O papel da delegacia da mulher na polícia civil

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Transcrição:

Gênero, violência e segurança pública ST 39 Márcia Cristiane Nunes Scardueli UNISUL Polícia Civil Delegacia da Mulher violência de gênero O papel da delegacia da mulher na polícia civil A presente pesquisa tem o objetivo de investigar a percepção dos policiais quanto ao lugar ocupado pela Delegacia da Mulher, o órgão policial criado com o objetivo de combater a violência contra a mulher, dentro da instituição Polícia Civil de Santa Catarina. A pesquisa está sendo realizada à luz da Análise Crítica do Discurso e dos Estudos de Gênero e o corpus é composto de questionários que foram aplicados a policiais civis de uma região policial no sul do Estado de Santa Catarina A violência contra a mulher é resultado de um processo de construção histórica. A violência física é parte de um processo amplo de opressão no ambiente da vida social e tem raízes muito antigas. A partir da década de 70, quando os excessos foram percebidos no espaço público, grupos sociais mobilizaram-se para denunciar e pedir a punição dos agressores. A partir dessas pressões sociais surgiu o órgão policial denominado Delegacia de Polícia de Proteção à Mulher para atender especialmente mulheres vítimas de crimes cometidos contra as mulheres. A ONU (BRASIL, 2005, p. 01) define violência contra a mulher como qualquer ato de violência baseado na diferença de gênero, que resulte em sofrimento e danos físicos, sexuais e psicológicos da mulher; inclusive ameaças de tais atos, coerção e privação da liberdade seja na vida pública ou privada. Esse tipo de violência contra a mulher é praticado pelo homem, para dominá-la e tê-la sob o seu poder. Segundo Ardaillon (1987), violência contra a mulher quer dizer o uso de força física, psicológica ou intelectual para obrigar pessoa do sexo feminino a fazer algo que não está com vontade. A violência contra a mulher pode envolver desde pressão e chantagens psicológicas, ameaças de diversas naturezas, espancamentos, ou até mesmo a morte, e constitui-se como uma violação dos direitos humanos. Um dos aspectos da violência contra a mulher ou violência de gênero (termos sinônimos nesta pesquisa) é a relação que esse fenômeno mantém com a linguagem, uma vez que esta é uma das grandes disseminadoras de padrões sexistas, por ser um dos principais componentes de qualquer cultura. Nesta pesquisa, gênero é entendido como um construto social que designa as diferenças sociais e culturais que definem os papéis sexuais destinados a homens e mulheres em cada sociedade. Para Cameron (2002) as línguas em geral são sexistas por representarem o mundo de um ponto de vista masculino, de acordo com crenças esteriotipadas sobre as mulheres, os homens, e a 1

relação entre eles. A linguagem por si só não é sexista, mas as convenções que regem o seu uso o são. Em nível oficial, um dos primeiros espaços que oferecem atendimento a mulheres vítimas de violência é a Delegacia da Mulher (DM). A DM é uma Delegacia de Polícia considerada especializada, pois foi instituída para atender mulheres vítimas de qualquer tipo de violência de gênero. A implantação das DMs foi uma relevante conquista social e um passo importante no tratamento da problemática da violência contra a mulher no Brasil. As DMs surgiram como uma resposta oficial à questão da violência de gênero oferecendo um espaço de proteção à mulher vítima de violência, de punição para homens agressores, e de publicização da violência contra a mulher como um problema social. Entretanto, apesar da importância social da instituição, percebe-se que ela ainda se encontra imersa num quadro de desconhecimento, preconceito e noções equivocadas, que inclui o público que a procura, a instituição policial e o corpo de funcionários que a compõe. A violência de gênero e a Delegacia da Mulher já foram temáticas de estudos em outras áreas; porém, a intersecção desses temas com a linguagem é nova. Acredita-se que estudar o papel que a Delegacia da Mulher ocupa na Polícia Civil poderá oferecer contribuição para o debate acerca da funcionalidade desta Delegacia de Polícia, bem como produzir teorizações e dados que poderão ser utilizados em programas de capacitação para policiais sobre violência de gênero. Questões de pesquisa O presente estudo tem por objetivo responder às seguintes questões de pesquisa: (1) Qual é a representação da Delegacia da Mulher para a 19ª Região da Polícia Civil do Estado de Santa Catarina? (1.1) Diferentes carreiras nesta região policial e policiais de diferentes gêneros representam a Delegacia da Mulher de maneira diferenciada? (1.3) Dentro da Delegacia da Mulher, policiais de diferentes gêneros e carreiras representam o órgão de maneira diferenciada? (1.4) A representação das Delegacias da Mulher apresentada pelos funcionários dessa Delegacia Especializada se enquadra nos objetivos do órgão? (2) Há compatibilidade entre as representações da Delegacia da Mulher para o movimento feminista e a Polícia Civil? 1. Fundamentação teórica 1.1 Análise crítica do discurso 2

Segundo Fairclough (1992) a Análise Crítica do Discurso (doravante ACD) é uma abordagem que pode ser adotada em investigações nas ciências sociais. Trata-se de uma perspectiva teórica que interpreta a linguagem como ação social, com interesse particular nas relações de poder, de controle e de discriminação que são estabelecidas, mantidas e manifestas pela linguagem. Fairclough (1995) apresenta a ACD como uma alternativa de análise do discurso, voltada para a conscientização de como a linguagem é utilizada para reforçar desigualdades sociais e para a análise de mudanças em organizações sociais. Seu foco de atenção não é o uso da linguagem por si, mas o caráter lingüístico dos processos e das estruturas sociais e culturais. A ACD tanto trabalha com as relações entre as estruturas sociais e culturais e os processos sociais, quanto se ocupa das propriedades que os textos individuais adquirem nestas relações, analisando a forma como são interpretados e recebidos, e que efeitos sociais produzem (FAIRCLOUGH e WODAK, 1997). Nesse sentido, a ACD pode contribuir para a investigação da discriminação de gênero mediada pela linguagem e representada nos discursos de policiais civis. 1.2 Representações Para Hall (apud CALDAS-COULTHARD, 1997, p. 61) representação é o processo utilizado por membros de uma cultura para produzir significados de objetos, pessoas, eventos no mundo, que não têm em si, significados fixos ou verdadeiros. São as pessoas, em sociedade, que atribuem significado às coisas e ao mundo que as rodeia. Nesse sentido, os significados irão sempre mudar, de uma cultura ou período para outro. Um dos sistemas de significação mais utilizados é a linguagem verbal. Assim, através da análise das práticas discursivas de uma determinada instituição pode-se investigar como seus membros constroem representações do social, como, por exemplo, o papel da Delegacia da Mulher na Polícia Civil. Segundo Kress (1989), o uso da linguagem tem relações estreitas com fenômenos sociais, pois as pessoas falam, escrevem, lêem e ouvem de maneira socialmente determinada, de acordo com a categoria social em que estão inseridas. Em face disso, as representações lingüísticas são afetadas por valores sociais e, assim, determinadas maneiras de ver a realidade se sobressaem em relação a outras, de acordo com as condições históricas e culturais de um determinado contexto. Nessa perspectiva, a análise das representações que os membros da Polícia Civil constroem a respeito da Delegacia da Mulher pode ajudar a entender como essa instituição e seus membros vêem os papéis de gênero, as relações de gênero, e a questão da violência contra a mulher, e apontar 3

a presença de mitos, preconceitos, estereótipos e lacunas conceituais existentes dentro da corporação. 1.3 Violência de gênero Segundo Saffioti e Almeida (1996), o termo violência de gênero engloba todo o tipo de relação social hierarquizada que traz em sua origem o desejo de preservação da organização social de gênero. A categoria gênero, por sua vez, remete a uma ampla discussão sobre o contexto das relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres. Assim, para as autoras, o conceito de gênero se situa na esfera social, diferente do conceito de sexo, posicionado no plano biológico (p. 183). Uma das modalidades de violência de gênero que expressa de forma mais clara e contundente a desigualdade nas relações entre homens e mulheres em nível privado é a violência conjugal. Nessa modalidade, o marido ou o parceiro é o principal agressor, indicando assim, que o espaço doméstico é o lugar favorável para o exercício da violência de gênero rotinizada, pois permite ao agressor acesso privilegiado à vítima. A passagem da violência de gênero de problema privado para problema público deu-se por força do movimento feminista, que lutou para promover a percepção da violência de gênero, apresentando-a como um problema com características nocivas à convivência social (SOARES, 1999). As ações dos grupos feministas a partir dos anos 80 forçaram a criação de organismos oficiais e políticas públicas para lidar com a temática da violência contra a mulher. Em 1982, com a iniciativa de um grupo de mulheres, em São Paulo, de aliar-se ao Estado e implementar um organismo estadual com políticas sociais para o combate de discriminações contra a mulher, surgiu o Conselho Estadual da Condição Feminina, que foi seguido pela Conselho Nacional e de Conselhos Municipais da Mulher, que então abriram espaço para a criação da Delegacia da Mulher (BOSELLI, 2003). 1.4 Delegacia da mulher Em 1985, o Conselho Nacional levou a discussão sobre violência contra a mulher às altas esferas do poder no país, na tentativa de que o seu combate fosse identificado como uma luta necessária. Nessa época, a grande conquista do movimento feminista, foi a implantação da primeira Delegacia de Polícia especializada no atendimento a mulheres vítimas de violência, no Estado de São Paulo, no mesmo ano (BOSELLI, 2003). 4

A criação da Delegacia da Mulher pretendeu tornar pública e abrangente a discussão sobre a violência de gênero, especialmente a violência conjugal. A partir de então, a questão da violência contra a mulher tomou outras dimensões, e os movimentos brasileiros em defesa da mulher se aliaram a movimentos mundiais, levando a ONU a reconhecer a violência contra a mulher como um tema dos direitos humanos. Segundo pesquisa realizada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, em 2003 o país contava com aproximadamente 400 unidades no território nacional, com pelo menos uma unidade por estado. Em Santa Catarina, encontram-se em funcionamento 11 Delegacias da Mulher, sendo que uma delas está localizada na 19ª Região Policial Civil, alvo dessa pesquisa. A institucionalização da Delegacia da Mulher foi a mais ampla política pública brasileira relacionada à violência contra a mulher. Com a sua criação esperava-se que a violência de gênero, até então invisível e sem importância social, viesse a se tornar pública e notória, e que esta delegacia especializada contribuísse para uma melhor distribuição de justiça e para a promoção da cidadania de uma categoria discriminada, além de reelaborar o significado da violência através da perspectiva de gênero (SOARES, 1999). Entretanto, o funcionamento das Delegacias da Mulher não tem atendido a essa expectativa. O que se percebe no meio policial é que as questões relativas à categoria gênero não são do conhecimento da maioria dos policiais, cujas atividades profissionais são freqüentemente pautadas por estereótipos agregados culturalmente. Em 2005 a Delegacia da Mulher completou vinte anos de existência. Porém, partindo de minha experiência pessoa como policial civil em Santa Catarina, posso informar que é possível perceber-se um nível bastante baixo de motivação entre os policiais da DM, bem como dos policiais das outras delegacias com relação ao trabalho da DM. Há um quadro de desencanto em relação à função social que as DMs exercem no contexto da violência contra a mulher. É possível que esta desmotivação seja decorrente da frustração de muitas vezes não ser possível oferecer às vítimas que buscam a DM uma solução adequada para o seu problema. Atualmente a questão que mais difere a DM das outras delegacias está no público que a procura, porém, em razão de ser uma delegacia especializada, o que deveria diferenciá-la das outras delegacias de polícia seria o tipo de serviço prestado pelo órgão. Diante de um quadro de desconhecimento quase que institucional sobre as implicações sociais e culturais da questão da violência contra a mulher, e sobre o campo de debates teóricos e de movimentos não-governamentais voltados para essa temática, a eficácia e a qualidade dos atendimentos realizados pela DM seriamente comprometidos. 2. Metodologia 5

A metodologia de análise de dados adotada para a pesquisa está baseada na perspectiva da análise crítica do discurso e na gramática sistêmica funcional. A gramática sistêmica funcional se mostra uma ferramenta de análise importante e precisa para a perspectiva da análise crítica do discurso exatamente porque permite analisar não só a estrutura gramatical, mas também toda a situação comunicativa em que o texto se encontra. Da perspectiva funcional, o sistema lingüístico não pode ser separado do contexto social do discurso, pois entende que as pessoas vivenciam significados e organizam suas experiências do mundo através de escolhas lexicais e gramaticais que, por sua vez, são o foco da análise da lingüística sistêmica funcional. 2.1 Operacionalização A coleta de dados da pesquisa foi realizada através da aplicação de um questionário a todos os Policiais Civis que compõem a 19ª Região Policial Catarinense, localizada no extremo sul do Estado. O questionário aplicado é do tipo aberto, composto de onze perguntas que abordam questões relativas ao entendimento dos Policiais Civis sobre a Delegacia da Mulher, o serviço prestado pelo referido órgão policial, a necessidade de treinamento específico para o desempenho das funções policiais nesta delegacia, bem como sobre o conhecimento da expressão gênero. A região é composta de 103 policiais civis, sendo estes 6 delegados, 1 inspetor, 18 escrivães, 23 escreventes, 23 comissários, 20 investigadores, 3 médicos legistas, 3 técnicos em necropsia, 2 psicólogas, 3 peritos criminalísticos, e, 1 técnico criminalístico; sendo 58 homens e 45 mulheres. Desse total, 68 pessoas atenderam ao chamado da pesquisa. Entre estes 39 são homens e 29 são mulheres. Outros dados ainda não podem ser fornecidos, estão sendo processados, uma vez que a análise do material coletado não está concluída. Referências bibliográficas ARDAILLON, Danielle; DEBERT, Guita Grin. Quando a vítima é mulher: análise de julgamentos de crimes de estupro, espancamento e homicídio. Brasília: CNDM, 1987. BOSELLI, Giane Cristini. Instituições, gênero e violência: um estudo da Delegacia da Mulher e do Juizado Criminal, 2003. Dissertação - (Mestrado em Ciências Sociais) - Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP, Marília. BRASIL. Senado Federal. Subsecretaria de pesquisa e opinião pública. Relatório de pesquisa: Violência doméstica contra a mulher. Brasília, 2005. 6

CALDAS-COULTHARD, Carmen Rosa; van LEEUWEN, Theo. Discurso crítico e gênero no mundo infantil: brinquedos e a representação de atores sociais. Linguagem em Discurso, v.4, n. esp. p. 11-33, 2004. CAMERON, Deborah (Org). The feminist critique of language: a reader. 2 nd edition. London: Routledge, 2002. FAIRCLOUGH, Norman. Dirscouse and social change. London: Polity Press, 1992 [ed.br.: Discurso e Mudança Social. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001].. Critical discourse analysis. London: Longman, 1995. FAIRCLOUGH, Norman; WODAK, Ruth. Critical discourse analysis. In: van DIJK (Ed.) Discourse and social interaction. London: Sage, 1997, p. 258-284. KRESS, Gunther. Linguistic processes in sociocultural practice. Oxford: Oxford University Press, 1989. SAFFIOTI, Heleieth; ALMEIDA, Suely Souza de. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de Janeiro: Revinter, 1995. SOARES, Bárbara Musumeci. Mulheres invisíveis: violência conjugal e as novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. 7