A PROPÓSITO DA ANÁLISE AUTOMÁTICA DO DISCURSO: ATUALIZAÇÃO E PERSPECTIVAS (1975)

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Transcrição:

1 A PROPÓSITO DA ANÁLISE AUTOMÁTICA DO DISCURSO: ATUALIZAÇÃO E PERSPECTIVAS (1975) Marilei Resmini GRANTHAM Fundação Universidade Federal do Rio Grande Nesta brevíssima exposição, procuramos abordar alguns pontos explorados por Pêcheux e Fuchs, no texto A propósito da Análise Automática do Discurso: atualização e perspectivas (1975), estabelecendo também algumas relações com outros textos. No texto em questão, Pêcheux faz uma auto-crítica ao texto Análise Automática do Discurso (AAD-69). O texto, no entanto, não se constitui em um recuo na teoria, mas, segundo o próprio Pêcheux, em uma tentativa de eliminar certos erros, certas ambigüidades que a análise automática do discurso (AAD) produziu, tanto no nível teórico quanto no das aplicações experimentais. Pêcheux sente a necessidade de indicar as bases para uma nova formulação da questão, à luz da reflexão sobre a relação entre Lingüística e teoria do discurso. Daí a presença de um lingüista Fuchs no estudo. A AAD de 69 havia instaurado uma série de deslocamentos em relação ao discurso objeto de estudo, unidade de análise, sujeito, sentido, enunciação gerando a necessidade de um quadro epistemológico capaz de dar sustentação teórica e metodológica a tais mudanças. É isso que leva Pêcheux a reformular e discutir, por exemplo, a questão da leitura e do efeito-leitor como constitutivo da subjetividade, bem como a reformar aspectos ultrapassados da teoria. O que Pêcheux quer então, com este texto, é preparar as condições para uma mudança radical, com vistas a superar o atraso no tratamento dos textos e a reduzir a distância entre a análise do discurso e a teoria do discurso. É importante lembrar que, antes da Análise do Discurso, existiram outros estudos que tinham como interesse a língua funcionando para a produção de sentido. Assim, temos, por exemplo, os estudos de Michel Bréal, que, em 1897, publica seu Ensaio de Semântica. Citamos também Bakhtin (1992), autor que, afirmando que a comunicação só

2 existe na reciprocidade do diálogo, constrói a teoria do dialogismo e traz para o interior dos estudos lingüísticos a questão da intersubjetividade. Todos esses trabalhos distanciam-se dos estudos tradicionais de linguagem e da análise de conteúdo, segundo a qual o que importa é responder à questão o que este texto quer dizer?. A Análise do Discurso, no entanto, ultrapassa ainda mais essas concepções e passa a trabalhar o texto a fim de descobrir como ele significa. É isto que leva Pêcheux a apresentar o quadro epistemológico da Análise do discurso. Deste modo, quando surge, nos anos 60, a AD se constitui no espaço das questões criadas pela relação entre três domínios disciplinares: o Marxismo, a Lingüística e a Psicanálise. A Análise do Discurso pressupõe então o legado do Materialismo Histórico, como nos lembra Orlandi:...há um real da história de tal forma que o homem faz história mas esta também não lhe é transparente. Daí, conjugando a língua com a história na produção de sentidos, esses estudos do discurso trabalham o que vai-se chamar a forma material ( não abstrata como a da Lingüística) que é a forma encarnada na história para produzir sentidos: esta forma é portanto lingüístico-histórica. (ORLANDI, 1999, p.19). A Lingüística que tem como objeto próprio a língua, com uma ordem própria é também importante para a AD, que procura mostrar que a relação entre linguagem, pensamento e mundo não é direta, nem se faz termo-a-termo. Por outro lado, a contribuição da Psicanálise para a AD é o deslocamento da noção de indivíduo para a de sujeito, sujeito que se constitui na relação com o simbólico, com a história. Citamos novamente Orlandi: Se a Análise do Discurso é herdeira de três regiões do conhecimento Psicanálise, Lingüística, Marxismo não o é de modo servil e trabalha uma noção a de discurso que não se reduz ao objeto da Lingüística, nem se deixa absorver pela Teoria Marxista e tampouco corresponde ao que teoriza a Psicanálise. Interroga a Lingüística pela historicidade que ela deixa de lado, questiona o Materialismo perguntando pelo simbólico e se demarca da Psicanálise pelo modo como, considerando a historicidade, trabalha a ideologia como

3 materialmente relacionada ao inconsciente sem ser absorvida por ele (ORLANDI, 1999, p.20). A Análise do Discurso, assim, trabalha a confluência desses campos de conhecimento e constitui um novo objeto: o discurso. Ao eleger o discurso como seu objeto, a AD procura compreender a língua fazendo sentido, como trabalho simbólico, e parte do trabalho social geral, que é constitutivo do homem e da sua história. Lembramos Pêcheux (1969, p.82), quando o autor afirma que discurso não é sinônimo de transmissão de informação, mas pressupõe funcionamento da linguagem e põe em relação sujeitos afetados pela língua e pela história, em um complexo processo de constituição desses sujeitos e de produção dos sentidos. Neste texto de 75, Pêcheux e Fuchs, examinando a relação entre discurso e língua, voltam a trabalhar a noção de funcionamento e afirmam: Estando os processos discursivos na fonte da produção dos efeitos de sentido, a língua constitui o lugar material onde se realizam estes efeitos de sentido (PÊCHEUX e FUCHS, 1975, p.172). É através de tal concepção que Pêcheux vai reconhecer que a AAD passa pela questão do papel da Semântica na análise lingüística. O discurso, nesta perspectiva, põe em relação sujeitos afetados pela língua e pela história, em um complexo processo de constituição de sentidos. Orlandi reconhece essa relação, em que o discursivo pressupõe o lingüístico, e ressalta que a AD trata dos processos de constituição do fenômeno lingüístico, enquanto a Lingüística visa o produto dessa constituição (ORLANDI, 1986, p.114). Em um discurso, deste modo, não só se representam os interlocutores, mas também a relação que eles mantêm com a formação ideológica. E isto está marcado no e pelo funcionamento discursivo. Assim, do ponto de vista da análise do discurso, o que importa é destacar o modo de funcionamento da linguagem, sem esquecer que esse funcionamento não é integralmente lingüístico, já que dele fazem parte as condições de produção, que representam o mecanismo de situar os protagonistas e o objeto do discurso. Daí ser possível afirmar, juntamente com Pêcheux (1969), que o discurso é, antes de tudo, efeito de sentido entre os interlocutores, os quais representam lugares determinados na estrutura da formação social.

4 Todas essas noções nos permitem considerar, sob a perspectiva da Análise do Discurso, um sujeito diferente, não-empírico e não-coincidente consigo mesmo, mas um sujeito materialmente dividido desde sua constituição. Um sujeito que é sujeito à língua e à história, pois é afetado por elas e que produz sentidos sob tais condições. Temos então um sujeito que é uma posição, um lugar. O modo como o sujeito ocupa esse lugar não lhe é acessível, da mesma forma que a língua não é transparente nem o mundo diretamente apreensível. Na verdade, tudo é constituído pela ideologia, que, podemos dizer então, é a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. Quer dizer: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer. A noção de interpelação do sujeito é formulada inicialmente por Althusser, para quem só há ideologia pelo sujeito e para o sujeito (ALTHUSSER, 1992, p.93).. Para Althusser, o indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para livremente submeter-se às ordens do sujeito, para aceitar, portanto (livremente), sua submissão (ALTHUSSER, 1992, p.104). É essa concepção que leva Pêcheux a afirmar que a AD constitui o esboço de uma análise não-subjetiva dos efeitos de sentido que atravessa a ilusão do efeito-sujeito, e a dizer que o que faltava, no texto de 69, era uma teoria não-subjetiva da constituição do sujeito em sua situação concreta de enunciador. Em Pêcheux (1988), vemos que o autor, buscando esclarecer os fundamentos de uma teoria materialista do discurso, vai dizer que a função principal da ideologia é a de produzir uma idéia de evidência subjetiva, entendendo-se subjetiva como evidências nas quais se constitui o sujeito. Ou seja: a ideologia dissimula sua existência no interior de seu próprio funcionamento. Considerar a interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia conduz Pêcheux à noção de ilusão do sujeito. Assim, o sujeito tem a ilusão não só de estar na fonte do sentido (ilusão-esquecimento nº 1), como também de ser dono de sua enunciação, capaz de dominar as estratégias discursivas para dizer o que quer (ilusão-esquecimento nº 2). Ilusão porque, na verdade, os sentidos que produzimos não nascem em nós, nós apenas os retomamos do interdiscurso. Desta forma, a evidência do sentido é, na verdade, um efeito ideológico que não nos deixa perceber a historicidade de sua construção. Ela nos faz perceber como transparente

5 aquilo que, de fato, consiste em uma remissão a um conjunto de formações discursivas. Quer dizer: as palavras recebem seus sentidos de formações discursivas postas em relações. Como sabemos, isto é o que constitui o efeito do interdiscurso (da memória ). Por outro lado, a evidência do sujeito apaga o fato de que ela resulta de uma identificação, em que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia. Considerada desse modo, a ideologia não é ocultação, mas função necessária entre linguagem e mundo. Indursky, abordando essa questão, lembra que é assim que o sujeito se constitui em sujeito do discurso: é interpelado, mas acredita-se livre; é dotado de inconsciente, mas percebe-se plenamente consciente (INDURSKY,1997, p. 24). E é assim, condicionado aos dois esquecimentos, que o sujeito produz seu discurso. É a partir da noção de esquecimento que surge a distinção, proposta por Pêcheux e Fuchs, entre base lingüística (esquecimento nº 1) e processo discursivo (esquecimento nº 2). O que caracteriza o processo discursivo é o fato de ser a FD quem determina o que pode e deve ser dito, o que, por sua vez, quer dizer que o sentido de uma seqüência só é materialmente concebível na medida em que se concebe esta seqüência como pertencente necessariamente a esta ou àquela formação discursiva (PÊCHEUX & FUCHS,1975, p.169). Em Semântica e Discurso (1988), Pêcheux retoma a discussão sobre base lingüística, processo discursivo e FD, relacionando-as com a questão do sentido e do sujeito do discurso. Para Pêcheux, o sentido de uma palavra, expressão ou proposição não existe em si mesmo, mas é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas. Assim, as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam (PÊCHEUX, 1988, p. 160). Isso significa que elas adquirem seu sentido com referência a essas posições, isto é, com referência às formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem. Desse modo, se uma mesma palavra ou expressão pode receber sentidos diferentes, conforme se refira a esta ou àquela FD, é porque não tem um sentido que lhe seja próprio, ou seja, um sentido literal. Ao contrário, o sentido se constitui em cada FD,

6 nas relações que tais palavras ou expressões mantêm com outras palavras e expressões da mesma FD. A partir daí, a expressão processo discursivo passa a designar o sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias, etc., que funcionam entre elementos lingüísticos em uma dada FD. As afirmações de Pêcheux nos permitem pensar em uma concepção de leitura que descarta a possibilidade da decodificação do sentido, de sentidos construídos de antemão, de sentido único para um texto. A partir de pressupostos teóricos como os de Pêcheux é que Orlandi vai dizer que a leitura é o momento crítico da constituição do texto, pois é o momento privilegiado do processo da interação verbal: aquele em que os interlocutores, ao se identificarem como interlocutores, desencadeiam o processo da significação (ORLANDI, 1987, p.193). Em outras palavras, isso significa que, para Orlandi, a leitura é produzida. Nesta perspectiva, a legibilidade de um texto está, e ao mesmo tempo não está, no texto. Ela tem pouco de objetiva e não é uma conseqüência direta da escrita. Isto relativiza a idéia de qualidade do próprio texto e desloca o problema para a relação que se estabelece entre o texto e quem o lê. E é isso que exclui a possibilidade de considerar a leitura como decodificação, como apreensão de uma informação ou de um sentido que já está dado. Todas essas reflexões, que tiveram como ponto de partida o texto de Pêcheux e Fuchs, nos permitem dizer que a Análise do Discurso pretende-se uma teoria crítica que trata da determinação histórica dos processos de significação. Trabalha não com os produtos, mas com os processos e as condições de produção da linguagem, ou seja, leva em conta a exterioridade, e, ao considerar que a exterioridade é constitutiva, parte da historicidade inscrita no texto, para atingir o modo de sua relação com a exterioridade, atestada no próprio texto, em sua materialidade. A AD, então, pode ser vista como um dispositivo que coloca em relação o campo da língua, suscetível de ser estudado pela lingüística, e o campo da sociedade apreendida pela história, em termos de relações de força e de dominação.

7 BIBLIOGRAFIA: ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. 6ª. Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1992. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 6ª ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1992. INDURSKY, Freda. A fala dos quartéis e as outras vozes: uma análise do discurso presidencial da terceira república brasileira. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Campinas: Pontes, 1988. ORLANDI, Eni. A Análise do Discurso: algumas observações. In: D.E.L.T.A., vol.2, n 1, 1986, p.105-126. PÊCHEUX, Michel (1969). Análise Automática do Discurso (AAD-69). In: GADET & HAK (org). Por uma análise automática do discurso. Campinas: Ed. Unicamp, 1990, p.61-162. PÊCHEUX & FUCHS (1975). A propósito da Análise Automática do Discurso. In : GADET & HAK (org). Por uma análise automática do discurso. Campinas: Ed. Unicamp, 1990, p.163-252.. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed. Unicamp, 1988.