Gregório de Matos POEMAS SELECIONADOS
Características da linguagem barroca Quanto ao conteúdo Conflito entre fé e razão (visão antropocêntrica e teocêntrica); Oposição entre mundo material e mundo espiritual; Gosto por raciocínios complexos, desenvolvidos em parábolas e narrativas bíblicas; Sensualismo e sentimentalismo de culpa cristão; Consciência da efemeridade do tempo - Carpe diem.
Quanto à forma Poemas preferencialmente escritos na forma de SONETO (modelo petrarquiano ou italiano: com 4 estrofes, sendo 2 quartetos e 2 tercetos); Gosto pelas inversões (hipérbato) e por construções complexas e raras (rebuscamento formal).
Gregório de Matos Recebeu o apelido de Boca do Inferno, graças a sua irreverente obra satírica. Firmou-se como o primeiro poeta brasileiro: cultivou a poesia lírica, satírica, erótica e religiosa. O que se conhece de sua obra é fruto de inúmeras pesquisas, pois Gregório não publicou seus poemas em vida. Por essa razão, há dúvidas quanto à autenticidade de muitos textos que lhe são atribuídos.
A obra de Gregório de Matos é tradicionalmente dividida em torno de três grandes eixos temáticos: a poesia religiosa, a poesia lírica e a poesia satírica.
Poesia Religiosa A preocupação religiosa do escritor revela-se no grande número de textos que tratam do tema da salvação espiritual do homem e revelam a dicotomia entre a angústia do pecado e a esperança de salvação. Vejamos a seguir alguns poemas:
[A Cristo Senhor Nosso crucificado, estando o poeta na última hora de sua vida] - (p.58) Meu Deus, que estais pendente em um madeiro, Em cuja lei protesto de viver, Em cuja santa lei hei de morrer Animoso, constante, firme, e inteiro. Neste lance, por ser o derradeiro, Pois vejo a minha vida anoitecer, É, meu Jesus, a hora de se ver A brandura de um Pai manso Cordeiro. Mui grande é vosso amor, e meu delito, Porém pode ter fim todo o pecar, E não o vosso amor, que é infinito. Esta razão me obriga a confiar, Que por mais que pequei, neste conflito Espero em vosso amor de me salvar.
[Ao mesmo assunto e na mesma ocasião] (p.59) Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado, Da vossa piedade me despido, Porque quanto mais tenho delinquido Vos tem a perdoar mais empenhado. Se basta a voz irar tanto pecado, A abrandar-vos sobeja um só gemido: Que a mesma culpa que vos há ofendido, Vos tem para o perdão lisonjeado. Se uma ovelha perdida e já cobrada Glória tal e prazer tão repentino Vos deu, como afirmais na sacra história. Eu sou, Senhor a ovelha desgarrada, Recobrai-a; e não queirais, pastor divino, Perder na vossa ovelha a vossa glória. Obs. Note que o pedido de perdão é consequência de um curioso processo argumentativo, no qual o sujeito, apesar de pecador, coloca-se numa posição que lhe permite exigir o perdão divino.
Comentários: O poema segue o modelo clássico do soneto decassílabo. O rebuscamento marca a linguagem do poema, justificado pelo vocabulário não usual (sobeja, sacra), pelo hipérbato/ordem inversa da oração (Se basta a vos irar tanto pecado/se tanto pecado basta a irar-vos). A figuração intensa, destacando-se as figuras de linguagem típicas da poesia barroca, como o hipérbato, a antítese (pequei/mas não pequei, delinquido/perdoar, vos irar/abrandar-vos, ofendido/lisonjeado, culpa/perdão, ofendido/lisonjeado, perdida/cobrada, ovelha desgarrada/pastor Divino), metáfora (Eu sou, Senhor, ovelha desgarrada), hipérbole (A abrandar-vos sobeja um só gemido).
Poesia lírica (lírico-amorosa e lírico-filosófica) Na poesia lírico-amorosa, o poeta revela sua amada, uma mulher bela que é constantemente comparada aos elementos da natureza. Além disso, ao mesmo tempo que o amor desperta os desejos corporais, o poeta é assaltado pela culpa e pela angústia do pecado. Na poesia lírico-filosófica o poeta faz considerações sobre a condição humana diante da instabilidade do mundo e das incertezas da vida. Vejamos a seguir alguns poemas:
[Pondera agora com mais atenção a formosura de D. Ângela.] p. 51 Não vi em minha vida a formosura, Ouvia falar nela cada dia, E ouvida me incitava, e me movia A querer ver tão bela arquitetura. Ontem a vi por minha desventura Na cara, no bom ar, na galhardia De uma Mulher, que em Anjo se mentia, De um Sol, que se trajava em criatura. Me matem (disse então vendo abrasar-me) Se esta a cousa não é, que encarecer-me. Sabia o mundo, e tanto exagerar-me. Olhos meus (disse então por defender-me) Se a beleza hei de ver para matar-me, Antes, olhos, cegueis, do que eu perder-me.
[À mesma D. Ângela] (p. 53) Anjo no nome, Angélica na cara Isso é ser flor, e Anjo juntamente Ser Angélica flor, e Anjo florente Em quem, se não em vós se uniformara? Quem veria uma flor, que a não cortara De verde pé, de rama florescente? E quem um Anjo vira tão luzente Que por seu Deus, o não idolatrara? Se como Anjo sois dos meus altares Fôreis o meu custódio, e minha guarda Livrara eu de diabólicos azares Mas vejo, que tão bela, e tão galharda Posto que os Anjos nunca dão pesares Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda
Comentários Este é um dos mais representativos sonetos de temática amorosa do poeta. Como a maioria de seus textos, este também reflete uma circunstância de sua vida, o namoro com D. Ângela, não concretizado. A primeira estrofe inicia o jogo de palavras, que tem como base as metáforas Anjo e Flor, definidoras da pureza/anjo e da sensualidade/flor de amada, constituindo, pois, um paradoxo, isto é Cultismo. A mulher é pura, seu semblante é angelical, revelando-se ao mesmo tempo sensual. O que a princípio não parece problema. A segunda estrofe reafirma a ideia da primeira. O eu-lírico deslumbra-se com a possibilidade do carpe diem/quem não colheria aquela flor/quem não idolatraria aquele Anjo?
Na terceira estrofe, aparece o dilema característico do Barroco. A conjunção condicional SE coloca em dúvida todo o esplendor da figura feminina e questiona a sua condição de Anjo, contradição essa confirmada na última estrofe, iniciada com a conjunção adversativa MAS. A conclusão do poema nega a ideia inicial de Amor e de Mulher, nega o desejo do eu-lírico de colher a beleza da amada, porque esta na verdade parece Anjo, mas não é; Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda, o paradoxo final. Observe a visão contraditória, paradoxal do poeta barroco, marca de toda a poesia amorosa do período, em que o homem tem medo da beleza feminina, da figura da mulher, como o elemento causador da perdição de sua alma.
[À instabilidade das coisas do mundo] (p. 67) Nasce o Sol, e não dura mais que um dia, Depois da Luz se segue a noite escura, Em tristes sombras morre a formosura, Em contínuas tristezas a alegria. Porém se acaba o Sol, por que nascia? Se formosa a Luz é, por que não dura? Como a beleza assim se transfigura? Como o gosto da pena assim se fia? Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza, Na formosura não se dê constância, E na alegria sinta-se tristeza. Começa o mundo enfim pela ignorância, E tem qualquer dos bens por natureza A firmeza somente na inconstância.
Comentários: O poema, pertencente à linha reflexiva, filosófica de Gregório de Matos, revela um jogo de palavras(cultismo) construído de forma impecável pelas imagens paradoxais: Nasce o Sol, e não dura mais que um dia, Luz/noite, tristes sombras/formosuras, tristezas/alegria. Este jogo inicia-se com o paradoxo do primeiro verso, intensifica-se com as interrogações da segunda estrofe, para representar a angústia do artista barroco com a brevidade/efemeridade/fugacidade da vida. A terceira estrofe introduz o contraponto, o questionamento da fugacidade do Sol, da Luz, a inconstância de sua formosura, a falta de firmeza, nada é para sempre. A última estrofe fecha o raciocínio da poesia filosófica do Barroco, a conclusão: o mundo/a vida se inicia na ignorância, na ausência de conhecimento, e em seu curso/sua natureza, a única coisa certa é que tudo acaba, tudo é fugaz/efêmero. Isso gera o sentimento contraditório da poesia reflexiva do Barroco. Se por um lado o artista tem consciência da fugacidade da vida, deseja o carpe diem/colha o dia, ele é breve, por outro teme perder a salvação da alma, cair nas sombras eternas.
Poemas Satíricos Apresentam críticas à situação econômica da Bahia, especialmente de Salvador, graças à expansão econômica chegando a fazer, inclusive, uma crítica ao então governador da Bahia Antônio Luís da Câmara Coutinho. Além disso, faz severas críticas à Igreja e a religiosidade daquela época.
[Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia] (p. 85) A cada canto um grande conselheiro, Que nos quer governar cabana e vinha; Não sabem governar sua cozinha, E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um bem frequente olheiro, Que a vida do vizinho e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha, Para o levar à praça e ao terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, Trazidos sob os pés os homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia, Estupendas usuras nos mercados, Todos os que não furtam muito pobres E eis aqui a cidade da Bahia.
Gregório de Matos constrói o painel crítico e ácido da sociedade de que ele fazia parte. No soneto, o eu-lírico debocha dos governantes/arrogantes e incompetentes, dos indivíduos comuns/vizinho e vizinha fofoqueiros, dos mulatos desavergonhados (o autor era extremamente preconceituoso, como qualquer filho da elite da época), dos comerciantes/usuras nos mercados, os que não furtam são muito pobres. Observe a atualidade das críticas do poeta, pois vários comportamentos do século XVII permanecem em nossa contemporaneidade.
A atualidade da crítica do Boca do Inferno Leia os poemas a seguir, observando a intertextualidade do soneto do barroco Gregório de Matos e a letra do contemporâneo Caetano Veloso, para ratificar a contemporaneidade da poesia do Boca do Inferno
[À cidade da Bahia] (p. 25) Triste Bahia! Ó quão dessemelhante Estás e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, Rica te vi eu já, tu a mi abundante. A ti trocou-te a máquina mercante, Que em tua larga barra tem entrado, A mim foi-me trocando, e tem trocado, Tanto negócio e tanto negociante. Deste em dar tanto açúcar excelente Pelas drogas inúteis, que abelhuda Simples aceitas do sagaz Brichote. Oh se quisera Deus que de repente Um dia amanheceras tão sisuda Que fora de algodão o teu capote!
Triste Bahia Caetano Veloso Triste Bahia, oh, quão dessemelhante Estás e estou do nosso antigo estado Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado Rico te vejo eu, já tu a mim abundante Triste Bahia, oh, quão dessemelhante A ti tocou-te a máquina mercante Quem tua larga barra tem entrado A mim vem me trocando e tem trocado Tanto negócio e tanto negociante Triste, oh, quão dessemelhante, triste Pastinha já foi à África Pastinha já foi à África Pra mostrar capoeira do Brasil Eu já vivo tão cansado De viver aqui na Terra Minha mãe, eu vou pra lua Eu mais a minha mulher Vamos fazer um ranchinho Tudo feito de sapê, minha mãe eu vou pra lua E seja o que Deus quiser Triste, oh, quão dessemelhante ê, ô, galo canta O galo cantou, camará ê, cocorocô, ê cocorocô, camará ê, vamo-nos embora, ê vamo-nos embora camará ê, pelo mundo afora, ê pelo mundo afora camará ê, triste Bahia, ê, triste Bahia, camará Bandeira branca enfiada em pau forte
Afoxé leî, leî, leô Bandeira branca, bandeira branca enfiada em pau forte O vapor da cachoeira não navega mais no mar Triste Recôncavo, oh, quão dessemelhante Maria pé no mato é hora Arriba a saia e vamo-nos embora Pé dentro, pé fora, quem tiver pé pequeno vai embora Oh, virgem mãe puríssima Bandeira branca enfiada em pau forte Trago no peito a estrela do norte Bandeira branca enfiada em pau forte Bandeira
Comentários: No soneto, Gregório de Matos lamenta o estado de sua cidade, outrora rica, agora pobre. Há a personificação da cidade, por o eu-lírico se identificar com sua condição/a ti trocou-te e a mim foi me trocando. A condição de miséria da cidade se deve ao fato de ela se dar ao estrangeiro/brichote. O desfecho do poema possui teor moralizante, já que o poeta propõe como saída o retorno da cidade á condição de humildade, desejando por Deus! vê-la em simples capote de algodão, desprovida da sedutora seda. Gravado integralmente em Londres, em1972, Transa é o terceiro trabalho solo de Caetano Veloso. Marcante pela mistura de ritmos e de referências culturais e literárias, o disco traz em Triste Bahia uma analogia do compositor com o Boca do Inferno ambos perseguidos. Na letra, Caetano Veloso destaca aspectos culturais Mestre Pastinha, responsável pela difusão da capoeira na África e perseguido pelos militares - musicais e literárias para lamentar a perda da identidade de sua terra.
Links relevantes: Música do Caetanos para ouvir: https://www.youtube.com/watch?v=cs2l70zfvti Para ler outros poemas e análises: http://www.guiadelinguagens.com.br/dicas-de-estudo/barroco-poesiagregorio-de-matos/ http://zh.clicrbs.com.br/rs/vida-e-estilo/vestibular/noticia/2013/05/conhecacaracteristicas-de-poemas-de-gregorio-de-matos-4137689.html http://www.soliteratura.com.br/barroco/barroco05.php http://www.jornaldepoesia.jor.br/grego.html