A CONSTITUIÇÃO GUINEENSE DO PERÍODO DA TRANSIÇÃO POLÍTICA E AS PRERROGATIVAS MILITARES À LUZ DELA: LEGADOS AUTORITÁRIOS

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Transcrição:

A CONSTITUIÇÃO GUINEENSE DO PERÍODO DA TRANSIÇÃO POLÍTICA E AS PRERROGATIVAS MILITARES À LUZ DELA: LEGADOS AUTORITÁRIOS Roberto Sousa Cordeiro 1 Através do presente artigo, analisaremos, por um lado, a herança do regime autoritário à luz da Constituição da República emendada no limiar da transição política, isto é, a 4 de Maio de 1991, indo a ultima aprovada em 27 de Novembro de 1996, dois anos após as realizações das primeiras eleições Legislativas e Presidências na Guiné-Bissau; por outro lado, com um olhar nas prerrogativas militares, demonstraremos a forma pela qual a Constituição de Estado pode servir como uma das ferramentas fundamentais para a análise e a classificação do nível da democracia. De acordo com Stepan (1988, p. 521), destacam duas dimensões entre as várias colocadas pelo problema do controle civil sobre os militares. Uma delas trata da dimensão da contestação militar articulada contra a as políticas da nova liderança democrática civil. A outra refere-se à dimensão das prerrogativas militares institucionais. Este trabalho tem como propósito a análise dos regimes autoritário e democrático guineense, do ponto de vista destas dimensões. A dimensão das prerrogativas militares institucionais, conforme Stepan, Refere-se àqueles espaços sobre os quais, existindo ou não a contestação, os militares, como instituição, pressupõem que adquiram o direito ou privilégio, formal ou informal, de exercer um controle efetivo. Neste sentido, se consideram no direito de controlar sua organização interna, de desempenhar um papel nas áreas extra-militares dentro do aparelho do Estado, ou mesmo, de estruturar as relações entre o Estado e a sociedade política ou civil (STEPAN, 1988, p. 524). Entre 1974 e 1990, a Guiné-Bissau experimentou um longo período do regime predominantemente militar de sua história. O processo de liberalização, isto é, enfraquecimento desse regime se deu a 1 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro do Núcleo de Estudo Brasil/África da mesma universidade.

partir de 1991, data em que o regime autoritário, como parte da transição negociada do autoritarismo para a democracia, emendou o artigo 4º da constituição de 1984, que protegia o PAIGC como partido único em função do Estado e aprovou aquele que permitiu a legalização dos partidos políticos e as realizações das eleições. Mais uma vez, o PAIGC, além de ter cumprido o seu programa mínimo, que consistia em libertar os povos de Guiné-Bissau e Cabo Verde sob domínio da colonização, conquistando a soberania dos respectivos países, lançou as bases de construção de uma sociedade democraticamente livre. Tanto a constituição revisada no ano de 1991, como aquela aprovada e promulgada em 1996, manteve intacta a lei de segurança nacional atribuída às Forças Armadas. Durante o regime autoritário na Guiné-Bissau, como previu a constituição da República daquela época, quem fazia a segurança do presidente, dos ministros, incluindo todas as instituições de Estado foram as Forças Armadas. O regime autoritário fora derrocado, mas não a doutrina que sustenta o legado autoritário em pleno processo democrático. De acordo com a Constituição da República, aprovada em 27 de novembro de 1996, repito, as funções das Forças Armadas em relação à segurança nacional interna continuam firme tal como era no anterior regime autocrático. Assim, como aconteceu com muitos países da longa tradição autoritária, esta Constituição manteve muitas prerrogativas militares não-democráticas, existentes no passado regime de autoritarismo. A partir do período da transição política na Guiné-Bissau, muitos políticos usufruíram do apoio militar em relação à conquista do poder. Por isso, eles optaram por não questionar devidamente o legado autoritário do regime militar vigente. 2

Com base nesta realidade, obviamente, a mudança de regime não resolve a subsistência de inúmeras relações autoritárias de dominação, preexistentes historicamente e acentuadas pelo regime autoritário (O DONNEL, 1989, p. 331). As razões disto, diz O Donnel: Se encontram no próprio aparelho estatal, em parte pelas orientações próprias da burocracia, em parte porque dentro daquela se encastelam interesses sociais conservadores e/ou ligados ao regime autoritário, que reforçam e reproduzem intensamente relações de dominação de classe dentro da sociedade (O DONNEL, 1989, p. 331). Como Stepan (1988), O Donnel (1989), entre outros autores, têm frisado em relação ao caso brasileiro, por uma parte, há a notável continuidade e peso das Forças Armadas dentro dos governos civis democráticos guineense; por outra parte, a Guiné-Bissau, apresenta continuidade ainda maior em termos de pessoal político civil, os notáveis, do regime burocrático-autoritário precedente, principalmente, nos governos de PAIGC, após a transição política. Com as vitórias deste partido e do seu presidente General João Bernardo Vieira nas primeiras eleições Legislativas e Presidências, em 1994, a grande maioria dos membros do antigo regime não fora deslocado e/ou neutralizado na mudança do regime político, desta forma, muitos destes membros foram renomeados para assumir as novas funções nos Ministérios do Estado. Salvo a transição espanhola, como colocam alguns analistas, muitos países que fazem parte das transições da terceira onda (HUNTINGTON, 1994), inclusive da África, enfrentaram as resistências autoritárias, após a mudança do regime. Assim sendo, aparece, o que O Donnel (1989) considera um dos dilemas típicos da democratização: como produzir mudanças importantes em direção ao funcionamento do aparelho do Estado mais consistente com a mudança do regime político e ao mesmo tempo garantir o contínuo funcionamento desse aparelho durante esse processo? Concordando com Zaverucha (2005, p. 54) em relação à análise do caso brasileiro: Os civis, ao fortaleceram as prerrogativas militares constitucionalmente, deram aos amplos poderes dos militares um verniz democrático. Em termos procedurais. O processo de redação da Constituição foi democrático. Contudo, a essência do resultado não o foi. Não há com isto a intenção de invalidar a definição da democracia em termos de procedimentos, mas a de chamar atenção para as limitações de uma concepção subminimalista do tipo shumpeteriano, embora ela 3

seja condição necessária, mas não suficiente para se dizer que um país possui uma plena democracia. O caso brasileiro revela um nível de relação civil-militar de consenso e de uma democracia equilibrada, porque, com o fim da ditadura de 1964, período em que golpe militar possibilitou a cassação de alguns direitos civis e políticos durante 20 anos, o processo de redemocratização não conheceu nenhuma perturbação de golpe de estado, embora a tutela militar continue firme em algumas áreas das instituições coercitivas. Nem os governos civis conseguem impor total controle sobre as Forças Armadas e nem as Forças Armadas derrubam os governos eleitos pelo povo. O modo de relação civil-militar no Brasil é favorável para a democracia subminimalista schumpeteriana 2, mas não possibilita o seu progresso e a sua consolidação. Diferentemente, após a transição política na Guiné-Bissau, o Estado não consegue no mínimo segurar o estado de equilíbrio democrático, muito menos impossibilitar a deposição dos governos e presidentes constitucionalmente eleitos. A constituição de 1991 garantiu o direito de voto a todos os homens e mulheres maiores de 18 anos, representando percentagem maior da população. Além do direito a voto estabelecido, durante esse período, a organização de partidos foi livre. Com exceção da Frente de Luta para a Independência Nacional da Guiné (FLING), que se constituiu já nos anos 60, e do Movimento Bafatá (RGB-MB), fundado em 27 de julho de 1986, a maioria dos partidos legalizados nasceu após a queda do artigo 4º da Constituição de 1984, que aconteceu em 4 de maio de 1991, aprovando a lei que se refere ao quadro da fundação dos partidos políticos. 2 Schumpeter é um economista austríaco, no seu livro Capitalismo, Socialismo e Democracia, publicado em 1942, analisa a democracia como um método político, isto é, um certo tipo de arranjo institucional para chegar a uma decisão política (legislativa ou administrativa). Por outras palavras, a democracia, segundo ele, é pura e simplesmente quando existe a luta competitiva entre as elites por meio das eleições livres. 4

Nesse período a participação popular cresceu tanto em relação às eleições, quanto na participação em partidos e sindicatos. No entanto, esse movimento do processo democrático guineense foi interrompido pelos golpes militar de 1999 e 2003, e autogolpes realizados pelos presidentes da República, possibilitando a reversão autoritária (HUNTINGTON, 1994) e limites para a consolidação democrática. A atuação interna das Forças Armadas (FA) é um caso raro nas democracias exemplares e consolidadas. Pois, sabe-se que, uma vez treinadas para guerra e defender as fronteiras, a sua missão e atuação interna tendem a ser agressiva e violenta, quando a lei permite que elas ajam em função da segurança nacional do Estado. Desta forma, é provável que o processo eleitoral democrático sustentado no princípio da maioria e da vontade do povo venha sendo transgredido através dos golpes de Estado. Por isso, desde o início da transição política e/ou da abertura na Guiné Bissau, insisto, o processo democrático sempre depara com constantes turbulência e instabilidade política, isto porque, de um lado, os sucessivos governos nesse processo se manifestaram fracassados em combater, seriamente, por meios de mecanismos legais ou da Constituição, a intromissão das Forças Armadas nos assuntos políticos; por outro, a falta de consenso e contradições no seio dos partidos políticos, estando governos eleitos ameaçados pela luta do poder e pelos golpes, são empecilhos para a transição política guineense, conseqüentemente, enfraquecem o que para alguns analistas políticos é espelho de uma democracia e fornece motivos para entender se ela é ou não consolidada a instituição 3. 3 Sociologicamente, é uma configuração ou modelo de comportamento praticado por uma pluralidade de pessoas e que tem como objetivo fundamental satisfazer a necessidade do grupo. 5

Procurar fortalecer as instituições públicas, isto é, fazendo-as funcionar de forma estruturada e unificadamente sólidas, com valores e funções positivas 4, resulta numa democracia efetiva, que ajuda resolver os problemas sociais e políticos, respondendo às demandas de políticas públicas e garantir a lei constitucional, que seja capaz de moldar os comportamentos dos cidadãos, em particular dos militares, com base nos respeitos e obediências à própria norma constitucional. Caso contrário, os militares tendem a subverter, freqüentemente, a constituição propriamente dita adotada para a ordem da sociedade democrática. Não descartamos a idéia de que uma democracia pode não ser sólida quando as prerrogativas militares são baixas, porque, de acordo com pressupostos da teoria democrática minimalista, existem outras variáveis para a classificação da democracia. Um governo eleito pode governar impondo controle sobre as Forças Armadas e neutralizar as suas prerrogativas, mas pode não conseguir promover as eleições competitivas livres e limpas para Legislativo e o Executivo devido a manipulações de resultados, pode não conseguir promover uma cidadania adulta, direito social e proteger as liberdades civis e político dos cidadãos. Neste caso, a democracia fica apenas nos limites do critério subminimalista. Na Guiné-Bissau, os seguidos golpes de Estado, dissolvências de parlamento e demissões dos governos pelos presidentes, fazem com que existam apenas aparências da democracia subminimalista, isto é, baseada nos critérios da competição dos partidos políticos nas realizações das eleições. A prova disso deve-se ao fato de que nenhum presidente e governo, eleito após a transição política, conseguiu terminar o seu mandato devido golpes de Estado e demissões dos governos. 4 Pautam pelo controle da conduta humana e pela estabilidade política, social e cultural de uma determinada sociedade. 6

Tanto o critério subminimalista quanto o minimalista ainda não são efetivados, isto porque, são freqüentemente violados o sistema de competição dos partidos e a vontade do povo nas urnas, e nenhum governo consegue reduzir as prerrogativas militares e segurar forte resistência imposta pelas Forças Armadas. Stepan (1988), ao analisar as prerrogativas militares no Brasil, Argentina, Uruguai e Espanha, observa que existem casos em que podemos constatar alta prerrogativa militar e baixa contestação militar, isto é, o conflito articulado baixo. Este fato é contraditório com o caso guineense. Depois da independência da Guiné-Bissau, tanto no regime autoritário quanto no democrático, os militares desfrutam de um nível de autonomia relativamente alto no que refere as suas prerrogativas principais dentro de aparelho de Estado, ao mesmo tempo criam situações conflituosas através de golpes de Estado. Nem Nino Vieira dos regimes autoritário e democrático 5, nem Kumba Yalá do regime democrático consegue amenizar as prerrogativas militares formais. Isso mostra que, no entanto, a tutela dos braços armados do poder político continua vigente, visto que a Constituição continua encarregando os militares da responsabilidade principal pela lei e pela ordem interna, a atuação do militar é sempre do primeiro plano, inutilizando as funções de policiais. São poucos os casos em que os policiais são chamados a interferir impondo a ordem social. Os militares são responsáveis pela segurança do Estado, começando da presidência aos ministérios; os oficiais militares desempenham funções importantes no sector de defesa, sendo responsáveis pela segurança dos espaços aéreo e marítimo do país; os militares raramente provêm o legislativo e o executivo com informações detalhadas sobre o setor de defesa. Principal prova disso, foi o apoio 5 Porque, Nino Vieira governou nos dois regimes: autoritário e democrático. 7

dos militares em relação ao regresso de Nino Vieira do exílio em Portugal, sem antes os poderes Legislativos e executivos serem consultados e/ou estarem de acordo com tal regresso; em todos os processos da formação dos governos da transição pós-conflitos, os militares são decididos em relação às nomeações do presidente e dos ministros; os militares desempenham papel importante na delimitação dos padrões de promoção, e o Executivo encontra fortes empecilhos em termos de suas indicações nas listas de promoções enviadas por cada ramo militar. Por exemplo, os conflitos entre o executivo, presidente Kumba Yalá e o Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, general Ansumane Mané, em relação à nomeação dos generais pelo governo do PRS, resultaram no assassinato do referido general, sendo acusado de uma tentativa de golpe de Estado. São estas entre outras altas prerrogativas militares formais, que constituem o nosso principal objetivo de análise para o desfecho do presente estudo, levando-as em conta como umas das fontes de conflitos e de instabilidades para o funcionamento do sistema democrático guineense. Portanto, pretende-se trazer à tona, os itens dos artigos 20º e 21º da Constituição da República, que, foram mantidos intactos nas consecutivas emendas constitucionais a partir do período da transição. Estes artigos abaixo postos, a nosso ver, responsabilizam as Forças Armadas como principais árbitros da democracia guineense, responsáveis para a reposição da ordem interna e da segurança nacional, isto é, a nossa atual Constituição confere às FA a função de garantes da soberania, justificando as altas prerrogativas militares na Guiné-Bissau. Vale a pena ressaltar que, estes artigos eram da antiga Constituição do regime autoritário da década de 1980. Com as várias revisões em 16 de maio de 1984, 4 de maio de 1991, 4 de dezembro de 1991, 26 de Fevereiro de 1993, 9 de junho de 1993 e 4 de dezembro de 1996, os constituintes da nação mantiveram intactos estes artigos típicos do regime autoritário. Pelo bem da democracia representativa, da ordem pública e da estabilidade institucional, os militares precisam ser destituídos das funções da segurança nacional, da reconciliação nacional, conforme define a Constituição, sendo punidos pelos 8

constantes atos de golpe de Estado e das violações dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, atribuir à polícia civil, total responsabilidade da segurança nacional interna. Artigo 20º 1- As forças Armadas Revolucionários do povo (FARP), instrumento de libertação nacional ao serviço do povo, são a instituição primordial de defesa nacional. Incumbe-lhes defender a independência, a soberania e a integridade territorial e colaborar estreitamente com os serviços nacionais e específicos na garantia e manutenção da segurança interna e da ordem pública. 2- É dever cívico e de honra dos membros das FARP participar ativamente nas tarefas da reconstrução nacional. 3- As FARP obedecem aos órgãos de soberania competente, nos termos da Constituição e da lei. 4- As FARP são apartidárias e os seus elementos, no ativo, não podem exercer qualquer atividade política. Artigo 21º 1- As Forças de segurança têm por funções defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos e são apartidárias, não podendo os seus elementos, no ativo, exercer qualquer atividade política. 2- As medidas de polícia são apenas as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário. 3- A prevenção dos crimes, incluindo a dos contra a segurança do Estado, só se pode fazer com observância das regras previstas na lei e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. 9

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HUNTINGTON, Samuel p. (1994). A Terceira Onda: a democratização no final no final do século XX. São Paulo: Ática. O DONNEL, Guillermo; SCHIMITER, Philippe. (Orgs.). Transições do Regime Autoritário: sul da Europa. São Paulo: Vértice. 1988. O DONNEL, Guilhermo (1990). Análise do Autoritarismo Burocrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra. SCHUMPETER, Joseph (1961). Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura. STEPAN, Alfred. Os Militares na Política. Rio de Janeiro: Artenova, 1975.. Os Militares: Da abertura à nova república. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.., et al. Democratizando o Brasil (Org.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. ZAVERUCHA, Jorge (2005). FHC, Forças Armadas e Polícia: entre o autoritarismo e a democracia. Rio de Janeiro: Record. DOCUMENTOS OFICIAIS Assembléia Nacional Popular: Órgão supremo de soberania do povo guineense. Edição do Departamento de Informação, Propaganda e Cultura do Secretariado do Comitê Central do PAIGC. Constituição da República. Aprovada em 27 de novembro de 1996. Disponível em http://www.didinho.org. 10