Os Sambaquis do Litoral Brasileiro

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Transcrição:

Os Sambaquis do Litoral Brasileiro Davi Comenale 1º semestre/2013 Introdução Os primeiros estudos de sambaquis datam do início da prática arqueológica no Brasil, quando a disciplina era dominada por arqueólogos amadores. Ainda no século XIX os sambaquis chamavam a atenção destes entusiastas por seu carácter monumental, que poderia representar um vestígio de um possível grande civilização que tivesse ocupado o litoral brasileiro. A busca por marcos monumentais de antigas civilizações permeava a imaginação dos pesquisadores à época, ávidos por encontrar no país uma cultura material de grandiosidade semelhante à encontrada em países vizinhos da América do Sul, como as ruínas de cidades e templos Maias e Astecas. Porém, a monumentalidade dos sambaquis não era o único fator a intrigar os estudiosos. Toda a estrutura destes sítios arqueológicos torna-o singular. Segundo Gaspar (2000), os sambaquis podem ser definidos como acúmulos conchíferos de proporções que variam de 2 metros a até 30 metros de altura, como é caso do sambaqui Jabuticabeira, localizado em Santa Catarina. São compostos por restos alimentares (conchas, esqueletos de peixes, aves e mamíferos); solo de terra preta, que é conhecida por ser produzida pela decomposição de matéria orgânica comumente associada a ocupações humanas; sepultamentos e artefatos em pedra e osso. A riqueza de vestígios nestes sítios logo levantou questões acerca da natureza destes monumentos. Argumentava-se que estas estruturas 1

poderiam ter sido formadas por agentes naturais, como as variações do nível do mar e processos erosivos, que teriam levado ao acúmulo desta miríade de artefatos e restos de animais. Outra corrente, conhecida à época como corrente artificialista, defendia se tratar de um monumento construído pelo homem. Tal embate perdurou até meados do século XX, quando definitivamente os sambaquis passaram a ser vistos como construções intencionais de grupos pré-históricos. Panorama das pesquisas As primeiras publicações de pesquisas de sambaquis apresentaram o acalorado debate acima mencionado, sempre em torno da questão da origem natural ou artificial dos sítios. Tal debate alimentou o interesse dos pesquisadores pela identificação de sambaquis ao longo da costa brasileira. Em 1876, em estudo intitulado Sobre os Sambaquis do Sul do Brasil, Carlos Wiener aborda o tema frisando que sobre a origem dos sambaquis divergem as opiniões dos poucos entendidos que os hão perfunctoriamente observado (Wiener, 1876, p. 1). A seguir, o autor declara sua propensão a acreditar que os sambaquis teriam sido construídos pelo homem, atentando para o fato dos depósitos de conchas encontrarem-se permeados por sepultamentos e artefatos muito diversos. Outras publicações do período demonstram o grande interesse despertado pelos sambaquis do litoral brasileiro. O naturalista Löefgren (1893) chegou a especular, em boletim vinculado à Commisão Geographica e Geologica do Estado de São Paulo, sobre a origem e finalidade dos 136 sambaquis que identificou na região da Baixada Santista, Iguape e Cananéia. No início do século XX, Krone (1914) relatou a presença de sambaquis fluviais e cemitérios indígenas, também na região de Cananéia e Iguape. 2

Desde essas primeiras abordagens científicas dos sambaquis, diversos outros estudos foram realizados, com grandes avanços a partir da introdução da datação radiocarbônica dos sítios, na década de 1950, e da abordagem sistemática dos sepultamentos e da cultura material tipicamente encontrada nestes sítios. Já em meados do século XX as publicações passam a demonstrar maior preocupação dos autores em observar a cultura material dos sítios, uma vez que a artificialidade dos sambaquis já havia sido confirmada. Guilherme Tiburtius, um arqueólogo amador que dedicou-se ao estudo de sambaquis do sul do Brasil, destaca-se ainda hoje pela qualidade de seus trabalhos. Tiburtius teve a rara oportunidade de realizar análises minuciosas da composição de inúmeros sambaquis, valendo-se de um momento em que muitos destes sítios estavam sendo destruídos por empreendimentos da construção civil. A utilização de máquinas para remoção dos sedimentos possibilitava que Tiburtius observasse toda a estratigrafia dos sítios, ao mesmo tempo em que revelava centenas de artefatos e sepultamentos. Os resultados publicados de seus trabalhos servem atualmente como referência para sambaquis que foram completamente destruídos, fornecendo desenhos detalhados de sepultamentos, artefatos e da estratigrafia dos sítios, além de descrições minuciosas de todo o material encontrado. Tiburtius ainda elaborou algumas classificações para o material lítico (Tiburtius, 1950-51), atentando especialmente para as lâminas de machado (Tiburtius & Leveprost, 1953). A partir da década de 1950 a arqueologia brasileira profissionaliza-se, impulsionada principalmente pelas missões francesas e norte-americanas, que aplicaram pela primeira vez no Brasil métodos de pesquisa em voga na arqueologia da época. Nestes programas, porém, os sambaquis foram deixados de lado, pois o foco dado concentrava-se na região amazônica e sítios do interior do país. Ainda assim estas missões internacionais influenciaram diretamente 3

os rumos da arqueologia brasileira, que a partir de então passou a preocupar-se com as questões teóricas e metodológicas que embasavam suas pesquisas. Após um hiato de algumas décadas sem que pesquisas sistemáticas fossem realizadas com sambaquis, na década de 1970 importantes trabalhos foram publicados. André Prous dedicou-se às pesquisas de indústrias líticas dos sambaquis, podendo-se destacar, dentre diversos trabalhos, estudos de referência (Prous, 2003, 2004), em que inúmeros artefatos da indústria lítica sambaquieira são apresentados e métodos para identificação e classificação dos mesmos são propostos. Em outros estudos Prous também abordou tipos específicos de artefatos encontrados, e buscou fazer explanações sobre os significados destes artefatos para a sociedade sambaquieira. Um destes trabalhos foi a extensa pesquisa que realizou com zoólitos (Prous, 1977), artefatos de pedra polidos com forma de animais, que são encontrados exclusivamente nos sambaquis. Prous determinou a maneira como eram produzidos estes artefatos, os diferentes tipos encontrados, sua distribuição no continente sul americano, possíveis origens e um modelo de sua dispersão ao longo da costa. Até hoje não se sabe se haveria alguma finalidade específica para estes objetos, que intrigam não somente pela beleza, mas pela misteriosa concavidade ventral que especula-se que poderia ser utilizada para processamento de substâncias. Na década de 1990 as pesquisas com sambaquis ganharam um novo impulso, com aumento dos financiamentos para pesquisas arqueológicas a partir do cumprimento da Constituição Brasileira de 1988, que determinou a realização de relatórios de impacto arqueológico para obras da construção civil. As pesquisas no litoral Sul e Sudeste do país, que passava à época por intenso processo de urbanização, se beneficiaram da coleta de grande quantidade de material, ao mesmo tempo em que foram destruídos centenas de sítios. 4

Neste novo contexto importantes trabalhos foram realizados. Afonso e De Blasis (1994) procuraram entender em Santa Catarina os processos de formação de um sambaqui, separando a atividade construtiva dos grupos pré-históricos, dos processos naturais, utilizando para tal identificação métodos de análise geológica. Maria Dulce Gaspar desenvolveu novos métodos para análise e interpretação da cultura material sambaquieira. Em relação à indústria lítica, propôs uma abordagem relacional deste material, vinculando-o a todos os demais artefatos encontrados em contexto arqueológico (Gaspar, 1991). Tal proposta baseia-se na interpretação da autora de que a produção dos artefatos líticos raras vezes seria uma finalidade para estes grupos préhistóricos, consistindo, na realidade, em uma etapa intermediária para a fabricação de outros objetos. Assim, o material lítico seria, na maior parte dos casos, um instrumento para produção de artefatos em osso ou madeira. Gaspar também realizou estudos enfocando artefatos específicos da indústria lítica sambaquieira, como os amoladores-polidores fixos (Gaspar; Tenório, 1990) e os zoólitos (Gaspar, 1995), analisando as possíveis relações entre identidade cultural e estas esculturas de animais, que estariam claramente ligados ao ambiente e à dieta alimentar do grupo. Cristina Tenório (2003) desenvolveu interessante interpretação inter-regional da elaboração e distribuição de artefatos líticos nos sítios litorâneos. Seu estudo teve como base seis áreas de concentração de sambaquis no litoral do estado do Rio de Janeiro, e para testar seu modelo interpretativo a autora utilizou a região da Ilha Grande. Segundo este modelo, a concentração de amoladores-polidores fixos em poucos locais, em contraste com a notável dispersão de lâminas de machado polidas em todas as regiões analisadas, poderia estar relacionada com uma especialização na fabricação de grandes quantidades destas lâminas em 5

determinados locais, a partir dos quais, possivelmente em um sistema de trocas, elas teriam sido disseminadas para as demais regiões. Silva (2005) procurou entender o ritual funerário sambaquieiro, analisando todos os sepultamentos de um sítio da região de Ubatuba-SP, juntamente com seus acompanhamentos funerários. A análise de sepultamentos é de grande importância na arqueologia, pois permite identificar a existência de diferenciações sociais nos grupos pré-históricos, de acordo com as diferenças nos acompanhamentos e no ritual prestado para cada indivíduo. Assim, é possível verificar se havia diferenciação por gênero, estratificações sociais por status religioso, político, etc. O autor notou que entre estes grupos, apesar das diferenças verificadas nos sepultamentos, não havia nenhum padrão que pudesse sugerir o privilégio de alguns indivíduos em relação a outros. Alves (2007) e Belém (2012) propuseram em suas análises a identificação de tipos funcionais no material das coleções com que trabalharam. Por meio da interpretação de marcas de uso e de correlações etnográficas, as autoras buscaram relacionar os artefatos a suas possíveis formas de uso, inferindo destas relações as prováveis atividades que eram realizadas no sítio. Os trabalhos apresentados compõem uma pequena parte dos estudos já publicados sobre sambaquis. Seria uma tarefa impossível esgotar o tema em um levantamento bibliográfico desta magnitude, visto que, ao lado das pesquisas na região amazônica, as pesquisas acerca da cultura material sambaquieira estão entre as mais recorrentes na arqueologia brasileira. Assim, procurou-se aqui traçar um panorama das principais correntes que marcaram a história destas pesquisas, delineando as diversas abordagens utilizadas para tentar entender a formação destes sítios e como viveram estes grupos pré-históricos. 6

Conclusão O ensino da pré-história do Brasil em escolas tem participação tímida, e na maior parte das vezes o que é apresentado acerca do passado da humanidade diz respeito à pré-história europeia, como se todo o resto do mundo tivesse seguido este mesmo esquema, numa linha evolutiva. Tanto a arqueologia quanto a antropologia social não trabalham mais com estes esquemas há décadas. Todavia, eles se perpetuam devido a esta pequena penetração dos estudos regionais de pré-história nas escolas. Seguindo as ideias expostas por Ulpiano Bezerra de Meneses (2007), o ensino da préhistória não deve ter como finalidade a construção de um discurso identitário nacional, uma vez que isto serviria apenas para justificar um status quo, no qual os povos do passado aparecem justificando um glorioso presente, representado na figura dos estados-nação. Para Meneses, estudos de pré-história possuem um potencial muito mais salutar de auxiliar na construção do senso crítico do indivíduo, pelo contato com a diversidade de formas de organização social e percepção das transformações que ocorrem através do tempo. Espera-se que tais estudos ajudem a desenvolver um senso de que não há linearidade nem inevitabilidade de acontecimentos históricos. A história da humanidade não é singular, mas extremamente ramificada. Neste contexto, os sambaquieiros aparecem como um dos muitos exemplos desta variabilidade. 7

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