Práticas e Representações: Gênero na Literatura e na Mídia - ST: 04 Fábio Lopes Alves i Hilda Pívaro Stadniky ii UEM Palavras-chave: Prostituição - Mulheres Imprensa PROSTITUIÇÃO FEMININA NA IMPRENSA PERIÓDICA DE CASCAVEL: ENTRE PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES AS PROSTITUTAS COMO OBJETO DA HISTÓRIA No âmbito das ciências humanas diversos são os trabalhos que tomam a prostituição como objeto de análise, numa perspectiva de resgatar a meretriz e seu papel nas diferentes sociedades e particularmente na sociedade brasileira, sendo que grosso modo, essas abordagens têm investigado as dimensões de riscos, as relações sociais, familiares, de gênero, estudos de casos, relatos de vida, resgate de memória entre outros. Em função disso, numa perspectiva diferenciada a presente pesquisa em andamento faz uma investigação a respeito da representação da prostituição feminina elaborada pela imprensa escrita, utilizando os jornais Hoje e O Paraná como fonte primária. Investigar as mulheres que atuam na prostituição e perante a sociedade tem sido considerada minoria, marginalizada ou desviante, tem plausibilidade científica dentro das ciências humanas, em face às transformações ocorridas nas últimas décadas na historiografia, haja vista, que temas até então considerados irrelevantes e marginais, vêem despertando o interesse dos historiadores. Todavia reflexões dessa natureza significa um certo risco, pois, fixa num campo totalmente imbuído de valores e preconceitos haja vista que são muitas as dificuldades que se apresentam para os que ousam se enveredar pelos estudos de mulheres em sociedade, pois, trata-se de terreno minado de incertezas, saturado de controvérsias movediças, pontuado de ambigüidades sutis que é preciso discernir, iluminar documentar mas que resistem a definições. iii Com relação aos recortes efetuados por esta pesquisa, a delimitação da atividade feminina não ocorre por acaso, mas segue as orientações deixadas por Duby e Perrot, que afirmam: As mulheres foram durante muito tempo, deixada a sombra da história, é preciso recusar a idéia de que as mulheres seriam em si mesmas um objeto de história. É o seu lugar, a sua condição, os seus papéis e os seus poderes, as suas formas de ação, o seu silêncio e a sua palavra que pretendemos perscrutar, a diversidade de suas representações. iv
No tocante ao cenário escolhido para a pesquisa, a cidade de Cascavel capital do oeste do Paraná - em seu espaço urbano torna-se o palco dessa investigação o que leva dentre outros questionamentos compreender os significados e implicações que a prostituição feminina tinha para a cidade e o modo como essas mulheres utilizavam alguns espaços e territórios. Considerado como fenômeno urbano, o crescimento da prostituição passou a ser visto como um problema público, tido como uma verdadeira arma para conter o ingresso das mulheres na vida pública, tendo em vista que não era aceitável a permanência feminina nos espaços tidos como masculinos. Sabe-se que a escolha das fontes depende não apenas do objeto e dos objetivos da pesquisa, mas também da delimitação e problemática. Isto é, dos recortes efetuados. Partindo do pressuposto de que a linguagem jornalística se apresenta com pretensões de objetividade, visamos compreender como se deram as formas de ação, silêncios e divisões de papéis. Portanto, as fontes primárias escolhidas para este estudo se dão pela riqueza de informações, bem como por fornecer caminhos metodológicos, que no caso especifico ainda não foi explorado, desta forma, há uma série de questões a serem observadas, principalmente no tocante a forma de repressão que se manifesta na aludida fonte, tendo em vista que a linguagem enquanto discurso é a interação, e um modo de produção social; ela não é neutra, inocente (na medida que está engajada numa intencionalidade) e nem natural, por isso um lugar privilegiado de manifestação da ideologia. v Pois, no momento em que a linguagem, como palavra disseminada, se torna objeto de conhecimento eis que reaparece sob uma modalidade estutamente oposta. vi Assim, ao trabalhar com a imprensa deve-se ter em mente que não basta perceber de forma linear e orientada os diversos momentos em que passaram os periódicos num determinado espaço social, porém, deve atentar para uma rede de relações mais ampla onde o que está em jogo é o aparecimento e/ou desaparecimentos de determinados veículos de comunicação. De acordo com Nelson Werneck Sodré, por muitas razões, fáceis de referir e de demonstrar, a história da imprensa é a própria história do desenvolvimento da sociedade capitalista. vii Pois, na busca pelo controle dos meios de informações, é possível verificar um verdadeiro campo de batalha, onde aparecem personagens dos mais diversos segmentos, sociais, culturais, religiosos, entre outros, porém todos como o mesmo fito: deter o controle desse meio de informação. Nesse sentido, à luz da história cultural, o presente trabalho visa contribuir com a história da imprensa, pois, problematiza quem foi o produtor do discurso, de que forma e como se produziu, sem perder de vista as questões atinentes para quem produziu, quais as conseqüências dessa produção para a sociedade, e, de igual modo, contribui com os estudos de história de gênero na medida em que trata de resgatar o cotidiano de algumas mulheres anônimas que atuaram tanto quanto os homens na história.
PRÁTICAS, REPRESENTAÇÕES E APROPRIAÇÕES: UMA CONTRIBUIÇÃO À HISTÓRIA CULTURAL: Segundo Roger Chartier um dos expoentes da Nova História Cultural, o principal objetivo dess corrente historiográfica é identificar o modo como, em diferentes lugares e momentos, uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler. São estes esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras graças as quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço a ser decifrado. viii Dessa forma, as representações do mundo social são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Portanto, para cada caso, torna-se necessário relacionar os discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. De acordo com Chartier, representação é um instrumento de conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente, através de sua substituição por uma imagem capaz de reconstituir em memória e de o figurar tal como ele é. O surgimento da noção de representação mostra duas famílias de sentidos aparentemente contraditórios: por um lado, a representação permite ver algo ausente, o que supõe uma clara distinção radical entre o que representa e aquilo que é representado. Por outro, a representação é a exibição de uma presença, a apresentação pública de algo ou de alguém. No primeiro sentido, a representação é instrumento de conhecimento imediato que revela um objeto ausente, substituindo-o por uma imagem, capaz de trazêlo à memória e de o figurar tal como ele é. A relação de representação é entendida deste modo como correlação de uma imagem presente e de um objeto ausente, um valendo pelo outro. O autor também atenta para a distinção fundamental entre representação e representado, isto é, entre signo e significado, que é pervertida pelas formas de teatralização do antigo regime. Ou seja, todas têm o objetivo de fazer com que a identidade do ser não seja outra coisa senão a aparência da representação. Nesse sentido, o conceito de representação é visto por Chartier como a pedra angular de uma abordagem da história cultural, permitindo articular essas três modalidades da relação com o mundo social. Em primeiro lugar, o trabalho de classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas, através da quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos. Segundo, as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição. E em terceiro lugar, as formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns representantes (instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade. ix Se a noção de representação é considerada por Chartier a pedra angular da nova história cultural, a de apropriação é o centro de sua abordagem. Tal reformulação distancia do sentido
empregado por Michel Foucault (que pensava na apropriação como um confisco que colocava os discursos fora do alcance dos que os produziam), pois, Chartier afirma que a apropriação tal como entendemos tem por objetivo uma história social das interpretações, remetida às suas determinações fundamentais, que são sociais, institucionais, culturais e inscritas nas práticas específicas que as produzem. Ao pensar em práticas culturais, convém antes de tudo, ter em vista que esta noção deve ser pensada não apenas em relação às instancias oficiais de produção cultural, mas também aos usos e costumes que caracterizam a sociedade examinada pelo historiador. Logo, para Chartier, são práticas culturais, não apenas a feitura de um livro, uma técnica artística ou uma modalidade de ensino, mas também, os modos como, em uma determinada sociedade, os homens falam, e se calam, como e bebem, sentam e andam, conversam ou discutem, morrem ou adoecem, solidarizam-se ou hostilazamse, entre outros. A respeito da história cultural, Chartier afirma que é preciso pensá-la como a análise do trabalho das representações, isto é, das classificações e das exclusões que constituem, na sua diferença radical, as configurações sociais e conceituais próprias de um tempo ou de um espaço. Desse modo, as estruturas do mundo social não são um dado objetivo nem são as categorias intelectuais e psicológicas: todas elas são historicamente produzidas pelas práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas) que constroem suas figuras. São as demarcações e esquemas que as modelam, que constituem o objeto de uma história cultural levada a repensar complemente a relação tradicionalmente postulada entre o social, identificado com um real bem real, existindo por si próprio e as representações supostas, como refletindo-o ou dele desviando. Da mesma forma, esta história deve ser entendida como o estudo dos processos com os quais se constrói um sentido. Daí a caracterização das práticas discursivas como produtoras de ordenamento, de afirmação de distancias, de divisões; daí o reconhecimento das práticas de apropriação cultural como formas diferenciadas de interpretação. x É em função das discussões acima apresentada que se justifica o diálogo com Roger Chartier, para se pensar as maneiras com que a imprensa escrita se apropria de uma prática a prostituição feminina e a representa, reorganizando-a de acordo com seus interesses particulares, tendo como pando de fundo uma verdadeira disputa mercadológica. Com relação a dívida teórica desta pesquisa, além da contribuição da Nova História Cultural, deve-se também aos caminhos de possibilidades de análises aberta pelas interrogações de Michel Foucault, que aborda entre outros assuntos na Ordem do discurso e na História da sexualidade, a questão do discurso, sexo e o caráter repressivo de tais discursos, bem como a atuação dos movimentos de mulheres, movimentos feministas e posteriormente a categoria de gênero.
A REPRESENTAÇÃO DA PROSTITUIÇÃO FEMININA NA IMPRENSA PERIÓDICA Nos jornais uma das formas de representar a prática da prostituição feminina, tem sido relacioná-la com a marginalidade, principalmente quando se pretendia conscientizar a população de algum tipo de doença, para isso, relacionavam-se algumas enfermidades às meretrizes, conforme atesta a manchete produzida sob grande alarde em 1977 no Jornal Hoje: Sífilis: 70% das prostitutas são doentes. xi Ocorre que, a preocupação em mostrar os perigos e infortúnios oriundos do contato com as prostitutas, fez o jornal levantar dados estatísticos não muito confiáveis, tendo em vista que a fundamentação para tal porcentagem sucedeu de exames realizados num único laboratório, sendo que os outros existentes na cidade, não repassaram informações alegando não possuir dados comprovados. Além disso, quando os jornais aludem para o cotidiano dessas mulheres, é perceptível o excessivo grau de estereotipias em suas representações ao associá-las a criminalidade, bandidagem e atentado moral. Nessas situações um fato que se tornou comum é se referir a essa prática utilizando palavras de baixo calão, conforme mostra reportagem publicada pela editoria policial ao descrever o fato de uma mulher que foi presa, por expor o órgão genital em público: mostrou o pacotão e acabou em cana. xii Isto é, o termo pacotão não está por acaso, mas busca causar um certo impacto sensacionalista. A representação das mulheres nos jornais apresentam as mulheres prostituídas e as consideradas mulheres normais. Essa noção de normalidade é fruto de uma construção social cujo imaginário popular tem como modelo feminino a Virgem Santíssima, são dois modelos construídos a partir de realidades distintas, com situações diversificadas. À mulher normal cabia à maternidade, que lhe rendia a concepção de rainha do lar sendo associada à Virgem Maria, ao mesmo tempo em que atestava para esta, uma certa autoridade sobre a casa, filhos e família, pois, para elas caberia o espaço privado. Enquanto as prostitutas eram identificadas como Eva a serpente de Gênesis, sedutora e causadora da queda do homem, ou seja, uma criatura dotada de capacidade, mas ao mesmo tempo diabólica, que era preciso por na linha. Assim como no séc XVIII o sexo se torna uma questão de polícia, xiii no período compreendido pelo presente estudo, houve um intenso controle policial em busca da moralidade, como mostra por exemplo, a manchete de capa no ano de 1977: polícia e prefeitura moralizam mocós xiv ou Juiz fecha muquifas : PM quer ajuda da justiça para fechar inferninho. xv Assim, a representação dessa autoridade frente a essa atividade, pode ter contribuído para formar o conceito generalizado de prostituição relacionado a várias características, dentre elas, roubos - mariposas da noite agora arrombam loja xvi - chantagens, doenças - confirmada a existência de aids em Cascavel, polícia fecha
três bordéis na rua Erechim xvii - crimes - bar do crime fechado pelas autoridades xviii - delinqüentes, alto consumo de bebidas alcoólicas e etc. Os jornalistas buscaram representar as meretrizes a partir da editoria policial e isso não também não se deu por acaso conforme afirma Amaral: O chamado fato policial ocorre com mais freqüência em países onde as tensões sociais são mais acentuadas. A imprensa o que faz é utilizá-lo como informação que o público consome com avidez até o último parágrafo. As editorias policiais têm alimentado grandes tiragens. xix Ao analisar essa fonte, percebe-se que na década de 70 esse assunto não era discutido livremente, tal como é hoje. Essa constatação se dá ao conferir a primeira edição do Jornal Hoje que traz a foto de uma mulher semi-nua, com a seguinte manchete: Prostituição: tudo o que você sempre quis saber (e tinha medo de perguntar). xx Verifica-se então que o interesse que a atividade suscitou entre jornalistas e autoridades, principalmente policiais, esteve estritamente ligado à moralidade pública. BIBLIOGRAFIA: AMARAL, Luiz. Jornalismo: matéria de primeira página. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997. CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. Tradução Patrícia Chittoni ramos. Porto Alegre: EdUfrgs, 2002.. A história cultural entre práticas e representações Lisboa: Difel, 1998. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Teoria e método dos estudos feministas: perspectiva histórica e hermenêutica do cotidiano. In: COSTA, Albertina de Oliveira; BRUSCHINI, Cristina (org). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992. DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História das mulheres no ocidente: o séc XIX. Vol. 4. Porto: Afrontamento, 1991. ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840 1890). São Paulo: Brasiliense, 2004. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1977. Jornal Hoje
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