Paris França.indd 11

Documentos relacionados
Versão COMPLETA. O Ribeiro que queria Sorrir. PLIP004 Ana Cristina Luz. Ilustração: Margarida Oliveira

Paz. De vez em quando, procura um espaço de silêncio. O barulho excessivo é prejudicial.

RETRATO DE FAMÍLIA. Além disso, tenho dois primos e a minha mulher tem quatro, mas com eles só costumamos estar no Natal.

O criador de ilusões

Projeto Identidades. Experiência de vida. Jacqueline Alves

Ilustrações de Luís Valente

Que Grande Abóbora Mimi! Valerie Thomas e Korky Paul

Era uma vez uma menina que se chamava Alice. uma tarde de Verão, depois do almoço, Alice adormeceu e teve um sonho muito estranho.

Exame Unificado de Acesso (Línguas e Matemática) às Quatro Instituições do Ensino Superior de Macau. Exames e Resposta do Ano 2017/2018.

ASSEMBLEIA DE CCA 2016 Setembro tem Assembleia? tem sim Senhor!!!

1 ESTRATÉGIAS DE CAMUFLAGEM PAULA TALMELLI

AGRUPAMENTO DE ESCOLAS DE RIO DE MOURO PADRE ALBERTO NETO QUESTIONÁRIO

O Menino NÃO. Era uma vez um menino, NÃO, eram muitas vezes um menino que dizia NÃO. NÃO acreditam, então vejam:

ESTAVA NA ALTURA CERTA PARA AUMENTAR O PEITO

Este País É Uma Anedota

Tens alguma bagagem? Sim, tenho a minha mochila e um saco grande. Bom, eu fico com o saco e tu ficas com a mochila. Está bem?

Uma vida que floresce

Conhece a Ana. // Perfil

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SUPERIOR DE TECNOLOGIA EM JOGOS DIGITAIS

A Procura. de Kelly Furlanetto Soares

Jules Joseph Chamsou era um gato com catorze riscas e três nomes, da família felina Tabby (o seu nome completo era, portanto, Jules Joseph Chamsou

ESTUDO DIRIGIDO - 4º Ano EF- JULHO/ º ANO: DATA DE ENTREGA: Queridos alunos e alunas

Educação sexual e afetiva

PE Episódio Oferta Nível I Iniciação (A1-A2) Texto: Marta Costa e Catarina Stichini Voz: Catarina Stichini BEIJO OU NÃO BEIJO?

Tens seis anos, não é?

Nota prévia (Importante ler!)

Sérgio Mendes. Margarida e o lobo. Ilustrações de Ângela Vieira

Matadero, o lugar mais legal de Madrid

LÍNGUA PORTUGUESA I EMI 1º ANO. Prof. Andriza

Suelen e Sua História

ndice Um Convite Especial 9 O Baile da Primavera 25 O Feiti o Malvado 37 Voando nas Alturas! 55 Ca a às Abelhas das Bolhas! 65

Perdido. Na Montanha. Uma história verídica! Sejam bem-vindos ao Parque Nacional de Yosemite. Vão passar algunsdias conosco?

CAPÍTULO UM. Há um contentor por trás da nossa escola. Este é o meu amigo Assis a saltar lá para dentro.

A DOCUMENTAÇÃO DA APRENDIZAGEM: A VOZ DAS CRIANÇAS. Ana Azevedo Júlia Oliveira-Formosinho

COLÉGIO MARQUES RODRIGUES - SIMULADO

ainda não Luciano Cabral prostituta, vinte e cinco anos cliente, sessenta anos

De vez. Apresentação dos livros infantis De Onde Venho? e Por Quem Me Apaixonarei? Miguel Vale de Almeida MIGUELVALEDEALMEIDA.

Evangelismo de Impacto.

coleção Conversas #21 - ABRIL e t m o se? Respostas perguntas para algumas que podem estar passando pela sua cabeça.

TANTRA NEPALES PARA A BOA SORTE.

Movimentos Básicos de Guitarra 1 - O SLIDE

A FAMÍLIA E OS ESTRANGEIROS

ESPAÇOS CÊNICOS. Teatro de Swan, Victoria & Albert Museum, Londres

Curso de Espanhol em Madrid: experiência de uma leitora

Certo dia, chegou uma mensagem do rei, informando que sua filha, a princesa, escolheria o futuro esposo entre os jovens do reino.

Até que surgiu o dia certo, a hora certa em que todas estávamos disponíveis: a visita ao atelier transformouse num almoço leve e numa conversa tarde

O sapo estava sentado à beira do rio. Sentia-se esquisito. Não sabia se estava contente ou se estava triste

A MENINA QUASE PERFEITA

FICHA 2 QUE ROUPAS DEVEMOS USAR? 60:00. Resultados pretendidos de aprendizagem. Questão-Problema. Materiais. Pré - Escolar 1.º Ano 2.

Desenvolvimento - 0 a 6 meses

Alain Ducasse gastronomia Toscana Tenuta La Badiola Ducasse Leading Hotels of the World Casa Badiola de Golf

da quando me chama de palito de fósforo e ri de um jeito tão irritante que me deixa louco da vida, com vontade de inventar apelidos horripilantes

Exigente era p ra ele ter visitas Visitas que o deixavam ficar mal Mal por tropeçar nas suas pernas e partir Partir chávenas de chá Chá das cinco

Às vezes me parece que gosto dele, mas isso não é sempre. Algumas coisas em meu irmão me irritam muito. Quando ele sai, por exemplo, faz questão de

Caderno 1. I. Compreensão do oral. Ficha de Avaliação trimestral de Português 2.º Ano 2.º Período

A MANIA DAS CONDIÇÕES

TITIRITESA 2º ano. Eu acho que as pessoas. podem casar como. quiserem, rapaz com rapaz, rapariga com rapariga ou. rapariga com rapaz.

Responde ao seguinte questionário, relembrando o que leste em O Alquimista, da autoria de Paulo Coelho

4 de setembro. * Joeline Hammond, caso não te lembres.

1 o ano Ensino Fundamental Data: / / Nome: AMIGOS

Produção Textual. Foco Narrativo. Profa. Raquel Michelon

Parte Um Minha_Vida_Agora.indd 7 Minha_Vida_Agora.indd 7 11/06/ :19:05 11/06/ :19:05

365Historias 09. Mude-se!

Transcrição da Entrevista

O pombo tem um automóvel

PERNILLA STALFELT UM LIVRO SOBRE TOLERÂNCIA. Fernanda Sarmatz Åkesson. Tradução de

O Tigre à Beira do Rio

Canguru sem fronteiras 2005

Maria Helena da Veiga Sicupira Nunes Ferreira Administração PUC-Rio RELATÓRIO DE VIAGEM: 1. Apresentação Pessoal

Por vontade expressa da autora, a presente edição não segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

CÃO FUNCIONAL NÍVEL 02 Idade mínima 15 meses

História de Luciane Lopes Pohlmann e Amanda

COMEÇA JÁ A LER LANÇAMENTO MUNDIAL!

ANEXO 29 Exemplos de respostas dos alunos ao inquérito Anexo 11. Nº de alunos

CARLOS MOURÃO (TEXTO) KILMA COUTINHO (ILUSTRAÇÕES E ARGUMENTO)

O Amor se resume em se sentir bem, especial, incrivelmente Feliz. Um estado espiritual destinado a trazer muitas coisas boas. As vezes ele existe em

Olá! Como está? 1. Complete com os artigos definidos: o / a / os / as. 2. Complete com: de / do / da / dos / das.

Mariana Martins e Rita Pereira Professora Cláudia Barros

CÃO FUNCIONAL NÍVEL 01 Idade mínima 15 meses EXECUÇÃO DA PROVA. Amplo e seguro, sendo sujeito a análise e aprovação deste conselho

OS XULINGOS ERAM PEQUENOS SERES, FEITOS DE MADEIRA. TODA ESSA GENTE DE MADEIRA TINHA SIDO FEITA POR UM CARPINTEIRO CHAMADO ELI. A OFICINA ONDE ELE

BANCO DE QUESTÕES - PRODUÇÃO TEXTUAL - 4º ANO - ENSINO FUNDAMENTAL

Lenda. da Lagoa das Sete Cidades

É verdade! Podemos. E IREMOOOOOOOOS!

Projeto Pitanguá Sugestão de Avaliação de Português 1ª série (2º ano) 4º bimestre

Eu, Pedro Henrique A. nasci em 20 de outubro de 2004 na maternidade de Itapetininga, tenho 10 anos e gosto de viajar, ir à escola, participar dos

Gosto muito de sopas e saladas coloridas!

Para o meu pai, que era um contador de histórias e sabia provocar o riso. Sinto tanto a tua falta. S.Y.

PROVA DE LÍNGUA PORTUGUESA

Godofredo e Geralda sentados na mesa no centro do palco.

NETWORKING: DESENVOLVA SUA CARREIRA CRIANDO BONS RELACIONAMENTOS

Unidade Portugal. Ribeirão Preto, de de AVALIAÇÃO DO CONTEÚDO DO GRUPO IV 2 o BIMESTRE. O quintal da dona Lula

Como alcançar seu Pico. Baseado no livro Picos e Vales de Spencer Johnson, M.D

Identificação. ML01 Duração da entrevista 21:39 Data da entrevista Ano de nascimento (Idade) 1953 (59) Local de nascimento/residência

Aos meninos da Pré-Escola fizeram a seguinte pergunta: As únicas possíveis respostas são esquerda ou direita

O Senhor Vento queria organizar uma. festa. Uma festa que ficasse na. memória de todos.

A conta-gotas. Ana Carolina Carvalho

uma marca portuguesa com certeza

Transcrição:

Parte I Paris, França é emocionante e tranquila. Eu tinha só quatro anos quando cheguei pela primeira vez a Paris, onde falei francês, onde me tiraram fotografias, onde fui à escola e onde comi sopa ao pequeno almoço e perna de carneiro e espinafres ao almoço, sempre gostei de espinafres, e havia um gato preto que saltava para cima do ombro da minha mãe. Era mais emocionante do que tranquilo. Os gatos não me incomodam, mas não gosto que me saltem para cima do ombro. Há muitos gatos em Paris e em França e podem fazer o que quiserem, sentar se em cima das hortaliças ou dos artigos de mercearia, ficar em casa ou sair. Considerando a quantidade de gatos existente, é extraordinário que haja tão poucas brigas entre eles. Há duas coisas que os animais franceses não fazem, os gatos não brigam nem uivam muito, e os frangos não se enervam quando atravessam uma estrada, se começaram a atravessá la continuam em frente, como fazem também os franceses. É uma coisa que qualquer pessoa que conduza em Paris precisa de saber. Quando as pessoas descem do passeio para Paris França.indd 9

10 Gertrude Stein atravessar ou quando andam noutro lado qualquer, fazem no a um certo ritmo e esse ritmo mantém se e nada as sobressalta, nada as assusta, nada as faz acelerar ou abrandar, nem mesmo o ruído mais violento ou inesperado as faz recuar de um salto, perturbar o seu passo ou mudar de direção. Se virmos nas ruas de Paris um transeunte recuar de um salto ou simplesmente saltar, podemos ter a certeza de que se trata de um estrangeiro e não de um francês. É tranquilo e emocionante. Portanto estive em Paris um ano dos quatro para os cinco anos e depois disso voltei para a América. Uma criança não esquece mas acontecem outras coisas. Um pouco mais tarde em San Francisco, houve mais francês. Bem vistas as coisas qualquer pessoa, quer dizer, qualquer pessoa que escreva está interessada em viver no interior de si própria para contar o que há dentro de si. É por isso que os escritores têm de ter dois países, o país a que pertencem e aquele onde realmente vivem. O segundo é romântico, está separado deles, não é real mas existe realmente. Foi o caso dos vitorianos ingleses com Itália, o caso dos americanos de começos do século xix com Espanha, o caso dos americanos de meados do século xix com Inglaterra, o caso da minha geração americana de finais do século xix com França. É verdade que por vezes há quem descubra o seu próprio país como se fosse o outro, um exemplo recente disso mesmo é o da descoberta da América por Louis Bromfield, e houve também alguns casos assim entre os escritores ingleses, como a descoberta da Inglaterra por Kipling, mas, de um modo geral, o país onde desejamos ser livres é o outro país e não aquele ao qual realmente pertencemos. Paris França.indd 10

Paris França 11 Em San Francisco foi fácil que fosse a França. É claro que podia ter sido a Espanha ou a China, mas realmente em San Francisco uma criança sabia realmente demasiado da Espanha e da China, e a França era interessante enquanto a Espanha e a China eram familiares e quotidianas. A França não era quotidiana e só aparecia de vez em quando. Começou por aparecer através de diferentes livros, Jules Verne e Alfred de Vigny e aparecia nas roupas da minha mãe e nas luvas e nos gorros e regalos de pele de foca e nas caixas dentro das quais chegavam. Havia nessas coisas o cheiro de Paris. E depois durante muito tempo foi muito fácil esquecer a França. Aquilo de França de que me lembro a seguir são os Henry Henry e Sarah Bernhardt, o Panorama da Batalha de Waterloo e o Homem com Uma Enxada de Millet. O Panorama da Batalha de Waterloo. Uma das coisas mais agradáveis que podem acontecer àqueles de entre nós que escrevem ou pintam é ter o milagre de cada dia. Porque este acontece. Eu tinha à volta de oito anos quando me aconteceu com o Panorama da Batalha de Waterloo. Um panorama pintado por um francês, pergunto me se não seria interessante ter um agora, um desses enormes panoramas em que ficávamos numa plataforma central rodeados a toda a volta e por todos os lados por uma pintura a óleo. Porque ficávamos completamente cercados por uma pintura a óleo. Foi então que compreendi pela primeira vez a diferença entre um quadro e o campo aberto. Compreendi que um quadro é sempre uma superfície plana e um campo aberto nunca o é, Paris França.indd 11

12 Gertrude Stein e que o campo aberto é feito de ar e um quadro não tem ar, o ar é substituído por uma superfície plana, e tudo o que num quadro imita o ar é ilustração e não arte. Devo tê lo sentido muito intensamente enquanto ali estava de pé na plataforma, rodeada por todos os lados por uma pintura a óleo. E depois houve Sarah Bernhardt. Em San Francisco havia muitos franceses, e um teatro francês, e era natural conhecerem se raparigas e rapazes pequenos que em casa muito naturalmente falavam francês. E por isso quando um ator francês ou uma atriz francesa vinham a San Francisco acabavam sempre por ficar bastante tempo. Gostavam de ali estar e quando estão nalgum lado as atrizes ou os atores evidentemente representam, por isso era natural que se falasse muito francês no teatro. Foi então que descobri muito naturalmente que o francês é uma língua falada e o inglês uma língua escrita. Em França, sempre que alguém escreve alguma coisa e quer dá la a conhecer, lê a em voz alta. Para quem escreve em inglês, é natural passar o manuscrito às outras pessoas e deixá las lê lo, enquanto para quem escreve em francês é natural lê lo em voz alta. O francês é uma língua falada, o inglês realmente não. Sarah Bernhardt fez me ver os braços delgados das francesas. Quando cheguei a Paris e vi as pequenas midinettes e as pequenas montmartroises, todas os tinham assim. Só muitos anos mais tarde, depois de a moda das saias compridas que se usavam nesse tempo ter mudado, descobri as pernas robustas que acompanhavam esses braços delgados. É isso, as pernas robustas, que faz dos franceses tão bons soldados, os braços delgados e as pernas robustas, se estão a ver onde quero chegar, é qualquer coisa de tranquilo e emocionante. Paris França.indd 12

Paris França 13 É isso que faz todos os franceses capazes de subir como sobem as encostas dos montes a cavalo nas suas bicicletas, não há encosta tão íngreme que não sejam capazes de escalar pedalando lentamente, os homens e as raparigas e as crianças pequenas, as pernas robustas e os braços delgados. A outra coisa francesa que havia em San Francisco era a família dos Henry Henry. Era esse o seu nome. Havia um pai e uma mãe que se chamavam Monsieur e Madame Henry e havia cinco filhos Henry Henry e o filho mais velho tocava violino. Íamos muitas vezes a casa deles à tarde e ficávamos para jantar e a seguir dançávamos os filhos Henry e nós, ao som da música francesa do violino. E para o jantar havia sempre um assado de carneiro, um gigot como eles diziam, cozinhado da mesma maneira de quando eu estava na escola em Paris e com batatas com manteiga a acompanhar, batatas com um ar limpo, menos escuras do que as cozinhadas à americana. Mas o mais emocionante eram as facas e os garfos. As facas tinham sido tão amoladas que a lâmina era fina como a de uma adaga, ligeiramente revirada na ponta e os garfos tão leves que quando os premíamos com mais força se entortavam. Essas facas e esses garfos eram a coisa mais apaixonadamente francesa que eu conheci e posso até dizer que alguma vez conheci. Depois havia o Homem com Uma Enxada de Millet. Eu nunca tinha querido realmente ter a fotografia de um quadro antes de ter visto o Homem com Uma Enxada de Millet. Tinha doze ou treze anos, lera o Eugénie Grandet de Balzac, e fazia alguma ideia do que eram os campos franceses mas o Homem com Uma Enxada tornou tudo diferente, tornava os campos solo e não país, e a França desde então passou a ser isso para mim. A França é feita de solo, de terra. Paris França.indd 13