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DO EVOLUCIONISMO CLÁSSICO AO PARTICULARISMO HISTÓRICO NA ANTROPOLOGIA: principais ideias Andressa Nunes Soilo 1 Resumo: O presente ensaio visa apresentar sucintamente principais ideias e relações entre o pensamento evolucionista cultural clássico do século XIX e a escola do particularismo histórico proposto por Franz Boas no início do século XX a partir dos livros Evolucionismo Cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer (2005) e Franz Boas Antropologia Cultural (2004) de Celso Castro. Tais perspectivas marcaram o início da antropologia enquanto ciência humana capaz de compreender o homem e sua cultura. Palavras-chave: Teorias Antropológicas; Evolucionismo Cultural; Cultura; Particularismo Histórico. Abstract: This article aims to present, briefly, the main ideas and relations between classic cultural evolutionary theory and historical particularism from Celso Castro s book Evolucionismo Cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer (2005) and Franz Boas Antropologia Cultural (2004). These perspectives marked the beginning of anthropology as a human science capable to understand man and his culture. Keywords: Anthropological Theories; Cultural Evolutionism; Culture; Historical Particularism. 1 Bacharel em Direito formada pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UNIRITTER), cientista social formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestranda em Antropologia Social por esta mesma universidade. E-mail: andressansoilo@hotmail.com.

252 1. Breve Introdução Este artigo possui como base dois livros organizados por Celso Castro 2 que apresentam importantes textos não somente para o campo da antropologia, mas também para outras disciplinas que refletem sobre a relacionalidade do homem com a cultura. Os livros que fundamentarão este artigo são: Evolucionismo Cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer (2005) e Franz Boas: Antropologia Cultural (2004), que objetivam possibilitar, especialmente ao aluno de graduação, o acesso a textos não antes traduzidos ou de difícil tradução para a língua portuguesa (CASTRO, 2005, p. 4). Os livros demonstram o percurso de ideias que permearam a antropologia clássica sobre sociedades humanas desde meados do século XIX até a década de 1930. O objetivo deste artigo é apresentar a trajetória do pensamento antropológico no delimitado período entre o evolucionismo cultural e o particularismo histórico, expondo suas principais características, como métodos e críticas, baseando-se nos textos de Celso Castro. 2. Evolucionismo A teoria do evolucionismo cultural esteve fortemente presente em meados do século XIX até o início do século XX, período em que as relações entre colonizadores e colonizados estruturou o pensamento antropológico da época. O conhecimento das sociabilidades de grupos colonizados, de suas crenças, práticas e estilos de vida tornou-se crucial para o êxito de explorações praticadas por colonizadores em terras estranhas a estes, ou 2 Celso Castro é cientista social formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Mestre e Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ. Atualmente é professor titular da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas. Dedica-se a estudar Antropologia e História do Brasil com enfoque especial ao estudo dos militares no Brasil.

253 seja, as relações de poder sobre o outro permearam a disciplina desde seu limiar 3. Um exemplo deste cenário se encontra na utilização prática de uma coletânea de linguagens e classificações sobre o parentesco dos índios norteamericanos realizada pelo diretor do Bureau of Ethnology, Major Powell, em meados do século XIX. Conforme Thomas Peterson (2001), muitos dirigentes governamentais do período consideravam o conhecimento das relações sociais destes povos como indispensáveis para a sua administração e exploração. Influenciada por Herbert Spencer, a teoria evolucionista clássica postulava sobre o desenvolvimento da sociedade em estágios contínuos dentro de um percurso unilinear. Conforme Alan Barnard, essa teoria poderia ser entendida como uma perspectiva antropológica na qual enfatiza a crescente complexidade da cultura através do tempo (BARNARD, 2004, p. 15). Os evolucionistas percebiam as sociedades não europeias como grupos inferiores na escala social, grupos que chegariam à evolução tal quais os europeus com o passar do tempo. O que as diferentes culturas representavam para a teoria evolucionista era um espelho de seu passado, ou seja, grupos distintos estavam em uma escala evolutiva em vias de se tornarem como a sociedade europeia, que, por se auto-determinar a sociedade mais evoluída, já havia passado por todos os estágios culturais anteriores. Algumas características sobre a teoria evolucionista clássica são importantes para compreender o pensamento cultural da época: a unidade psíquica do homem e a ideia de sobrevivências. Ainda que defendessem a evolução cultural de forma ascendente, os evolucionistas não acreditavam na desigualdade psíquica entre os indivíduos e entre grupos, mas sim em uma unidade. Já a ideia de sobrevivências laborada por Edward Tylor objetivava explicar como certas tradições antigas, e pouco compreensíveis para sociedades consideradas mais desenvolvidas, ainda permaneciam em 3 Para maiores informações sobre relações de poder que permeiam o fazer antropológico hodiernamente, ver Abu-Lughod (1991).

254 grupos sociais mais evoluídos. A explicação das sobrevivências assegurava a evolução cultural a partir do elo que estabelecia com o passado, pois esses resquícios indicariam a trajetória das sociedades na linha evolutiva: [...] processos, costumes, opiniões, e assim por diante, que, por força do hábito, continuaram a existir num novo estado de sociedade diferente daquele no qual tiveram sua origem, e então permanecem como provas e exemplos de uma condição mais antiga de cultura que evoluiu em uma mais recente (TYLOR, 1871 apud CASTRO, 2005, p. 15). Outra característica do evolucionismo cultural foi seu método de análise social que ficou conhecido como método comparativo. Tal metodologia detinha-se em encontrar semelhanças entre as diversas sociedades e compará-las com a sociedade europeia a fim de perceber em qual nível da escala civilizatória estaria o outro enquanto grupo. As semelhanças também importavam para legitimar a ideia de sobrevivências proposta por Edward Tylor: se houvesse qualquer simetria entre sociedades situadas em distintos graus de civilização, isso reforçaria a ideia de que o passado dos europeus estava vivo em outros grupos sociais. O método comparativo fundamentou a ideia de uma história unilinear acreditando que fenômenos semelhantes se dariam no mundo em razão de causas semelhantes, desconsiderando os processos históricos internos de cada sociedade e mesmo negligenciando a investigação dessas causas. Assim, toda a humanidade faria a mesma trajetória na história e as mesmas causas naturais implicadas ao homem resultariam em efeitos idênticos. Tal método de investigação estruturava-se a partir de descrições de viajantes, missionários e jesuítas sobre as diferentes regiões e sociedades que encontravam. A credibilidade destas descrições, na época, residia na similitude dos relatos quando era impossível aos narradores saberem o que era descrito entre eles, principalmente por razões geográficas. Deste modo, as sociedades não europeias consideradas selvagens, serviriam como parâmetro para a compreensão do funcionamento da sociedade em seu princípio, ainda que os evolucionistas imaginassem que os selvagens

255 contemporâneos não seriam como os primeiros homens, aqueles eram representados como o mais próximo que se poderia chegar de uma compreensão sobre o assunto. O primeiro evolucionista a ser abordado por Castro em seu livro é Lewis Morgan, um advogado norte-americano, nascido em 1818, que participou da política nova-iorquina e, anos depois, estabeleceu contato junto aos índios iroqueses realizando diversas anotações e tornando-se íntimo do grupo. A oportunidade de tal contato resultou em publicação de livros de conteúdo social como The League oftbe Ho-déno-sau-nee, orlroquois (1954 [1851]) e Ancient Society (1985 [1877]) 4, dentre outros. Morgan é reconhecido por ser um dos poucos teóricos do século XIX a conduzir pesquisa de campo (BARNARD, 2004, p. 31), ainda que esta não fosse metodologicamente estruturada a metodologia etnográfica consolidou-se com Malinowski (1976 [1922]) na década de 1920 e inserida em uma disciplina consolidada. Lewis Morgan também é autor do livro Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family, publicado no ano de 1871, e considerado importante escrito sobre o tema do parentesco que abordou os sistemas classificatórios de linhagens tratando as semelhanças entre asiáticos e índios americanos em suas relações familiares. O autor também relacionou as formas de organização da propriedade com o desenvolvimento da sociedade e consequentemente com o nascimento da civilização, o que de certa maneira suscitou a atenção de adeptos ao marxismo devido à grande semelhança com o que anunciava o materialismo histórico. Entendendo a história da humanidade como unilinear na qual todas as sociedades perpassariam pelas mesmas etapas de desenvolvimento, Morgan compreendia a sociedade humana a partir de três estágios, quais sejam: selvageria, barbárie e civilização onde, em níveis de desenvolvimento, a selvageria antecederia a barbárie e esta antecederia a 4 O livro Ancient Society influenciou a obra de Friedrich Engels intitulada A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1982), com primeira publicação em 1884.

256 civilização de modo natural e inexorável. Esses estágios estariam relacionados entre si a partir de uma ideia de progresso inevitável até o ápice civilizatório que corresponderia ao modo de vida europeu da época. Edward Tylor, pertencendo à mesma corrente evolucionista cultural de Morgan, também foi um expoente do pensamento sobre o homem em sociedade de sua época. Nascido em 1832 na Inglaterra, Tylor dedicou-se a estudar as leis da natureza e suas causas e efeitos em detrimento da arbitrariedade natural do homem em situações semelhantes, onde a relação entre eventos era crucial para explicar o evolucionismo e sua hierarquia. Além de sua ideia de sobrevivências, tornou-se um dos precursores da antropologia cultural ao conceder, de modo pioneiro, um conceito formal à cultura: Cultura ou Civilização, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade (TYLOR, 1871 apud CASTRO, 2005, p.56). Tal conceito de cultura foi fortemente contestado pelas premissas relativistas que sucederam a teoria evolucionista. Isto em razão das definições de cultura e civilização serem tratadas como sinônimas, considerando, assim, grupos humanos categorizados na época como não civilizados desprovidos de cultura. James Frazer, outro antropólogo evolucionista clássico a ser abordado por Castro, nasceu no ano de 1854 na Escócia e, como os autores anteriormente abordados, sugeriu em sua única palestra proferida, nominada O escopo da antropologia social (1908), que a investigação do homem e sua comparação elaborada a partir de fatos antropológicos suscitariam leis gerais sobre os modos de pensar humano desde seus primórdios até o tempo mais recente. A antropologia para o evolucionismo cultural, e para outros autores que sucederam essa corrente, teria este objetivo: descobrir leis gerais.

257 3. Olhar boasiano É nesse cenário antropológico, no qual o homem é classificado a partir de uma linha evolutiva, que Franz Boas assume enorme importância para a antropologia. Boas nasceu no ano de 1858, em Minden na Prússia, e dedicou-se aos estudos da física, geografia, psicologia e filosofia. O contexto antissemita crescente do governo de Bismarck motivou Boas com suas ideias neokantianas a migrar para a América do Norte. Seus estudos mais importantes deram-se entre os Inuit onde o relativismo cultural de Boas foi despertado e, com intenções etnográficas mais sérias, entre tribos como as do Kwakiutl (PETERSON, 2001, p. 50). Franz Boas, diferentemente dos evolucionistas, acreditava que a metodologia das ciências humanas deveria se apropriar de valores e percepções dos grupos estudados e se desvincular do parâmetro classificatório alicerçado no eurocentrismo. Boas também propunha que a existência ou inexistência de cultura em grupos sociais não seria prédeterminada pela posição que estes ocupassem no estágio civilizatório evolucionista, assim como a cultura não seria sinônimo de civilização, mas o caminho histórico pelo qual percorreram as sociedades e as diversas facetas de seus comportamentos e condições psicológicas, sociais e geográficas às quais estavam submetidas. Considerado um dos precursores da antropologia norte-americana do século XX, o legado boasiano pode ser interpretado como uma crítica às ideias sobre os estudos do homem em sociedade realizados em sua época especialmente no concernente aos métodos antropológicos e, também, acerca de posicionamentos intelectuais sobre raça 5. O método comparativo 5 Franz Boas, em seu escrito Raça e Progresso de 1930, dialoga especialmente com os poligenistas ao considerar a questão da raça como uma construção social e não um fato biológico passível de determinar a superioridade de determinados grupos em detrimento de outros. Para Trouillot (2003), ao separar raça de cultura na década de 1930 no contexto

258 evolucionista, ao perceber fenômenos semelhantes como resultante de uma origem comum independentemente da história interna de cada sociedade, é rechaçado por Boas que propõe, em contrapartida, o método histórico de análise cultural que seria mais conhecido posteriormente como particularismo histórico. Em Os pressupostos básicos da antropologia de Franz Boas, Stocking Júnior (2004) apresenta a discussão entre Boas e o etnólogo Otis Mason no que diz respeito às similaridades das causas e efeitos no desenrolar histórico da humanidade. Enquanto Mason sustentava uma posição evolucionista ao crer que na natureza causas semelhantes produzem efeitos semelhantes, Boas propunha outro paradigma ao acreditar que causas distintas poderiam gerar efeitos similares (exemplo: a utilização de máscaras em diversas sociedades pode resultar de fontes diferentes). O arbítrio no qual o método comparativo evolucionista estava submetido foi alvo de críticas realizadas pelo particularismo histórico. Dentre elas estavam a parcialidade do eurocentrismo enquanto parâmetro para análise cultural; a consideração da semelhança de práticas, organizações sociais e objetos em distintas sociedades como decorrentes das mesmas causas que não poderiam ser tratadas como ponto de partida, mas sim como objetivo a ser investigado; a lacuna na ponderação sobre a história das sociedades; e o método dedutivo, que deveria ser substituído pelo indutivo. A questão sobre a dinâmica dos processos culturais, conjuntos culturais e sua relação com o indivíduo através da transmissão de significados, que moldariam tanto o coletivo como seus indivíduos, norte-americano, Boas falhou com a antropologia e com a palavra cultura. Se raça não existia no plano biológico, ela existia no plano social e político enquanto racismo, enquanto práticas discriminatórias. O desvencilhamento de cultura e raça em um contexto social estadunidense que possuía em vigor a one-drop rule (legislação racista que inferiorizava juridicamente aqueles que tivessem qualquer grau de ascendência africana), fez com que a cultura falhasse com seu contexto, negligenciando estudos sobre relações entre negros e brancos, miscigenação e desigualdades sociais, ou seja, negligenciando discriminações construídas socialmente.

259 interessavam à perspectiva boasiana que defendia a ideia de que a sociedade faz o indivíduo da mesma forma que este pode alterar o corpo social. Assim, o contato com outras culturas poderia ocasionar mudanças culturais de um grupo de mesmo modo que as condições geográficas de forma limitada Franz Boas refutava determinismos. Por fim, o objetivo da pesquisa antropológica para o particularismo histórico residia na tentativa de compreender os passos pelos quais o homem tornou-se aquilo que é biológica, psicológica e culturalmente (BOAS, 1932 apud CASTRO, 2004, p. 88). A cultura enquanto sinônimo de civilização proposta pelos evolucionistas é refutada pela cultura enquanto diversidade da perspectiva boasiana, ou seja, pela noção de culturas. Se para os evolucionistas o humano estaria fadado a ter a mesma trajetória histórica de modo inexorável, no particularismo histórico essas trajetórias são relativizadas e retiradas de um trajeto único e hierárquico de desenvolvimento para serem analisadas singularmente. 4. Considerações finais O artigo procurou demonstrar através dos livros Evolucionismo Cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer e Franz Boas Antropologia Cultural, de Celso Castro, as principais ideias sobre o homem e sua cultura na recente antropologia do século XIX e início do século XX. A mudança de paradigma foi o que este artigo procurou abordar sucintamente, porém fazse importante ressaltar, também, as contribuições de ambas as correntes teóricas, tanto do evolucionismo clássico quanto do particularismo histórico. Se o evolucionismo parece-nos ultrapassado atualmente, é relevante considerarmos que representou um primeiro esforço antropológico de compreender a vida cultural humana. Por sua vez, o rompimento com a perspectiva dos evolucionistas, proposto por Franz Boas, além do importante acréscimo metodológico, se faz ainda presente quando, na antropologia ou

260 em outras ciências humanas, abordamos a singularidade de cada cultura, a relevância de sua história, enfim, ao relativizarmos nossa própria cultura e de outros grupos sociais em nossos estudos e visões de mundo. Referências bibliográficas ABU-LUGHOD, Lila. Writing against Culture. In: FOX, R. (Org.). Recapturing Anthropology. Santa Fe: School of American Research, 1991. p. 137-162. BARNARD, Alan. History and Theory in Anthropology. Cambridge: Cambridge University Press: 2004. BOAS, Franz. Antropologia cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2009. CASTRO, Celso (Org.). Franz Boas: Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982 [1884]. FRAZER, James. The Scope of Social Anthropology: A Lecture Delivered Before the University of Liverpool. London: Macmillan, 1908. MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1976 [1922]. MORGAN, Lewis Henry. Systems of Consanguinity and Affinity in the Human Family. Washington D.C.: Smithsonian Institution, 1871.. League of the Ho-de-no-sau-nee or Iroquois. New Haven: Human Relations Area Files, 1954 [1851].. Ancient Society. Tucson: The University of Arizona Press, 1985 [1877]. PETERSON, Thomas. A Social History of Anthropology in the United States. New York: Berg, 2001.

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