ANGELA CORRÊA FERREIRA BAALBAKI BEATRIZ FERNANDES CALDAS
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- Stefany Carvalho Prada
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1 LIBERDADE E CENSURA NOS MEANDROS DA PROPAGANDA: UMA ANÁLISE DISCURSIVA ANGELA CORRÊA FERREIRA BAALBAKI BEATRIZ FERNANDES CALDAS RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar, à luz da teoria pecheutiana da AD, uma peça publicitária veiculada nos jornais de grande circulação ( O Globo / Globo On-line ), em campanha contra a censura. Nosso corpus empírico é composto por uma peça publicitária da Associação Brasileira de Propaganda. Como recorte condutor, observamos o enunciado Toda censura é burra, graficamente marcado por uma faixa de censura por cima da palavra censura, numa composição de imagens que sugere: censuremos a censura. Nossa questão centra-se, então, sobre a construção de sentidos de dois blocos antagônicos, a saber liberdade/democracia e censura/ditadura. Na procura dos efeitos de sentido, encontramos toda uma gama de novos sentidos que permeia esta peça publicitária, re-significados por novas formações discursivas que apagam e interditam velhos sentidos. Como a materialidade lingüística é marcada pelo histórico e ideológico, procuramos investigar de que forma a peça publicitária traz sentidos associados à censura, e metaforicamente os desloca para novas redes de significação.
2 O suporte deste trabalho é a visão teórica de Pêcheux a respeito do discurso. É um conhecimento desenvolvido no entremeio de outros saberes: ideologia, história e lingüística, atravessados pela psicanálise. O seu objeto de estudo é o discurso, e entre os elementos essências de sua construção teórica ressalta a figura do sujeito do discurso em suas condições de produção. Ao elaborar a concepção de sujeito em sua Análise do Discurso (AD), Pêcheux reterritorializa algumas das idéias de Althusser ligadas ao Aparelho de Reprodução do Estado e Aparelho de Repressão do Estado. O sujeito é assim assujeitado pela ideologia. A questão própria postulada pela AD é que o sujeito não é exterior à ideologia, mas sim por ela constituído. Relacionada a essa questão está a visão materialista que caracteriza todo o pensamento de Pêcheux. O sujeito da AD é, portanto, diferente do sujeito ideal do positivismo. Não é uno, não é centrado, não é completo. Em sua relação com o discurso, o sujeito vive uma ilusão quando se vê como a origem do que diz e outra ilusão a respeito da forma como o constrói o seu discurso. A noção de sujeito incorporada pela AD permitiu ver na fragmentação do sujeito a possibilidade de explicar também o discurso como dispersão. Pêcheux também reterritorializa o conceito de inconsciente da teoria psicanalítica de Freud, relido por Lacan. O que se diz estrutura-se numa cadeia sintagmática que flui por cima da tópica do inconsciente. Este inconsciente manifesta-se no discurso atra- 2
3 vés dos atos falhos, chistes, esquecimentos, hesitações, enganos etc. Para Orlandi, a análise do discurso se constitui como: (...)uma forma de conhecimento de entremeio que, justamente, põe em questão as maneiras de ler, propõe a crítica às evidências, expõe o olhar do leitor à opacidade do texto e que assim produz um modo de relação com a interpretação que, como diz Pêcheux, é uma questão e política. É uma questão de responsabilidade (ORLANDI, 2002a, p. 63). Na perspectiva discursiva, a língua é base material do discurso. A língua é condição de possibilidade do discurso o corpus discursivo está em língua natural (PÊCHEUX, 1997). A relação existente entre processos discursivos e a língua, do ponto de vista da teoria do discurso, repousa na materialidade da língua. Em outros termos, a língua constitui o lugar material, a base 1 na qual se realizam os processos discursivos, fonte de produção de efeitos de sentido. As estruturas lingüísticas superficiais são a entrada para se chegar ao nível da enunciação. O instrumento de que se vale o analista do discurso para sua incursão no material estudado é o recorte que estabelece como guias de sua investigação. O recorte é o resultado da relação entre a pergunta básica do analista e o material da análise. Os recortes indicam características dos processos de significação 1 Orlandi faz uma distinção entre forma abstrata, forma empírica e forma material. Segundo a autora, a AD tem como base para constituição dos processos discursivos a forma material. 3
4 (ORLANDI, 2002, p.11) e, podem suscitar outros recortes como objeto de observação dos processos de discursivos. O analista faz uso do dispositivo teórico, o repertório teórico de conceitos básicos da AD. O trabalho do analista do discurso é um contínuo entretecer entre o dispositivo teórico e o dispositivo analítico, criado por cada analista para sua análise. Orlandi (Ibidem) descreve três etapas do analista. Segundo a autora, na primeira dessas etapas o analista converte a superfície lingüística (o corpus bruto) em um objeto lingüisticamente desuperficializado. Na segunda etapa, observa-se o modo de construção, a estruturação, o modo de circulação e os diferentes gestos de leitura que constituem os sentidos do texto submetido à análise (Orlandi, ididem, p. 67), atingindo-se a formação discursiva como objeto de investigação. Na terceira etapa chega-se à relação entre as formações discursivas e a ideologia, à compreensão sobre a constituição dos sentidos do discurso. Dessa forma, através dessas etapas, o analista trabalha com seu dispositivo analítico que lhe permite fazer o recorte de seu objeto empírico e chegar a seu objeto discursivo, às formações discursivas e às formações ideológicas. Nossa pesquisa tem como corpus empírico uma peça publicitária da Associação Brasileira de Propaganda. O recorte proposto em nossa pesquisa constitui-se na investigação dos sentidos de liberdade. Ao tratar do acontecimento discursivo Maio de 68 no artigo Sobre ética e significação (2002a), Orlandi destaca a 4
5 palavra liberdade como um indício para se compreender tal momento político. Assim, à luz dos sentidos de liberdade no passado e no presente fomos penetrando a superfície do texto, e através de paráfrases e polissemias procuramos chegar aos enunciados que ancoram o discurso. Observamos, ao longo da materialidade lingüística, dois blocos antagônicos: liberdade / democracia e censura / ditadura. Esses dois blocos estão dispostos ao longo de uma linha no tempo. Vale lembrar que identificamos tais blocos por meio de determinadas marcas lingüísticas, a saber as locuções adverbiais/advérbios de tempo. Abaixo destacamos algumas seqüências discursivas. SD1: Os últimos 70 anos, em termos políticos, foram uma alternância de avanços e retrocesssos, onde nada menos que 20 anos acabaram sufocados por um regime obscurantista que tinha na censura um de seus principais pontos de atuação. SD2: Hoje, quando a informação quando a informação e o conhecimento trafegam numa velocidade de tirar o fôlego e se democratizam como nunca, há aiinda quem acredite na velha fórmula da censura,buscando impor restrições[...] As locuções adverbiais funcionam na peça publicitária como marcos: ao passado, relacionam-se os sentidos de censura e ditadura, e ao presente, os de liberdade e democracia. Portanto, impor restrições (principalmente à propaganda) remete ao passa- 5
6 do e ao sentido que a ele está colado. A censura exercida no passado, durante o regime militar, é velha e burra e quem a retoma também o é. Assim, criando uma metáfora de desenvolvimento ao longo do tempo, o autor do texto compara valores do passado aos valores atuais. Discursivamente, pode-se dizer que os sentidos atribuídos aos objetos classificados como passado são antagônicos aos sentidos atribuídos aos objetos do presente. A forma de construção dessa dicotomia passa pelo deslizamento de sentidos, ou seja, o sentido de liberdade nesta peça publicitária é outro (e também o mesmo) que o sentido de liberdade no discurso da década de 60. Em outros termos, o sentido de liberdade na década de 60 está vinculado à formação discursiva que abrange o cidadão, seus direitos e deveres. Já o sentido de liberdade nos dias atuais está vinculado à de formação discursiva que abrange o consumidor. As formações discursivas são diferentes (embora se tangenciem em vários pontos). Os pontos acima estão longe de se esgotarem na seqüência proposta, mas são suficientes para explicitar o que pretendemos apresentar: os sentidos de liberdade atribuídos ao bloco do passado estão longe de serem os mesmos dos sentidos de liberdade do bloco atual. Há um deslocamento de sentidos. Orlandi (ibidem) enfatiza que os processos históricos de significação estão em constante movimento. Isso implica dizer que tais processos podem ser re-significados, como também de-significados. Para a 6
7 autora, a de-significação produz uma espécie de esvaziamento da memória, um vácuo na história, significando pela censura e pela interdição (p. 47). A memória a que se refere Orlandi é a memória discursiva, uma espécie de sentido primeiro, já lá, a partir do qual todos os outros sentidos posteriores se constituem através de reformulações. É uma estratégia do discurso, então, invocar os sentidos de liberdade do passado. Esses sentidos antigos são evocados para que se colem a eles os novos sentidos. São silenciados o sentido de liberdade para que possam surgir o sentido de liberdade-consumidor. Que fio condutor há entre os sentidos de liberdade de forma a trazê-la do passado até o presente? Acreditamos ser a memória a que estão atrelados esses sentidos de liberdade do passado. Por um lado não se pode esquecer a história recente desse país os anos de chumbo, quando esses sentidos de liberdade eram todos contrapostos pela ditadura militar. Na tentativa de censurar a velha censura da ditadura militar, silenciam sentidos ali postos para que novos sentidos sejam produzidos. Nos dizeres de Orlandi (Ibidem, p. 50), é preciso calar (esquecer) para que apareça o novo. A estratégia do texto, então é a contraposição dos sentidos de ditadura (do passado) x liberdade (dos dias atuais). O que se semantizou como censura na década de 60? E na atualidade? Observamos que o que era censura no passado foi de-significando, significando em uma outra formação discursiva. 7
8 Por outro lado, há quem possa esquecer a história recente desse país e obscureça os antigos sentidos de liberdade para substituí-los pelos novos sentidos. O discurso é assim construído a partir de ideologias, momentos históricos diversos, as memórias que os circundam o atualizam, num permanente deslocamento de sentidos. O silêncio em torno de antigos sentidos de cidadão e democracia constituem um esvaziamento da memória, um vácuo na história, significando pela censura e pela interdição (Id., ibid., p. 47). O deslizamento de cidadão (sujeito da velha liberdade ) a consumidor (sujeito da nova liberdade ) é um processo de de-significação. A democracia nova não é o governo dos cidadãos, mas sim o governo dos consumidores, fundamentando-se paradoxalmente numa exclusão (dos que não podem consumir). Os movimentos de 68 levavam o povo a clamar por direitos de cidadão; a globalização do fim do século XX, início do século XXI levam o povo a clamar pelos direitos do consumidor. Muito interessante é perceber que de certa forma a nova censura a que o texto se remete constitui um direito remanescente do antigo sentido atribuível aos direitos do cidadão democraticamente constituído e legalmente representado pelos poderes legislativo, executivo e judiciário. O esquecimento e o silenciamento estão relacionados ao acontecimento que não chega a inscrever-se e ao acontecimento que é absorvido na memória como se não tivesse ocorrido (Pê- 8
9 cheux, 1988). A censura, objeto do enunciado da peça publicitária, cujo sentido também se oferece como recorte de investigação, é vista por Orlandi (Ibidem) como uma intervenção em que o acontecimento apresenta-se como se não tivesse ocorrido porque escapa à inscrição na memória (e não porque é absorvido) (Id., ibid., p. 50,). Também como recorte condutor, observamos o enunciado Toda censura é burra, graficamente marcado por uma faixa de censura por cima da palavra censura, numa composição de imagens que sugere: censuremos a censura. São muitas as possíveis interpretações da censura à censura. São paralelas, por um lado, ao título da canção e grito de Caetano Veloso num festival da canção no Rio de Janeiro, nos anos 60: É proibido proibir!, É proibido proibir!. Ao ser vaiado naquela ocasião, Caetano respondeu aos apupos com um discurso em que chamava o público de burro. De certa forma a composição gráfica da peça publicitária reverbera o sentido produzido por É proibido proibir, quando recobre com a palavra censura o enunciado TODA A CENSURA É BURRA. Nossa questão centra-se, então, sobre a superposição entre a censura que deve ser censurada e a censura que é burra. Através das relativas que deve ser censura / que é burra, então resta-nos supor que há uma censura que não é burra e não deve ser censurada. Que censura é essa que se põe acima da própria censura? 9
10 A resposta a essa pergunta associa o passado ao presente. Se no passado lutava-se por uma liberdade e não por liberdades, conforme comenta Orlandi (Ibidem), o mesmo se dá agora. Só há uma liberdade boa, capaz de nos levar ao futuro, uma liberdade que tem sempre razão, a liberdade única e verdadeira do capitalismo. A construção do texto é paradoxalmente um tourde-force contra um dos sentidos apregoados para liberdade : aquele que for contra a liberdade, aquele que a censurar é burro e velho. Desqualificado antes mesmo de abrir a boca, quem ousará discordar da proposta da peça publicitária? 10
11 Referências bibliográficas: ALTHUSSER, Louis. Posições I. Tradução de Rio de Janeiro: Graal, MALDIDIER, Denise. A inquietação do Discurso (Re)ler Michel Pêcheux Hoje. Tradução de Eni Orlandi.. Campinas, SP: Pontes, ORLANDI, ENI. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, Sobre Ética e Significação. In: Língua e conhecimento lingüístico: para uma história das idéias no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002a. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni Orlandi. Campinas, SP: UNI- CAMP, 1988 [1975].. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni Orlandi, L. C.; Jurado Filho e M. L. Gonçalves Corrêa. Campinas, SP: UNICAMP, Análise automática do discurso. In: GADET, F.; HAK, T. (Orgs.). Por uma análise automática do discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1997 [1969].. Ler o arquivo hoje. Tradução de Maria das Graças L. M. do Amaral. In: ORLANDI, Eni (Org.). Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas, SP: UNICAMP, 1997a [1982]. 11
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