158 RESENHA A NEGAÇÃO DO CORPO NEGRO: representações sobre o corpo no ensino da educação física Anália de Jesus Moreira 1 Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e Universidade Federal da Bahia. Dissertação de mestrado de autoria de Ivanilde Guedes de Mattos (Ivy Mattos) ORIENTADORA: Profª Drª Delcele Mascarenhas Queiroz LOCAL: Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade Estadual da Bahia-UNEB ANO DE DEPOSITO: 2007 O trabalho de Ivanilde Guedes Mattos (Yvi Mattos) nos proporciona uma nova situação frente à historicidade da Educação Física por instigar novos olhares sobre as representações do corpo negro no ensino da Educação Física. Nessa resenha analisamos a forma contundente com que a autora trata da questão da corporeidade negra na escola, focalizando o percurso estatutário da Educação Física, destacadamente as fases eugenistas, esportivistas e militares, confrontando estas identificações com a corporeidade da maior diáspora da América Latina, a cidade do Salvador que detém cerca de 80 por cento de negros em sua população total. O caminho que Ivy Mattos descreve em depoimentos de alunos e professores de escolas básicas em nossa cidade, nos impele a enveredar sobre as possibilidades e contradições encontradas no cotidiano da Educação Física, formulando assim, novas questões sobre o que a escola fez a faz com o corpo, num plano ideológico, filosófico e cultural. 1 Professora Assistente do Centro de Formação de Professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Graduação em Licenciatura Plena em Educação Física (UCSAL), especialista em Metodologia da Educação Física e Desporto Escolar (UNEB), mestra e doutoranda em Educação e Práxis Pedagógica (UFBA). Componente dos seguintes grupos de pesquisa. ENTRELACE/UFRB e HCEL/UFBA.
159 A construção dos pressupostos do trabalho resenhado se firma em novos pensamentos que primam pela descolonização epistêmica e histórica. Dessa forma, autores como Homi Bhabha e Stuart Hall salientam a defesa da autora por uma epistemologia diversa e um tratamento não subalternizado dos saberes afrobrasileiros, indicando rupturas e novos paradigmas na área da educação física. A dissertação de Ivy Mattos problematiza elementos teóricos que prezam por uma epistemologia diversa na produção do conhecimento e um debate em torno da subalternidade dos conhecimentos afrobrasileiros, priorizando leituras como de Stuart Hall, Homi Bhabha e Kapenguelê Munanga. Desta forma autora estabelece um diálogo rico entre os temas emergentes sobre a categoria identidade e o aporte especifico da sua área de atuação, destacando leituras de alguns dos principais teóricos da Educação Física no Brasil como Valter Bracht, João Paulo Subirá Medina e Mauro Betti. Ao escolher a cultura e identidades como categorias básicas, Ivy Mattos, se lançou na aventura de descrever a historicidade da Educação Física no Brasil, fazendo um recorte na corporeidade negra, suas realidades e contradições na escola. Assim, a autora manifesta preocupação com as ligações entre estereótipos racistas e negação da cultura corporal negra no ambiente escolar. Esse caminho traçado por Ivy Mattos nos inspira a compreender o panorama de desigualdades sociais em Salvador, cidade com maioria de afrodescendentes na América Latina e suas relações com a sistematização de saberes e culturas afrobrasileiras na escola. Para tornar dialógica a abordagem, a autora mergulha nas explicações históricas sobre a negação do corpo negro, suas representações e construções, desde o corpo escravizado, vindo da África até os dias de resistência cultural e comunitária. Ivanilde Guedes Mattos, pesquisou os seguintes colégios: Roberto Santos, Colégio Tales de Azevedo, Colégio Teixeira de Freitas, Colégio, Angelita Moreno, Colégio Eraldo Tinoco e Colégio Central. O mapeamento foi feito obedecendo ao critério de densidade discente negra nas escolas, priorizando questões sobre percepções e identificações corporais presentes nas relações individuais e coletivas do grupo. Foram interrogados estudantes na faixa etária entre 12 e 18 anos e professores de educação física.
160 A coleta de dados feita pela autora e a descrição deles brilhantemente amparados nas falas e subjetividades nos revelam distâncias não ingênuas entre escola e práticas sociais. Ao estabelecer ligações entre culturas hegemônicas e espaços de resistência na escola, Ivy Mattos nos presenteia com argumentos contundentes sobre corpo negro e Educação Física, aspectos não presentes na historiografia especifica de área. Nos mostra ainda como as representações do corpo na escola ajudaram a difundir práticas racistas, de negação gestual e estética ainda associadas ao escravismo e as imagens de marginalização do negro na sociedade. Nas falas dos professores, percebemos o cuidadoso argumento dos entrevistados em não incitar a quebra de normalidade e cordialidade escolar, mesmo que, em várias falas, questões de marginalização e estética estabeleçam ligações com a rotina escolar. Nas falas selecionadas por Yvy Mattos também foram demonstradas preocupações com os impactos midiáticos no corpo negro jovem na perspectiva de corpo perfeito e suas implicações com fatores identitários e as idéias de boa aparência. Ao concluir seu trabalho, Ivanilde Guedes matos faz alguns apontamentos que consideramos relevantes para novas produções daqui por diante: 1 ) Os processos históricos acumulam marcas que até hoje são visíveis no corpo negro, esteja ele onde estiver, na escola e na sociedade. Marcas que precisam ser desconstruídas e ao mesmo tempo problematizadas para que não continuem sendo normalizadas na pedagogia. 2) A idéia de corpo hegemônico (eurocêntrico) permanece firme nas abordagens e práticas da Educação Física escolar que incorpora termos como malhar em vez de exercitar. Sendo que esta abordagem desfavorece a dimensão de corpo-cultura, dotado de significados e representações. 3. A autora nos convida a refletir sobre que contribuições a Educação Física pode oferecer para uma identificação corporal positiva dos estudantes negros e como isso poder contribuir para o reconhecimento e combate a atitudes racistas dentro e fora da escola. 4. A dissertação resenhada pode ser considerada um dos primeiros trabalhos a abordar a obrigatoriedade do ensino da cultura afro-brasileira e africana nas escolas básicas, embora o foco da pesquisa não tenha sido este, deixando a entender que a Lei
161 10.639/2003 foi contemplada no trabalho muito mais por repercussões no ambiente escolar do que por decisão de foco da pesquisa. Louvamos então, o destaque dado pela autora a um assunto que emergiu do campo. 5. A pesquisa revela-se iluminante quando faz abordagens no jogo cultural a partir do teoriza Homi Bhabha (entre lugar da cultura e negociação). A autora deixa a entender que encontrou os alunos neste entre-lugar para caracterizar as questões da estereotipia e da dominação. 6. Outro ponto de forte impacto na pesquisa é a fala dos professores quando o assunto é racismo. A delicadeza da temática se estabeleceu numa relativação de respostas, comprovando a inquietação da autora com a normalidade escolar, um reflexo da não visibilidade do racismo como prática social no Brasil e o tabu que o tema provoca na escola. 7. Embora a escola seja considerada espaço restrito por muitos teóricos, a pesquisa de Ivy Mattos nos mostra que não é a toa que nas últimas décadas, o espaço escolar venha sendo alvo de teses e dissertações. O motivo elementar é que estamos na produção do conhecimento e nos debates acadêmicos reconhecendo a escola também como local de cultura, dominação e hierarquias, (poder), portanto como espaço de resistência, conforme propõe objetivamente a Lei 10.639/2003. 8. A partir das considerações destacamos a contribuição do trabalho de Ivanilde Guedes Matos no sentido de assumirmos a escola como local onde se problematizam diferenças, buscando a promoção de políticas que transformem e reorientem concepções de sociedades mais igualitárias. 9. Por contemplar nosso objetivo dissertativo: (rumos e desafios propostos pela Lei 10.639/2003 ou 11.645/08, para o ensino da Educação Física em Salvador, terminamos esta resenha com um trecho da obra escolhida: A contribuição da História e da Cultura Afro Brasileira não pode ser uma intervenção determinada pelo calendário folclórico, a implementação da Lei surge como uma importante ação que atinge o currículo como um todo, atuando em todos os ciclos da educação básica, independente dos meses de maio (libertação dos escravos); de agosto (folclore) e novembro (consciência negra). (MATTOS, 2007.p. 167).
162 Aproveitamos este caminho deixado pelo trabalho de Ivy Mattos para validar novas tentativas de compreensão de corpo na escola a partir de suas representações étnicorraciais. Nosso sentimento é de esperança para que a condição despolitizada, subalterna e desprivilegiada da cultura corporal possa ganhar outras visibilidades. Isto será possível se atentarmos para as funções sociais da área e a importância de corpo enquanto significados e representações na construção e reconstrução das identidades e identificações. Dessa forma, atentarmos também para a problematização das ambivalências que produzem significados, mas também edificam negativismos culturais e identitários. Referência MATTOS, Ivanilde Guedes de. A negação do corpo negro: representações sobre o corpo no ensino da educação física, Salvador, BA. UNEB, 2007. (Dissertação de mestrado)