UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CURSO DE MESTRADO EM DIREITO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM ORDEM JURÍDICA CONSTITUCIONAL Ana Stela Vieira Mendes Princípios e diretrizes da ordem ambiental econômica no Estado de Direito Ambiental brasileiro Fortaleza 2010
Ana Stela Vieira Mendes Princípios e diretrizes da ordem ambiental econômica no Estado de Direito Ambiental brasileiro Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. João Luis Nogueira Matias Fortaleza 2010
Princípios e diretrizes da ordem ambiental econômica no Estado de Direito Ambiental brasileiro Aprovada em: 17/08/2010 BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. João Luis Nogueira Matias (Orientador) Universidade Federal do Ceará Profª Dra. Denise Lucena Cavalcante Universidade Federal do Ceará Prof. Dr. Rogério Silva Portanova Universidade Federal de Santa Catarina
Aos meus pais, ao meu noivo Thiago e aos filhos dos filhos dos nossos filhos que virão.
AGRADECIMENTOS Ao Grande Deus, que pela sua bondade me deu a vida e as condições espirituais e materiais necessárias para a realização deste trabalho. À minha mãe, Irisdalva, meu maior amparo e suporte, minha incentivadora, minha fortaleza, co-responsável por todas as vitórias que eu alcancei até hoje. Ao meu pai, Caio, por se fazer presente mesmo quando ausente, que com o seu apoio e a sua palavra amiga tem me trazido conforto para suportar a distância. Ao meu noivo, Thiago, por tudo que tem me ensinado a respeito do amor. Aos meus irmãos, Dimas Filho, Camila e Caio César, por lembrarem a alegria e a doçura da vida e a esperança em dias melhores. Aos meus tios e tias, avós, primas e primos, gente espalhada por este Brasil, sempre tão querida e tão amada, que me deixa tanta saudade. Às famílias Câmara e Loureiro, que também são minha família. À Universidade Federal do Ceará, instituição que vem me proporcionando, desde a graduação, uma formação em ensino, pesquisa e extensão gratuita e de qualidade, comprometida com a sociedade. Ao Prof. Dr. João Luis Nogueira Matias, que mais que um orientador, foi um amigo, que me proporcionou aprendizagem e amadurecimento sobre muitas coisas durante esses dois anos. Ao Prof. Henrique Botelho Frota, meu orientador da graduação e amigo sempre disponível, que me sugeriu que eu trabalhasse com o ICMS Ecológico. Sem ele, este trabalho não teria sido possível. Ao Prof. Dr. Rogério Portanova, pelas conversas que trouxeram tantas reflexões, por tantos livros emprestados e pela receptividade calorosa nas frias estadias catarinenses. À Professora Dra. Denise Lucena Cavalcante, pela oportunidade de ter sido sua estagiária de docência, pelo aprendizado no grupo de Tributação Ambiental e também por aceitar, juntamente com o Professor Rogério, o convite para compor a banca examinadora dessa dissertação de Mestrado. Ao Prof. Dr. Rui Verlaine, pelos livros emprestados, pelas vezes que
me recebeu em sua casa, demonstrando dedicação e total disponibilidade. Ao Prof. Ricardo Ávila, pelo valioso auxílio na formatação da versão final deste trabalho. Ao Projeto Casadinho UFC-UFSC, que tanto vem contribuindo para o avanço dos estudos jurídicos sobre propriedade e meio ambiente e com a formação acadêmica de tantos alunos de graduação e pós-graduação. Ao CNPq, à CAPES e à FUNCAP, pelo apoio financeiro. À Marilene, querida Maris, pelo atendimento sempre solícito e afetuoso, pelo apoio e a palavra amiga de que tudo dará certo!. Aos colegas de mestrado da turma de 2008, com quem vivenciei tantos momentos bons, com quem aprendi tantas coisas. Em especial a André, Juliana, Daniel, Nilo, Péricles e Renato, pela maior proximidade; aos colegas da turma de 2007, em especial Germana Belchior e Davi Peixoto; aos colegas da turma de 2009, especialmente Luciana, Priscylla, Gustavo, Bruno, Vinícius, David Barbosa, Carlos Henrique e Carla Sofia. Ao Rodrigão e ao Homero, da turma de 2010. Ao Jothe e ao Osmildo, pelas conversas bem humoradas. Ao NAJUC Núcleo de Assessoria Jurídica Comunitária e ao CA de Todos, porque os sonhos não envelhecem! Pela alegria que me deram de ver de volta os cartazes na parede do CA. Aos meus alunos e ex-alunos, da Universidade Federal do Ceará e da Faculdade Christus, de quem tanto recebo carinho e com quem tanto aprendo. A todos da Faculdade Christus, especialmente Andreia Costa, Denise Andrade, Deubia Cavalcanti, Fayga Bedê e a Danielly Passos, que vai deixar saudades quando for para os Esteites. A todos os meus amigos e amigas, em especial, a Cíntia Mapurunga, que tantas vezes alugou livros pra mim em seu nome na instituição em que estudava. A todos que, de alguma forma, contribuíram para a realização deste trabalho.
No mistério do sem-fim equilibra-se um planeta. E, no planeta um jardim, e, no jardim, um canteiro; no canteiro uma violeta, e, sobre ela, o dia inteiro, entre o planeta e o sem-fim, a asa de uma borboleta. Canção Mínima Cecília Meireles Aquela senhora tem um piano Que é agradável mas não é o correr dos rios Nem o murmúrio que as árvores fazem... Para que é preciso ter um piano? O melhor é ter ouvidos E amar a natureza O Guardador de Rebanhos Fernando Pessoa
RESUMO Atualmente a humanidade passa por uma crise ambiental jamais vista, a qual vem sendo ocasionada basicamente pelo projeto de civilização da modernidade, que superdimensionou o lugar das atividades econômicas na vida humana. Para evitar que novos danos ocorram, há a necessidade de se pensar em novas alternativas políticas e jurídicas. Os teóricos pesquisadores do direito ambiental têm feito esforços para propor um novo paradigma organizacional: o Estado de Direito Ambiental. Para que este modelo se torne realidade, o Estado deve fazer intervenções para harmonizar as atividades econômicas à proteção ambiental. No Brasil, o direito ao meio ambiente é considerado um direito fundamental desde a promulgação da Constituição brasileira de 1988 e a proteção do meio ambiente é um princípio fundamental da ordem econômica. Neste contexto, o objetivo desta dissertação é investigar os princípios e diretrizes para as políticas ambientais brasileiras, que estejam de acordo com o novo paradigma organizacional do Estado de Direito Ambiental. Aborda uma nova forma de olhar a relação ecologia e economia para a compreensão do desenvolvimento sustentável. Apresenta três direções para as políticas ambientais: a da Economia Ambiental e da Análise Econômica do Direito, a do ecodesenvolvimento de Ignacy Sachs e a Economia Ecológica. Apenas as duas últimas pareceram compatíveis com o ordenamento jurídico brasileiro. A metodologia utilizada é dialética, histórica e comparativa. As técnicas são a bibliográfica e a documental. Palavras-chave: Crise Ambiental, Ecologia, Economia, Estado de Direito Ambiental.
ABSTRACT Nowadays, humanity goes through the biggest environmental crisis ever known, that is being caused basically by modern age civilization project, witch supersized economical activities place in human being life. To avoid that new damages occur, there is the necessity of thinking on new politic and legal alternatives. The theoreticians whose researches the environmental law have made efforts to propose a new organizational paradigm: the Environmental Rule of Law. This model only will become truth if the State makes interventions to harmonize the economical activities to the environmental protection. In Brazil, the environmental law is considered a basic law since the promulgation of the Brazilian Constitution of 1988, and the environmental protection is also a fundamental principle from economical order. In this context, the objective of this thesis is to investigate principles and lines of direction for Brazilian environmental politics, that are in accordance with the new organization paradigm of Environmental Rule of Law. It approaches a new way to comprehend the relation between ecology and economy to understanding sustainable development. It introduces three directions to environmental politics: the one from Economical Analysis of Law and Environmental Economy, the one from eco-development, from Ignacy Sachs, and the last one, the Ecological Economy s point of view. Only the two last ones seemed to be compatible to Brazilian law system. Methodology used is dialectic, historical and comparative. Research techniques are bibliographical and documental one. Keywords: Environmental crisis, Ecology, Economy, Environment Rule of Law.
LISTA DE SIGLAS ABC AED APP CE CF CONAMA CONTAG COP CPT CUT ECO/92 EIA FETRAF GATT GEE IC ICMS INTERPOL ITR MDL MST OCDE ONU PNMA PNUMA SBPC SEMA SISNAMA STF STJ Academia Brasileira de Ciências Análise Econômica do Direito Área de Preservação Permanente Comércio de Emissões Constituição Federal Conselho Nacional do Meio Ambiente Confederação dos Trabalhadores na Agricultura Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do clima Comissão Pastoral da Terra Central Única dos Trabalhadores Conferência do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Estudo prévio de Impacto Ambiental Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar General Agreement of Tariffs and Trades Gases do Efeito Estufa Implementação Conjunta Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços Organização Internacional de Polícia Criminal Imposto Territorial Rural Mecanismos de Desenvolvimento Limpo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico Organização das Nações Unidas Política Nacional do Meio Ambiente Programa das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência Secretaria Especial do Meio Ambiente Sistema Nacional do Meio Ambiente Supremo Tribunal Federal Superior Tribunal de Justiça
SUMÁRIO INTRODUÇÃO...14 1 A RELAÇÃO HOMEM-NATUREZA ATRAVÉS DOS TEMPOS: UMA VISÃO TRANSDISCIPLINAR...19 1.1 Considerações iniciais sobre o conceito de meio ambiente, seus diversos aspectos e a abordagem deste trabalho...20 1.2 Da contemplação à pretensa dominação: a relação homem-natureza dos primórdios à modernidade...25 1.2.1 Precisamos de um pouco de história e filosofia?...25 1.2.2 O nomadismo: noventa e nove por cento da existência do gênero humano...29 1.2.3 A transição para a agricultura...31 1.2.4 A expansão da Europa e o surgimento do capitalismo...34 1.2.5 A Revolução Industrial...39 1.3 Pós-modernidade e crise ecológica: perspectivas para uma mudança de rota...43 2 A PROTEÇÃO JURÍDICA DO MEIO AMBIENTE NA ESFERA INTERNACIONAL...49 2.1 Uma análise crítica acerca do aparecimento tardio da ideia de proteção jurídica ao meio ambiente na contemporaneidade...49 2.2 O direito internacional ambiental pré-estocolmo...52 2.2.1 A pré-história do direito internacional ambiental moderno...52 2.2.2 O fortalecimento do ambientalismo...54 2.2.3 O Clube de Roma e o relatório Os Limites do Crescimento (1971)...56 2.3 O Direito internacional ambiental a partir da Conferência de Estocolmo (1972)...58 2.3.1O reconhecimento do direito ao meio ambiente como direito humano e direito fundamental...59 2.4 O Direito Internacional Ambiental da Conferência de Estocolmo (1972) à Conferência do Rio de Janeiro (1992)...64 2.4.1 O Relatório Nosso Futuro Comum (1987)...65 2.4.2 A Conferência do Rio de Janeiro Sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992)...67 2.5O Direito Internacional Ambiental pós- Rio/92: avanços, retrocessos, tendências e perspectivas...72
2.5.1 A Conferência de Joanesburgo (2002)...73 2.5.2 O caso do combate às mudanças climáticas: do Protocolo de Quioto aos desdobramentos atuais 75 2.5.2.1O Protocolo de Quioto (1998)...76 2.5.2.2 A Conferência de Copenhague COP-15 (2009) e perspectivas para a COP-16 (2010 México)...80 2.5.2.3 Perspectivas para o Direito Internacional Ambiental...84 3 A PROTEÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL AO MEIO AMBIENTE NO BRASIL...86 3.1 Um breve histórico da proteção ao meio ambiente nas Constituições brasileiras anteriores a 1988......86 3.2 Os primeiros passos rumo à proteção totalizante do meio ambiente no Brasil...94 3.2.1 A Lei de Política Nacional do Meio Ambiente...99 3.2.2 A Lei da Ação Civil Pública... 101 3.3 Os fundamentos do direito a um meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado no Brasil: da Constituinte à Constituição de 1988... 102 3.4 O meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado como direito fundamental na Constituição de 1988... 111 3.5 O meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado como dever fundamental na Constituição de 1988... 118 3.6 O Estado de Direito Ambiental brasileiro... 125 3.6.1. Princípios estruturantes do Estado de Direito Ambiental... 128 3.6.1.1 Princípio da precaução... 131 3.6.1.2 Princípio da cooperação... 135 3.6.1.3 Princípio da responsabilização... 138 4 A ORDEM AMBIENTAL ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988: PRINCÍPIOS E DIRETRIZES PARA POLÍTICAS SUSTENTÁVEIS... 144 4.1 Considerações gerais sobre a ordem econômica constitucional brasileira... 144 4.2 Princípios ambientais-econômicos do Estado de Direito Ambiental... 146 4.2.1 A defesa do meio ambiente como princípio fundamental da ordem econômica... 147 4.2.1.1 A intervenção estatal obrigatória na ordem econômica pela defesa do meio ambiente... 149
4.2.2 Princípio da função ambiental da propriedade... 152 4.2.3 Princípio do poluidor-pagador... 154 4.2.4 Princípio do protetor-recebedor... 158 4.2.5 Princípio da proibição do retrocesso ecológico... 161 4.2.6 Princípio do desenvolvimento sustentável... 164 4.2.6.1 Por uma nova pré-compreensão da relação entre ecologia e economia no Estado de Direito Ambiental... 170 4.3 Diretrizes para políticas ambientais econômicas sustentáveis... 176 4.3.1 A inadequação das proposições da Economia Ambiental Neoclássica e da Análise Econômica do Direito (AED)... 177 4.3.2 Os critérios de Ignacy Sachs... 181 4.3.3 A proposta da Economia Ecológica... 184 4.4 Desafios e perspectivas de efetivação do Estado de Direito Ambiental no Brasil... 191 CONCLUSÃO... 194 REFERÊNCIAS... 201
14 INTRODUÇÃO Ao longo da história humana, a natureza passou de entidade misteriosa e sagrada a um conjunto supostamente infinito de bens e materiais, os quais devem ser conhecidos, interpretados, transformados e instrumentalizados em todas as suas possibilidades de serventia e utilidade às pretensamente ilimitadas necessidades de conforto e bem-estar humano. O triunfo da ideologia do progresso na modernidade contribuiu para uma rápida transformação do modo de vida dos indivíduos e de sua organização econômica e social. Desse modo, se alcançou altos níveis de utilização dos recursos naturais do planeta, em alguns casos chegando ao sério comprometimento ou até mesmo à exaustão de determinados ecossistemas. O referido contexto permite que se fale em uma crise ambiental, de patamares jamais documentados na história terrestre: florestas devastadas, poluição atmosférica, chuvas ácidas, grandes áreas em processo de desertificação, aquecimento climático global, montanhas de lixo acumuladas nos oceanos e a redução da qualidade e da diversidade da fauna e da flora, em última instância, são algumas consequências, dentre outras igualmente graves, de atividades econômicas exercidas de maneira desregrada, o que compromete, por fim, a qualidade de vida e a saúde dos seres vivos, ameaçando a sua permanência na Terra. A partir dessa alarmante conjuntura, surge uma inquietação no que concerne à perpetuação da vida humana no atual estágio civilizatório, conhecido como pós-modernidade, dada necessidade de ruptura com a herança das insustentáveis convicções filosóficas, éticas e morais de respeito do ser humano pela totalidade do sistema natural que lhe é superior e que, por isso mesmo, o serve. Estas questões são precedentes e fundamentais para avaliar quais as perspectivas, desafios e que postura deverá ser adotada pelo sistema jurídico diante da necessidade de elaboração e aperfeiçoamento de um novo paradigma organizacional e até mesmo civilizatório que permita a concretização de um ambiente sadio, integrado e ecologicamente equilibrado. Para se construir uma nova racionalidade ambiental, é necessário que haja uma reestruturação do tratamento jurídico e político do meio ambiente tanto em nível internacional, como nacional, no âmbito de cada Estado, até chegar nas organizações sociais locais mais elementares. Afinal, os danos ambientais ocorrem em situações de tempo e espaço
15 determinados, mas, ao serem observados em toda sua extensão e gravidade, podem desconhecer as fronteiras territoriais e políticas estabelecidas pelo homem. Em nível internacional, cada vez mais se percebe a necessidade de se investir em práticas de sensibilização e cooperação para solucionar as dificuldades de conciliação de interesses econômicos entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento. No plano nacional, especificamente falando do caso brasileiro, vem se consolidando a defesa de um novo modelo de Estado, que assimile os pleitos de liberdade e justiça social e insira em suas prioridades as preocupações ambientais, a ponto de ser identificado como um Estado de Direito Ambiental. Estas diretrizes de proteção ambiental nacional devem partir da Constituição e irradiar-se para todos os níveis do ordenamento jurídico, até os atos normativos mais simples, bem como por todos os entes federativos. O projeto de ecologização da ordem jurídica nacional deve incluir fundamentalmente uma reorientação e um reposicionamento das atividades econômicas, inclusive mediante uma atuação estatal presente, sem o que jamais haverá condições de se incorporar concretude ao discurso de proteção ambiental. Nesse sentido, este trabalho tem por objetivo geral investigar os princípios e diretrizes de políticas ambientais na ordem econômica brasileira, no sentido de identificar a adequação do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro ao modelo do Estado de Direito Ambiental. Como é amplamente conhecido da comunidade jurídica, a Constituição de 1988 prevê, em seu artigo 225, o direito-dever fundamental ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, bem como, em seu artigo 170, inciso VI, a proteção do meio ambiente como um princípio fundamental da ordem econômica. O texto constitucional parece ter incorporado, diga-se, uma preocupação relativamente pacificada na sociedade brasileira atual. Não se encontra com facilidade cidadãos ou grupos que sejam aberta e gratuitamente contrários à proteção ambiental. No entanto, no que diz respeito às propostas de resolução de conflitos que envolvam a proteção do meio ambiente e o desenvolvimento ou crescimento econômico, já se torna mais fácil perceber que existe uma série de diferenciações quanto à forma e à intensidade em que esta proteção ambiental é considerada adequada.
16 O discurso do desenvolvimento sustentável perpassa hoje por diversos matizes ideológicos e ganhou, assim, uma pluralidade de significações, por vezes até contraditórias entre si. Na tentativa de evitar a proliferação de discursos e práticas ambientais vazias, tornouse também um desafio compreender efetivamente o que significa a expressão ora em comento, bem como o que se deve esperar das políticas interventivas de um Estado de Direito Ambiental. Para tentar elucidar estas questões, que se relacionam intimamente com a própria finalidade de um Estado de Direito Ambiental, se faz imprescindível voltar o olhar para como se dá a relação entre ecologia, direito e economia, percepção esta que parece ter sofrido uma série de distorções concomitantes ao projeto civilizatório da modernidade. A partir disso, acredita-se ser possível propor diretrizes de políticas ambientais aptas a garantir a existência de uma vida digna e feliz, com desenvolvimento das plenas potencialidades humanas para as futuras gerações. Para alcançar o pretendido, faz-se uso da abordagem dialética, a qual se considera adequada para os trabalhos da grande área das ciências sociais em geral, tendo em vista que permite relacionar fenômenos, bem como refletir criticamente acerca dos diferentes entendimentos sobre o objeto estudado. Os métodos de procedimento eleitos são o histórico e o comparativo. O primeiro permite investigar as causas e conseqüências, e enfim, os contextos em que aconteceram as grandes transformações na compreensão da natureza através dos tempos, bem como as situações que desembocaram no processo gradativo de incorporação do meio ambiente enquanto objeto de proteção jurídica, até se chegar ao paradigma do Estado de Direito Ambiental, para daí proceder a análises que levem a uma maior aproximação da realidade, quanto às perspectivas de efetividade do direito ambiental; pelo segundo, contrapõem-se as produções doutrinárias acerca dos assuntos estudados, no sentido de verificar, em última instância, as concepções mais coerentes para a harmonização do exercício das atividades econômicas à proteção do meio ambiente. As técnicas de pesquisa perpassam prioritariamente por um exame bibliográfico transdisciplinar, através de consulta à literatura especializada nacional e estrangeira, em áreas afins e diversificadas, como: História Ambiental, Ecologia Política, Filosofia, Ética, Sociologia, Antropologia, Economia, Direito Internacional Ambiental, Direito Constitucional, Direito Ambiental, Direito Econômico, Direito Tributário Ambiental, dentre outros; também se utilizou de consultas a documentos oficiais, como: o Anteprojeto Afonso Arinos, os anais
17 da Assembleia Nacional Constituinte de 1986/1987, as Constituições brasileiras revogadas, algumas leis ordinárias concernentes à matéria; informações, dados e notícias no endereço eletrônico do Ministério do Meio Ambiente, da Presidência da República, do Congresso Nacional e do Superior Tribunal de Justiça e das Nações Unidas, dentre outros; pesquisas jurisprudenciais nos endereços eletrônicos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, com a finalidade de exemplificar como vem se dando a interpretação e a aplicação dos princípios de direito ambiental e de direito ambiental econômico. Como se vê, trata-se de uma pesquisa prioritariamente qualitativa, que conta com as fases exploratória, descritiva e explicativa. O trabalho se encontra dividido em quatro capítulos. O primeiro inicia com uma breve exposição acerca do conceito de meio ambiente e a abordagem do trabalho e faz um resgate dos períodos mais marcantes da relação do homem com a natureza através dos tempos, envolvendo o nomadismo, a invenção da agricultura, o surgimento do capitalismo, a Revolução Industrial e a pós-modernidade, para contextualizar o atual modelo civilizatório em crise dentro de um conjunto de escolhas culturalmente desenhadas, e não como o modo de vida para o qual os humanos estão natural e irreversivelmente programados. Desse modo, acredita-se lançar as bases que permitirão a compreensão não apenas da necessidade, mas também da possibilidade de uma mudança de rota. No segundo capítulo, passa-se a uma análise acerca do surgimento (tardio) da proteção jurídica internacional do meio ambiente, do desenvolvimento de alguns conceitos e elementos fundamentais para a consolidação da proteção jurídica do meio ambiente, bem como dos principais eventos e documentos internacionais, que influenciaram a incorporação da proteção jurídica ambiental no Brasil. Posteriormente, indicam-se algumas dificuldades ainda não superadas pelo direito internacional ambiental, relacionadas à defesa de interesses econômicos de determinados grupos de países e, finalmente, aponta-se para as perspectivas futuras desta área do direito. O terceiro capítulo inicia com a indicação doutrinária da existência de fases da proteção ambiental nacional, seguida de um breve histórico do tratamento do meio ambiente nas constituições brasileiras anteriores a 1988. Posteriormente, se faz uma contextualização do surgimento da proteção globalizante do meio ambiente, com considerações acerca da intensificação do processo de industrialização brasileiro e do agravamento da crise ambiental. Na sequência, estudam-se a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente e a Lei da Ação Civil Pública. Logo após, dá-se início aos estudos da constitucionalização do meio ambiente no
18 Brasil e do movimento ocorrido entre a Constituinte e a Constituição. Ao fim, caracteriza-se o meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado como um direito e um dever fundamental e apresenta-se o estado brasileiro como um Estado de Direito Ambiental, com seus respectivos princípios estruturantes. No quarto e último capítulo discutem-se o conteúdo dos princípios e as diretrizes de políticas ambientais econômicas adequadas ao Estado de Direito Ambiental brasileiro. Inicialmente, faz-se uma explanação geral acerca dos fundamentos da ordem econômica nacional, para depois passar à apresentação dos princípios da ordem ambiental econômica brasileira. Em seguida, procede-se a um estudo acerca das diversas pré-compreensões existentes acerca da relação entre ecologia e economia e da adequação ou não de cada uma delas ao paradigma do Estado de Direito Ambiental brasileiro. Finalmente, enunciam-se os marcos doutrinários que relacionam economia e meio ambiente, para igualmente verificar o grau de harmonização das diretrizes de políticas ambientais econômicas propostas por cada um deles com o modelo estatal adotado em 1988. A partir disso, fazem-se algumas considerações acerca dos desafios e perspectivas de concretização do direito-dever fundamental ao meio ambiente no Brasil. Acredita-se, pois, na relevância científica, social e jurídica desta pesquisa, porque é premente o interesse que a cerca, já que sua finalidade envolve o pressuposto básico da existência, corolário necessário do próprio direito à vida, relacionando-se também à efetivação da dignidade humana, núcleo de todos os outros direitos fundamentais, através de valores solidários, que buscam alcançar critérios de equilíbrio segundo os quais toda a coletividade presente e futura possa continuar existindo.
19 1 A RELAÇÃO HOMEM-NATUREZA ATRAVÉS DOS TEMPOS: UMA VISÃO TRANSDISCIPLINAR A história da humanidade pode ser vista de diversas formas, a depender do ângulo e da postura do observador. Por vezes, pode aparecer como um processo de constante aprimoramento e evolução, ou como uma série de descaminhos e descontinuidades que parecem levar a uma autodestruição. Quando se olha sob a perspectiva do relacionamento dos seres humanos com a natureza, é possível perceber que inicialmente, verifica-se um vínculo de reverência, sacralidade e até temor. As leis da natureza funcionam em plena harmonia com o ritmo de vida e com o regramento social e jurídico das populações. Passados alguns milênios, a postura é absolutamente diversa: confiante no progresso tecnológico e nos avanços sobre o entendimento de alguns mecanismos de funcionamento do mundo natural, o homem assume inequivocamente a posição de domínio, achando-se capaz de controlar, transformar e direcionar os recursos naturais de acordo com suas vontades, diversas vezes nomeadas como necessidades. A normatividade das sociedades humanas, então, se fragmenta: tem-se leis morais, que não coincidem necessariamente com as leis jurídicas, que se adequam quase sempre à ordem econômica, que, por sua vez, subordina e corrompe a política, em uma lógica completamente diferenciada daquele período inicial. De tal forma isto aconteceu que, alguns, preocupados com sinais de exaustão da natureza antes divinizada transformaram-na em objeto de um amplo conjunto de políticas públicas, normas jurídicas municipais, estaduais e nacionais e de tratados internacionais que, contudo, sofrem de um sério problema de efetividade. Parte-se do pressuposto de que referido problema não decorre somente de fatores técnicos; diante do breve choque de concepções históricas apresentado, bem como da superação do desafio do purismo jurídico kelseniano, percebe-se a necessidade de proceder a uma investigação crítica e totalizante da relação homem natureza, em uma tentativa de compreender melhor as alternativas adequadas ao período de transição em que se vive atualmente, frequentemente denominado de pós-modernidade. Neste sentido, este primeiro capítulo se destina a percorrer a história da relação homem-natureza através dos tempos, para tentar lançar luzes sobre o contexto e a
20 profundidade da problemática enfrentada. Como se trata basicamente do momento inicial de delimitações, será necessário, antes mesmo de proceder à análise pretendida, resolver uma prévia questão de ordem, através de uma incursão no conceito de meio ambiente que será utilizado. 1.2 Considerações iniciais sobre o conceito de meio ambiente, seus diversos aspectos e a abordagem deste trabalho 1 O termo meio ambiente possui uma ampla significação. Há uma pluralidade de conceituações relativas a esta expressão que foram forjadas nas últimas décadas 2, sem que se tenha alcançado um consenso científico-doutrinário. De acordo com Edis Milaré, a verdade é que se está a tratar de uma daquelas categorias cujo conteúdo é mais facilmente intuído que definível, em virtude da riqueza e complexidade do que encerra 3. Assim, já de início é preciso ressalvar que não é o objetivo central deste trabalho adentrar aprofundadamente nesta problemática, que, por si, exigiria esforços de grande magnitude. O que se pretende é tão-somente fixar as bases iniciais da discussão a ser desenvolvida. Feitas estas considerações, que expressam as limitações e as restrições oriundas da determinabilidade da expressão meio ambiente, resignamo-nos a reconhecer a necessidade de fazê-lo, ainda que de forma aproximada, a fim de utilizar uma definição contextualizada, adequada ao objeto a ser por ora estudado. A palavra meio, oriunda do latim, mediu, tem como um de seus significados: lugar onde se vive, com suas características e condicionamentos geofísicos; ambiente 4 ; já ambiente, cuja grafia portuguesa se manteve exatamente como a latina, é o aquilo que cerca ou envolve os seres ou as coisas; meio ambiente 5. Por fim, a definição da expressão meio 1 Cf. MENDES, Ana Stela Vieira; FROTA, Henrique Botelho. Desenvolvimento urbano e o desafio da proteção do meio ambiente em Fortaleza-Ce. In: Marcos Wachowicz; João Luis Nogueira Matias. (Org.). Direito de propriedade e meio ambiente: novos desafios para o século XXI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010. 2 VIEIRA, Paulo Freire. Meio ambiente, desenvolvimento e planejamento. In: Meio ambiente, desenvolvimento e cidadania: desafios para as ciências sociais. Vários autores. 2. ed. São Paulo: Cortez; Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1998, p 49. 3 MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: Doutrina jurisprudência glossário. 4 ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005., p. 98. 4 BUARQUE DE HOLANDA, Aurélio. Novo dicionário da Língua Portuguesa. 2 ed. 36 reimp. rev. e ampl. Rio de Jameiro: Nova Fronteira, 1997, p. 1113. 5 Ibid., p. 101-102.