Ninguém faz samba só porque prefere : a origem divina das artes, de Píndaro a João Nogueira

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International Studies on Law and Education 9 set-dez 2011 CEMOrOc-Feusp / IJI-Univ. do Porto Ninguém faz samba só porque prefere : a origem divina das artes, de Píndaro a João Nogueira Prof. Dr. Roberto C. G. Castro 1 Resumo: Este artigo analisa uma ideia presente na cultura ocidental desde suas origens gregas até hoje: as artes têm origem num poder criador autônomo, independente do artista, que ao compor sua obra serve como um mensageiro desse poder. Essa ideia está presente na poesia de Píndaro, em textos da Bíblia e também na obra do compositor brasileiro João Nogueira. Com base na teologia negativa do Pseudo Dionísio Areopagita, observa-se que esse poder criador é inacessível ao entendimento humano. Palavras Chave: história da arte filosofia da arte píndaro joão nogueira samba pseudo dionísio areopagita bíblia. Abstract: This article examines an idea present in Western culture since its Greek origins to today: the arts have their origin in an autonomous creative power, independent from the artist, that in composing his work serves as a "messenger" of that power. This idea is present in the poetry of Pindar, in the Bible and in the work of Brazilian composer João Nogueira. Based on the negative theology of Pseudo-Dionysius Areopagite, it is observed that this creative power is inaccessible to human understanding. Keywords: Philosophy of Arts - Pindar - João Nogueira - Samba - Mystic - Pseudo-Dionysius Areopagite. Pensar sobre a origem da arte é um exercício por demais fascinante. Saber o que faz, fundamentalmente, com que um artista conceba uma sinfonia, uma escultura, um romance ou uma pintura de tal modo que encante seus ouvintes, leitores e espectadores pode revelar interessantes e pouco explorados aspectos da realidade humana. Ao longo da história, houve pensadores que buscaram elucidar essa origem. O filósofo alemão Karl Marx (1818-1883), por exemplo, considera a arte como mais um elemento da supraestrutura social, determinado pela infraestrutura econômica. Para ele, as condições materiais em que o artista está inserido é que o levam a produzir obras de cunho espiritual. No Prefácio de Para a crítica da economia política, ele afirma: O modo de produção da vida material é que condiciona o processo da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência 2. Ou seja, para Marx, a criação artística não se relaciona, em última instância, com algo que o artista tem dentro de si e o faz criar, muito menos com um dom dado por uma entidade superior, mas com as forças econômicas, estas, sim, determinantes de toda a produção humana, seja material ou espiritual. Píndaro, poeta e profeta Mas, ao lado dessa visão marxista, há uma tradição, muito mais antiga, que permeia o pensamento ocidental sobre a questão. Ela está presente já em Píndaro (518-438 a.c.), um dos maiores poetas da Antiguidade clássica. Segundo Píndaro, a arte é concedida pelas Musas, filhas de Mnemosine a memória e de Zeus. Essa ideia se encontra ao longo de toda a obra preservada de Píndaro, composta em forma de odes 1 Doutor em Filosofia da Educação pela USP e professor das Faculdades Integradas Alcântara Machado (FIAM), em São Paulo. Contato: rccastro@usp.br. 2 Karl Marx, Para a crítica da economia política, Prefácio, in Obras escolhidas, tomo I, Edições Avante, Lisboa, 1982, p. 530-531. 65

aos vencedores dos jogos atléticos realizados na Grécia antiga. Especialmente, ela está no Hino a Zeus, um fragmento da poesia de Píndaro identificado tardiamente. No Hino a Zeus, Píndaro conta que, após ter organizado o caos e formado o cosmos, Zeus resolve mostrar sua criação aos outros deuses do Olimpo. Estes, diante da inegável exuberância do mundo os céus, os mares, as montanhas, ficam encantados com tamanha demonstração do poder de Zeus. Um dos deuses, porém, faz uma observação que revela um defeito no cosmos: o homem, que Zeus colocou na terra, é um ser que esquece, um ser que não percebe sua origem divina e que, portanto, não dá a devida glória aos deuses, deixando-se levar pela soberba e pela autosuficiência. Para consertar esse erro, Zeus se une a Mnemosine e com ela tem nove filhas, as Musas, que, segundo a mitologia grega, estão relacionadas às artes 3. Elas são enviadas por Zeus à terra com a missão específica de, através de suas artes, lembrar os homens das grandes questões da existência, que ele tende a esquecer entre elas, sua origem divina. Comentando o Hino a Zeus de Píndaro, Jean Lauand 4 afirma que, de acordo com esse mito, o homem, agraciado pela divindade com a chama do espírito, foi criado mal feito, mal acabado, pois tende ao embotamento, à insensibilidade, ao esquecimento. As Musas (filhas de Mnemosyne), as artes, são já uma primeira tentativa de Zeus para remediar essa situação: elas foram dadas pela divindade ao homem como companheiras, para ajudá-lo a lembrar-se. 5 É a partir dessa constatação a de que o homem é um ser que esquece que se edifica toda a educação ocidental, acrescenta Lauand. E é por essa mesma razão que os grandes pensadores da tradição ocidental consideravam as descobertas filosóficas não tanto um deparar-se com algo novo ou insólito, mas, precisamente, des-cobertas: trazer à tona algo já visto, já sabido, mas que, por essa entrópica tendência para o esquecimento, não permanecera na consciência. 6 Sem se referir ao Hino a Zeus, Jacqueline Duchemin 7 concorda que, em Píndaro, as Musas têm por função inspirar os poetas. Estes são portadores de uma mensagem que deve ser transmitida aos homens, razão por que a autora considera a obra de Píndaro uma arte marcada por uma estreita ligação entre o dom da poesia e o dom da profecia. Que a inspiração, aos olhos de Píndaro diz J. Duchemin, seja uma verdadeira revelação, secreta e sagrada, isso é confirmado pelos termos usados por ele mesmo para designar a pessoa e a arte do poeta. A palavra utilizada frequentemente por Heródoto e Platão para se referir aos poetas está inteiramente ausente de seus versos. Ele se considera servidor ( ) da deusa Leto (fragmento 116-7), um mensageiro (, Neméias, VI) e se diz inspirado pela Musa, como um arauto privilegiado que faz entender palavras sábias (fragmento 79). O termo, que normalmente se refere aos adivinhos, encarregados de proclamar as mensagens dos deuses continua ainda J. Duchemin, é aplicado por Píndaro tanto a si mesmo como a Tirésias, o profeta cego de Tebas, e a Amphiaraus, a quem Zeus concedeu dons de oráculo. 3 As nove Musas e suas artes são: Calíope (poesia épica), Clio (história), Érato (poesia romântica), Euterpe (música), Melpômene (tragédia), Polímnia (hinos), Terpsícore (dança), Tália (comédia) e Urânia (astronomia). 4 Filosofia, linguagem, arte e educação, São Paulo, ESDC, 2007. 5 Jean Lauand, obra citada, p. 144. 6 Jean Lauand, obra citada, p. 144. 7 Pindare Poète et profhète, Paris, Les Belles Lettres, 1955. 66

À luz desses exemplos, acrescenta a autora, não é surpreendente que Píndaro cumpra sua missão como um adivinho a serviço do templo e, em diferentes textos, faça o ofício de arauto dos deuses para o ensinamento de uma ou várias doutrinas reveladas. Nós temos que nos perguntar a seguir de quais doutrinas, de quais esoterismos se trata, mas a intenção dogmática, em todo caso, está fora de dúvida. Píndaro, encarregado pela Musa de oferecer aos deuses as preces dos homens, transmite a estes a mensagem dos deuses. Assim, nota-se, sobre um plano superior, a cadeia que liga os deuses ao homem e o homem aos deuses, passando pelo poeta. 8 A leitura da obra de Píndaro confirma as palavras de J. Duchemin. No prólogo de uma de suas Neméias, dedicada ao vencedor do pancrácio nos jogos de Neméia 9 por exemplo, Píndaro começa: Augusta Musa, minha mãe: neste dia consagrado às festas de Neméia te suplico que venhas visitar a terra dória da hospitaleira Egina. E continua: Abre, pois, ó, Musa, todos os tesouros do meu gênio. Começa, ó filho de Zeus, um hino solene em honra de teu pai, que reina no céu de espessas nuvens 10. Em outro momento, ele suplica, referindo-se a Etna, terra natal de Crômio, vencedor na corrida de carros dos jogos realizados em 473 antes de Cristo: Ó, minha Musa: difunde teus elogios sobre esta ilha que o rei do Olimpo ofertou outrora a Perséfone 11. Esses poucos exemplos bastam para mostrar que já no alvorecer da civilização ocidental encontra-se a ideia que perdurará ao longo de toda a história dessa civilização de que a arte é algo dado, uma dádiva, um dom concedido aos homens pelo divino. E esse dom tem a nítida função de fazer lembrar as grandes verdades da existência. A tradição judaico-cristã Se a Antiguidade grega vislumbrou no divino a origem das artes, isso a aproxima, nesse aspecto, à tradição judaico-cristã, que considera Deus como o Criador de todas as coisas materiais e espirituais, humanas e divinas, como anuncia o Evangelho de João, referindo-se a Cristo: Todas as coisas vieram a ser através dele, e sem ele nada veio a ser 12. Por vezes, a Bíblia até mesmo mostra Deus ofertando a música ao homem, tal como as Musas fazem com Píndaro. Nos Salmos, por exemplo, o salmista diz que o Senhor lhe pôs nos lábios um novo cântico, um hino de louvor ao nosso Deus 13. Já em Deuteronômio, Deus ordena a Moisés que escreva um cântico, a fim de lembrar ao povo hebreu a sua desobediência para com a aliança que firmara com o Senhor de forma semelhante ao que fizera Zeus, ao designar as Musas para lembrar aos seres humanos as verdades existenciais que não devem ser esquecidas. Disse Deus: Escrevei para vós outros este cântico e ensinai-o aos filhos de Israel; ponde-o na sua boca, para que este cântico me seja por testemunha contra os filhos de Israel 14. No cântico, Deus faz lembrar aspectos da realidade esquecidos pelo homem esse ser que esquece, entre eles, a existência de um Criador perfeito, justo e reto, a 8 Jacqueline Duchemin, obra citada, p. 33. 9 Jogos realizados na cidade de Neméia, na região da Argólida, no norte do Peloponeso, em honra a Zeus. Ocorriam a cada dois anos, no segundo e quarto ano de cada Olimpíada. 10 Píndaro, Neméia III. 11 Neméia I. 12 João 1:3. 13 Salmo 40, tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo. Sociedade Bíblica do Brasil, 2ª edição, 1993. 14 Deuteronômio 31:19. 67

frágil condição humana e sua tendência ao erro e ao esquecimento. Como se lê em diferentes trechos do cântico: Eis a Rocha! Suas obras são perfeitas, porque todos os seus caminhos são juízo; Deus é fidelidade, e não há nele injustiça; é justo e reto. 15 Lembra-te dos dias da antiguidade, atenta para os anos de gerações e gerações. 16 Mas, engordando-se o meu amado, deu coices; engordou-se, engrossou-se, ficou nédio e abandonou a Deus, que o fez, desprezou a Rocha da sua salvação. Com deuses estranhos o provocaram a zelos, com abominações o irritaram. 17 Olvidaste a Rocha que te gerou; e te esqueceste do Deus que te deu o ser. 18 E disse: esconderei deles o rosto, verei qual será o seu fim; porque são raça de perversidade, filhos em quem não há lealdade. 19 Mais do que uma imprecação contra o povo que foi infiel ao seu Senhor, o cântico dado por Deus a Moisés pode ser usado para descrever o ser humano de todos os tempos e lugares, marcado pela ignorância e indiferença ou, em outros termos, pelo esquecimento em relação à sua origem, sua condição e sua finalidade. Não surpreende que, nessa situação algo caótica, esse ser se encontre mergulhado na desorientação, no desespero e na infelicidade triste sina que pode ser minimizada com a ajuda das artes. Venha a mim, ó, Música A ideia de que a arte tem uma origem divina, independente do artista que serve como uma espécie de portador, de mensageiro de uma palavra do divino para os homens, não se restringe à obra de Píndaro ou às Escrituras judaico-cristãs. Ela é encontrada também na produção artística contemporânea. Exemplo disso é a música do compositor e cantor brasileiro João Nogueira (1941-2000). Herdeiro dos grandes sambistas brasileiros, autor de músicas com jeito de Wilson, Geraldo, Noel 20, como ele mesmo afirma em Wilson, Geraldo e Noel 21, João Nogueira é autor de sambas memoráveis, com melodias cativantes e rimas deliciosas e divertidas. Em parceria com Paulo César Pinheiro, ele compôs obras que, surpreendentemente, se relacionam diretamente com aquela tradição iniciada na Antiguidade grega. Tome-se como exemplo Poder da criação 22, que Nogueira e Pinheiro lançaram em 1980, no disco Boca do Povo. Nele, Nogueira afirma poeticamente que um samba é algo dado por um poder criador, não o resultado do desejo ou do esforço do artista. Ele afirma isso da seguinte forma: 15 Deuteronômio 32:4. 16 Deuteronômio 32:7. 17 Deuteronômio 32:15-17. 18 Deuteronômio 32:18. 19 Deuteronômio 32:20. 20 Referência a Wilson Batista (1913-1968), Gerado Pereira (1918-1955) e Noel Rosa (1910-1937), ícones do samba no Brasil. 21 Disponível em http://letras.terra.com.br/joao-nogueira/1421071. 22 Disponível em http://letras.terra.com.br/joao-nogueira/180740. 68

Não, ninguém faz samba só porque prefere Força nenhuma no mundo interfere sobre o poder da criação Para o compositor, há um poder criador, independente do artista, autônomo, sobre o qual não há nenhuma influência. É esse poder que, de fato, cria a obra de arte. O artista é aquela pessoa que possui sensibilidade suficiente para captar essa obra e transmiti-la aos homens. O que se entende como inspiração não é algo que advenha do estado de espírito do artista, como continua o samba: Não, não precisa se estar feliz nem aflito Nem se refugiar em lugar mais bonito Em busca da inspiração súbita: A inspiração, acrescenta Nogueira, é algo que vem de fora do artista, de forma Ela é uma luz que chega de repente Com a rapidez de uma estrela cadente E ilumina a mente e o coração Isso está de acordo com uma declaração de João Nogueira, feita em 1983, por ocasião do lançamento do disco Bem transado. Ele disse: "Cada música tem uma história, principalmente porque eu raramente sento para fazer música. Elas aparecem de acordo com a situação e com muita naturalidade" 23. É isso que dá a Nogueira a intuição de que há um poder criador autônomo, como ele declara no verso seguinte de "Poder criador": É, faz pensar Que existe uma força maior que nos guia Que está no ar Bem no meio da noite ou no claro do dia Chega a nos angustiar O poeta se sente angustiado diante da evidência de que a música não é propriamente dele, mas de um poder que ele não sabe explicar exatamente, mas percebe ser o legítimo autor da obra. A incapacidade de explicar esse poder remete à teologia negativa do Pseudo Dionísio Areopagita, teólogo cristão do século VI. A forma como Dionísio se refere ao princípio criador de todas as coisas pode elucidar a angústia de João Nogueira, que assim como o teólogo cristão sente a manifestação de um poder criador sem que seja capaz de compreendê-lo. Para Dionísio, essa realidade incompreensível é incognoscível ao entendimento humano. Lembrando que, conforme as Escrituras, ninguém jamais viu Deus 24, ele destaca que o Criador é um mistério que transcende todo ser, supraessencial a todas as coisas, e que, definitivamente, nada do que existe pode ser 23 www.dicionariompb.com.br/joao-nogueira/dados-artisticos. 24 I Timóteo 6:16: o único que possui imortalidade, que habita em luz inacessível, a quem homem algum jamais viu nem é capaz de ver. 69

comparado a ele 25. Não existem palavras que possam expressar esse Bem inefável 26. Nenhuma criatura pode conhecê-lo nem contemplá-lo como é, uma vez que ele transcende tudo, e não há caminhos por onde penetrar em sua infinitude secretíssima 27. Sendo causa de todas as coisas, Deus não é nada do que existe, pois está supraessencialmente separado de todo ser. Está muito longe de qualquer maneira de ser, de todo movimento, vida, imaginação, opinião, nome, palavra, pensamento, inteligência, substância, estado, princípio, união, fim, imensidade. De tudo quanto existe. 28 As realidades secretas de Deus são incomunicáveis, mais profundas do que um abismo, continua o Pseudo Dionísio Areopagita 29. Ele é Ser que está sobre todo ser, sem que nada o alcance 30. Não é possível designar seu nome nem seu modo de ser, pois se eleva muito acima de todo entendimento. É um mistério muito distante da realidade das coisas 31, uma luz inacessível que, por sua claridade imensa, se transforma numa impenetrável treva divina 32. O Pseudo Dionísio Areopagita acentua a inacessibilidade de Deus, afirmando: Dizemos, pois, que a Causa universal está por cima de todo o criado. Não carece de essência nem de vida nem de razão nem de inteligência. Não tem corpo nem figura nem qualidade nem quantidade nem peso. Não está em nenhum lugar. Nem a vista nem o tato a percebem. Não sente nem a alcançam os sentidos. Não sofre desordem nem perturbação procedente de paixões terrenas. Não carece de poder nem a alteram acontecimentos imprevistos. Não necessita de luz. Não experimenta mutação nem corrupção nem decaimento. Não se lhe acrescenta ser nem fazer nem coisa alguma que caia sob o domínio dos sentidos. 33 Diante de um poder criador de tal natureza, resta ao poeta tão somente aceitar essa situação, participar alegremente dela e receber os versos e a melodia que lhe chegam como que pelo ar. É o que diz Nogueira em Poder da criação: E o poeta se deixa levar por essa magia E o verso vem vindo e vem vindo uma melodia E o povo começa a cantar Ciente de que a música é dada pelo poder da criação e não propriamente concebida por ele mesmo, Nogueira faz uma Súplica, título de um samba presente no disco Clube do Samba, lançado em 1979. Nele, o compositor faz explicitamente uma oração, pedindo para que receba a música desse poder criador. Ele diz: Venha a mim, ó, Música Vem no ar 25 Da hierarquia celeste XII, 3. 26 Dos nomes divinos I, 1. 27 Dos nomes divinos I, 2. 28 Dos nomes divinos I, 5. 29 Dos nomes divinos II, 4. 30 Dos nomes divinos II, 10. 31 Dos nomes divinos XIII, 3. 32 Carta V. 33 Da teologia mística IV. 70

Ouve de onde estás a minha súplica Que eu bem sei talvez não seja a única A imagem dessa canção como uma oração é reforçada por um vídeo 34 gravado por Nogueira, em que, em certo momento, ele canta Súplica com os dois braços estendidos para o céu, mãos abertas e cabeça levantada, em típica atitude de súplica a Deus. Tal como Píndaro pede às Musas que enviem a ele a poesia, João Nogueira solicita o auxílio do divino para dar aos homens uma mensagem. Da mesma forma como a poesia de Píndaro serve para lembrar os homens de sua origem divina e o cântico de Moisés lembra o povo hebraico de sua aliança com Deus, também o samba de João Nogueira tem uma função, que fica clara neste trecho de Súplica: Venha a mim, ó, Música Vem secar do povo as lágrimas Que todos já sofrem demais E ajuda o mundo a viver em paz Dadas as semelhanças entre obras tão distintas, é possível pensar que Nogueira, nesse trecho consciente ou inconscientemente, se refere à capacidade da música de fazer o povo se lembrar das grandes verdades da existência entre elas, a origem divina do ser humano e a dignidade que advém daí, minimizando, dessa forma, o sofrimento das pessoas. Certamente, se os seres humanos tivessem pelo menos alguma noção de sua origem, isso ajudaria o mundo a viver em paz. Se restasse ainda alguma dúvida da filiação de João Nogueira à tradição que considera a arte como uma dádiva divina, bastaria citar outro samba do compositor, também em parceria com Paulo César Pinheiro, Minha missão 35, que apareceu em 1982, no disco O homem dos quarenta. Ele começa falando sobre a função da música, a mesma já revelada em Súplica, ou seja, minimizar o sofrimento das pessoas: Quando eu canto É para aliviar meu pranto E o pranto de quem já Tanto sofreu Em seguida, a relação entre a poesia e uma espécie de sacerdócio se torna explícita. Nogueira canta: Quando eu canto Estou sentindo a luz de um santo Estou ajoelhando Aos pés de Deus Nos versos a seguir, Nogueira chega a utilizar as mesmas expressões e conceitos de Píndaro, como as ideias de mensageiro da música e de que o canto é uma missão. Tal como o poeta grego, o compositor brasileiro vê sua atividade como um dever: 34 Disponível em http://letras.terra.com.br/joao-nogueira/46589. 35 Disponível em http://letras.terra.com.br/joao-nogueira/376470. 71

Do poder da criação Sou continuação E quero agradecer Foi ouvida minha súplica Mensageiro sou da música O meu canto é uma missão Tem força de oração E eu cumpro o meu dever Por fim, o samba faz nova menção ao sofrimento do povo, tema recorrente nas composições de Nogueira: Aos que vivem a chorar Eu vivo pra cantar E canto pra viver Tendo em vista a proximidade entre a obra de Nogueira e as referências ao divino, talvez seja possível relacionar essa insistência com o sofrimento do povo à segunda Bem-Aventurança de Cristo: Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados 36. O consolo poderia muito bem vir das artes, enviadas por Deus para aliviar as dores dos que sofrem. Conclusão As semelhanças entre a tradição pindárica, os conceitos sobre a música presentes na Bíblia e a obra de João Nogueira são muito profundas para se pensar em mera coincidência. Talvez seja mais acertado acreditar que, na realidade, essas três grandes produções culturais tenham conseguido captar algo que nem todos conseguem notar: a existência de um poder criador que, generosamente, concede a determinados seres humanos os artistas as dádivas da arte. Sendo assim, mesmo aqueles artistas que não crêem na transcendência, que negam esse poder criador, são devedores dele e suas obras constituem, em última instância, uma mensagem divina. Afinal, como dizem as Escrituras, o espírito do homem é a lâmpada do Senhor 37. Referências bibliográficas AREOPAGITA, PSEUDO DIONÍSIO. Obras completas. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), 1990. BÍBLIA SAGRADA, tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2ª edição, 1993. DUCHEMIN, JACQUELINE. Pindare Poète et profhète, Paris, Les Belles Lettres, 1955. LAUAND, JEAN. Filosofia, linguagem, arte e educação, São Paulo, ESDC, 2007. MARX, KARL, Para a crítica da economia política, Prefácio, in Obras escolhidas, tomo I, Edições Avante, Lisboa, 1982. PINDARO. Himnos triunfales: epinicios y las odas. Barcelona: Ibéria, 1946. Recebido para publicação em 03-01-11; aceito em 15-01-11 36 Mateus 5:4. 37 Provérbios 20:27. 72