pelo poder dos chifres, revelando-se quem realmente é e dizendo realmente o que pensa. Aqui há, possivelmente, uma crítica indireta não necessariamente a padres ou a igreja, mas, de alguma forma, criticam-se pessoas que escondem suas verdadeiras faces em seus trajes e em suas crenças. O senhor... o senhor fez voto de castidade disse Ig. Castidade é o caralho! Imagino que Deus já fique satisfeito por eu me controlar diante dos coroinhas. Acho que essa senhora precisa do conforto de alguém e com certeza não vai ser com aquele quatro-olhos desgraçado do marido dela. Pelo menos não o tipo certo de conforto. (HILL, 2010, p. 35). Retomando, portanto, a questão das sensações provadas na leitura, se Tzvetan Todorov prioriza tanto a presença da inquietação e da hesitação no texto fantástico, poderíamos aqui classificar o livro O Pacto, sem dúvidas, como uma obra de caráter fantástico. Os sentimentos e sensações experimentadas na leitura dessa obra são as mesmas encontradas na leitura de obras fantásticas da literatura universal clássica. Por tal razão, devemos julgar o conto fantástico nem tanto pelas intenções do autor e os mecanismos da intriga, a não ser em função da intensidade emocional que provoca. Um conto é fantástico, simplesmente se o leitor experimenta em forma profunda um sentimento de temor e terror, a presença de mundos e potências insólitas (TODOROV, 1981, 20). Contudo, ainda há um fator a ser analisado. Quando Todorov trabalha a delimitação do fantástico na literatura, ele destaca a questão da explicação dos fatos narrados na obra. Um fator que se torna ainda mais relevante nesta pesquisa, em que o objetivo de estudo em 434

questão é o sobrenatural e suas vertentes. Segundo Todorov, o fantástico não pode sugerir explicação dos fatos narrados, pois se trata basicamente do elemento primordial de uma narrativa em que o fator sobrenatural atua como um elemento de construção da trama. Nele, tem-se, como destaque relevante, a presença do impossível, ou melhor, do improvável. Já que diante de uma narrativa em que predomina a verossimilhança o impossível é muito comum de acontecer. Desta forma, entende-se que dentro da narrativa do texto fantástico não pode haver explicação dos fatos. A compreensão da leitura é algo que deve ser determinada somente pelo leitor, principalmente tratando-se da leitura de um conto ou romance em que o fator predominante é o insólito. Se o narrador, ou até mesmo o escritor, sugere explicação dos fatos, de certa forma, ele fere a leitura. Isto porque, compreendida a leitura, segundo as concepções de Bakhtin, ou seja, como um ato dialógico e interlocutivo, entende-se que a intervenção direta poderia prejudicar esse processo interativo, ainda mais em se tratando de um texto insólito. É uma leitura, sem dúvida, mais difícil, na qual o leitor necessita encontrar o sentido mais profundo que há no texto, necessitando haver uma análise reflexiva para entender a simbologia por trás do fantástico. A explicação desses fatos poderia prejudicar essa compreensão do leitor. Entretanto, a obra analisada não sugere explicação dos fatos, pelo contrário, no desfecho, por exemplo, proporciona ao leitor uma análise profunda dos fatos apresentados. Diante da trama, como um todo, o desfecho se faz polissêmico e sugere, de fato, que a interpretação mais coerente e coesa da história fique a critério do leitor. Ig entrou em sua casa nova, sua torre de fogo, que guardava seu trono de chamas. Ele estava certo. Havia uma festa em andamento um casamento, seu casamento e sua noiva estava lá esperando por ele, com seus cabelos incandescentes, nua, com apenas um xale de fogo. Ele a tomou nos braços e sua boca achou a dele. E, juntos, pegaram fogo. (HILL, 2010, p. 310). Como se pode perceber, o final do protagonista ocorre por meio de um desfecho direto, sem uma explicação explícita e objetiva do que se sucedeu. Provavelmente, ao não explicitar o desfecho, o autor sugere uma explicação do leitor diante dos fatos, já que o texto em si sugere uma interpretação subjetiva. A literatura fantástica, por si só, sugere sempre uma leitura subjetiva por parte do leitor. O conto fantástico é uma das produções mais características da narrativa do século XIX e também uma das mais significativas para nós, já que nos diz muitas coisas sobre a interioridade do indivíduo e sobre a simbologia coletiva. (CALVINO, 2004, p. 09). 435

De certa forma, é difícil uma narrativa fantástica tratar dos personagens, pois, geralmente, o foco no insólito reside na atmosfera e na configuração dos fatos, nos termos de Todorov: Se sente mais cômodo no incidente e nos efeitos narrativos mais amplos que no desenho dos personagens (apud TODOROV, 1981, p. 85). Em O Pacto, o personagem Ig Perrish é o fantástico personificado, pois tudo, definitivamente tudo, pode acontecer com ele. Além disso, mesmo ele sendo um personagem absolutamente fictício, vive em um mundo configurado como pertencente à realidade do leitor contemporâneo, com características verossímeis acerca dele. Portanto, a verossimilhança, a atmosfera peculiar do fantástico, a presença da inquietação e da hesitação na leitura, além da análise reflexiva do leitor são desencadeadas a partir da definição do protagonista. O Pacto nos põe frente a nossa própria realidade, ao mesmo tempo em que apresenta fatos improváveis de forma verossímil, compatíveis com a realidade atual do leitor. Entende-se que o conflito vivido por Ig na trama se situa dentro do campo limítrofe do fantástico, possivelmente, revelando uma obra fantástica sob as perspectivas de Tzvetan Todorov, presente na literatura contemporânea. Essa obra literária contemporânea merece destaque, primeiro, pelo fator fantástico que se faz presente na obra de forma extraordinária e, segundo, por se tratar de uma obra que, embora tenha se tornado um best seller em alguns países, ainda conserva fielmente os traços da literatura tradicional, ou seja, promover a interação do leitor com o texto. Uma obra que serve como reflexo claro da literatura contemporânea, apontando questões subjetivas da sociedade atual por meios dos símbolos da literatura do fantástico. O demoníaco e os símbolos do insólito Tratar de toda a questão sobrenatural e não destacar a presença do demoníaco na obra seria até incoerente. As formas de apresentação do fantástico na obra são diversas, mas a que mais prevalece diante de tantas variações é o demoníaco, a presença do diabo, ou pelo menos uma alusão direta a ele. O que deve ficar explícito neste artigo é que este estudo não caracteriza Joe Hill como um escritor, exclusivamente, fantástico, nem mesmo o conjunto de suas obras como tal. Trata-se apenas de um estudo que revela o fantástico indo ao encontro da obra e não de uma obra que foi escrita propositalmente sob as perspectivas do fantástico, pois a questão aqui é a configuração da obra e não a intenção do autor. Justamente por isso, o livro O Pacto se faz objeto de análise desta pesquisa, pois nele se encontra a hesitação do 436

fantástico e, portanto, o modo estético dessa modalidade narrativa. Neste sentido, Remo afirma que: O fantástico operou, como todo o verdadeiro e grande modo literário, uma forte reconversão do imaginário, ensinou aos escritores caminhos novos para capturar significados e explorar experiências, forneceu novas estratégias representativas. Justamente porque se trata de um modo, e não simplesmente de um gênero literário, ele se caracteriza por um leque bastante amplo de procedimentos utilizados e por um bom número de temas tratados em outros modos e gêneros da literatura. (CESERANI, 2006, p. 103). Entendendo, portanto o fantástico como um modo literário, podemos analisar melhor os elementos que o envolvem e que através dele se aplicam na leitura. Compreende-se, dessa forma, a presença do demônio e do sobrenatural como um todo na literatura, por ser mais um elemento fantástico que ocorre desde meados do século XVIII. Após as novelas góticas, o fantástico foi considerado uma manifestação literária e, desde então, elementos sobrenaturais e demoníacos passaram a serem instrumentos e ferramentas do insólito, o que hoje, basicamente, são partes de uma ponte entre a literatura e o pensamento analítico do leitor. Compreende-se o fantástico como um fator determinante de sentidos implícitos. Esse fator possivelmente mostra um conflito interno codificado nas obras. A interpretação desse elemento sugere uma profunda análise reflexiva da obra e pode ainda revelar muito do caráter inconsciente do autor e, até mesmo, do leitor: a literatura fantástica finge contar uma história para poder contar outra. (CESERANI, 2006, 102). Por se tratar de uma leitura significativa e abrangente, o insólito nos induz, enquanto leitores, a uma postura analítica. A decodificação dos significados por trás ou por dentro da narrativa é uma interpretação que cabe somente ao leitor. O fantástico é o modo literário que promove essa leitura, mas que não restringe as interpretações e o encontro de sentidos do leitor. A ficção fantástica constrói assim outro mundo com palavras, pensamentos e realidades que pertencem a este mundo. Este novo universo elaborado na trama da narrativa é lido entre linhas e termos, num jogo de imagens e crenças, da lógica e dos afetos, contraditórios e concomitantemente recebidos. Nem demonstrado, nem provado, mas somente designado, ele tira de sua própria improbabilidade algum indício de possibilidade imaginária, mas longe de perseguir alguma verdade ainda que fosse a da alma escondida e secreta ele retira sua consistência de sua própria falsidade. (BESSIÈRE, 1974, p. 11-12). A literatura, em alguns aspectos, é compreendida como um reflexo da sociedade vigente, neste momento, nos mostra, por meio da literatura contemporânea, os conflitos 437

intensos que vive o mundo atual, desde conflitos existenciais aos conflitos sociais. No livro O Pacto, essa realidade do leitor encontra-se subjacente, demonstrando isso de forma implícita por meio do fantástico. Encontramos personagens que vivem conflitos existenciais gritantes na sociedade. Tais conflitos só podem ser vistos, transpostos e interpretados por meio dos símbolos, presentes na obra como questões subjetivas e que cabem ao leitor identificá-los e relacioná-los ou não com sua realidade. É surpreendente a forma como a trama atinge o leitor. Ocorre um encontro do leitor com a obra, num livro cativante, que o surpreende do início ao fim. Por isso, afirma Ítalo Calvino: Uma história que parecia ser de danação se transforma em história de arrependimento e de salvação (CALVINO, 2004, p. 333). Compreende-se o demoníaco na obra como um elemento que poderia funcionar como um instrumento de terror e de tensão na obra, mas que por conta do desenvolvimento da narrativa, tornou-se um fator estrutural do modo fantástico, servindo como forma de personificação de vicissitudes sociais. Usa-se, portanto, de uma figura maligna para na verdade apresentar uma consideração importante: o mal que existe nas pessoas é bem pior do que o mal que imaginamos que o diabo possa ter. Referências BESSIÈRE, Irène. Le récit fantastique: la poétique de l incertaine. Paris: Larousse, 1974. CALVINO, Italo. Contos fantásticos do século XIX escolhidos por Italo Calvino: o fantástico visionário e o fantástico cotidiano. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. CESERANI, Remo. O fantástico. Trad. Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: Ed. UFPR, 2006. HILL, JOE. O Pacto. Trad. Barbara Hliodora, Helen P. Potter. Rio de Janeiro: Sextante, 2010. ROAS, David. Teorías de lo fantástico. Madrid: Arco/Libros, 2011. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castelo. São Paulo: Perspectiva, 1981. Para citar este artigo: OLIVEIRA, Mateus Fernando de. O sobrenatural e o demoníaco na literatura contemporânea. In: XII CONGRESSO DE EDUCAÇÃO DO NORTE PIONEIRO Jacarezinho. 2012. Anais...UENP Universidade Estadual do Norte do Paraná Centro de Ciências Humanas e da Educação e Centro de Letras Comunicação e Artes. Jacarezinho, 2012. ISSN 18083579. p. 431 438. 438