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Transcrição:

A segunda resposta de Descartes a Mersenne sobre a objeção do Círculo nas Respostas às Segundas Objeções 193 Juliana Abuzaglo Elias Martins Doutoranda PPGLM- UFRJ Cefet-RJ Resumo Descartes anexou juntamente com o texto das Meditações Metafísicas uma série de sete objeções - e as respectivas respostas dadas por ele realizadas por estudiosos e intelectuais que lhe eram próximos. Dentre essas, existe uma que recebe o nome de circulo cartesiano e continua atualmente promovendo discussão. Ela sugere que o filósofo acabou por empreender uma redundância nas Meditações. Tal problema alude uma suposta dificuldade que existiria na construção argumentativa de Descartes para fundamentar a validade objetiva do conhecimento. É esta a questão que pretendemos expor no texto presente. Nesse sentido, realizamos uma introdução ao problema do círculo, apresentando o problema com uma análise da objeção de Arnauld e a resposta dada por Descartes a ele. Além disso, mencionamos também a objeção de Mersenne sobre também a mesma questão, bem como a resposta do filósofo a seu objetor. No presente texto, pretendemos também analisar um outro momento das Respostas, no qual Descartes ainda respondendo a Mersenne sobre a objeção do Círculo retoma um debate sobre algo que esteve presente em sua primeira resposta à Mersenne bem como também na reposta a Arnauld e que pelas evidencias textuais parece ser uma das bases da resposta do pensador moderno para o problema. Palavras-chave: Descartes, Circulo, Conhecimento

1-Introdução Grosso modo podemos afirmar que a objeção do círculo incide sobre a possibilidade e fundamentação do conhecimento, englobando a regra geral da verdade que diz que tudo que é por nossa mente percebido de modo claro e distinto é considerado verdadeiro. Esta regra uma vez posta em dúvida pela hipótese do Deus Enganador na primeira de suas seis meditações seria superada pela percepção de um deus existente e veraz, na terceira meditação. Desta maneira é gerado um círculo na argumentação de Descartes pois: as ideias claras e distintas só são legitimadas e tidas como verdadeiras porque Deus existe e é veraz, todavia, ao mesmo tempo, isso se torna um problema pois a percepção clara e distinta é usada como argumento para legitimar e provar a existência e veracidade divina. Constituindo assim numa argumentação circular. Haveria o círculo pois o que a prova da existência de deus resulta, ou seja, na legitimidade da clareza e distinção, seria aquilo que ao mesmo tempo é não só resultado, mas também é condição para a provarmos, é um requisito para a prova. Mersenne nas Segundas Objeções e Arnauld nas Quartas Objeções são os dois objetores que indagam o pensador a respeito desse problema. Lembremos as palavras dos objetores em suas objeções. Arnauld diz: Já Mersenne indica: 194 O último receio que tenho é não acreditar como possa ser negado existir um argumento circular na afirmação: a única razão segura que temos para acreditar que o que percebemos clara e distintamente é verdadeiro, é o fato de deus existir. Porém, podemos ter a certeza que deus existe apenas por perceber isto de modo claro e distinto, deste modo, antes de ter certeza que Deus existe, devemos possuir a certeza do que aquilo que percebemos como sendo clara e distintamente é verdade. Em Terceiro lugar, como ainda não estais certo da existência de Deus, no entanto não podes possuir certeza de nada ou conhecer qualquer coisa de modo clara e distinto, se antes não conheceres clara e distintamente Deus, segue-se que não conheces ainda que sejais uma coisa que pensa, pois de acordo com vós, este conhecimento dependeria do conhecimento de um Deus existente, e isso vós ainda não demonstrares na passagem onde concluis que claramente e distintamente conheces aquilo que és Em sua resposta a Arnauld Descartes diz claramente Já forneci uma adequada explicação deste ponto (circularidade) em minhas respostas as Segundas Objeções, nos pontos 3 e 4, onde eu realizo uma distinção entre o que de fato percebemos claramente e o que lembramos ter percebido claramente em situações anteriores.

195 Aqui notamos três coisas: a) a forte crença do filósofo de não haver cometido um círculo, b) a base da resposta parece ser a distinção entre o que da fato percebemos e o que lembramos perceber de modo claro e distinto, c) bem como a referencia à outra resposta a essa mesma questão, justamente a resposta dada a Mersenne, nos tópicos 3 e 4 das Segundas Objeções. Já na resposta a Mersenne Descartes novamente sugere uma distinção entre algo que é percebido de modo atual e algo que seria rememorado. Em outras palavras parece haver aqui também, assim como se repetirá na respostas ás quartas objeções de Arnauld, uma indicação por parte do pensador de que a dimensão temporal da percepção clara e distinta é determinante para sua validade. Lembremos a resposta a Mersenne: [...] onde afirmei que nada podemos saber de certo, se não conhecermos primeiramente que Deus existe, afirmei, em termos expressos, que falava apenas do conhecimento dessas conclusões, cuja lembrança nos pode retornar ao espírito, quando não mais pensamos nas razões de onde as tiramos... [...] Porém, se percebemos que somos coisas pensantes, trata-se de uma primeira noção que não é extraída de nenhum silogismo; e quando alguém diz: Penso, logo sou, ou existo, ele não conclui sua existência de seu pensamento como pela força de algum silogismo, mas como uma coisa conhecida por si ; ele a vê por uma simples inspeção do espírito. Nessa resposta a Mersenne é interessante observar mais uma vez a sugestão de uma oposição entre de um lado, o que ele diz ser lembranças de percepções (claras e distintas) ou de conclusões que nos retornam ao espírito e de outro, algo que ele denomina de primeira noção algo ao mesmo tempo é, nas palavras dele, conhecida por si e uma inspeção do espírito. Essa distinção entre a lembrança de conclusões e essas primeiras noções que seria intuídas pelo nosso espírito parece novamente servir de base para a resposta de Descartes ao problema do circulo. Tanto o é que no início da reposta ele já indica ainda que indiretamente- que seriam as lembranças de conclusões o tipo de percepção que o conhecimento de um Deus veraz legitimaria, ou, em outras palavras, seriam de tais percepções, das lembranças de percepções claras e distintas que a dúvida do Deus enganador incidiria. Concluímos isto pelas palavras do filósofo: onde afirmei que nada podemos saber de certo, se não conhecermos primeiramente que Deus existe, afirmei, em termos expressos, que falava apenas do conhecimento dessas conclusões, cuja lembrança nos pode retornar ao espírito

196 Desta maneira não haveria círculo, pois deste modo o conhecimento de um deus Veraz não geraria ou produziria o mesmo tipo de percepção sob o qual ele está fundado: a existência de deus possibilita, gera, produz conhecimento e legitimidade dessas percepções que lembramos ou rememoramos em nossa mente, (tendo uma vez já as percebido como clara e distinto) mas ele por si só, seria uma primeira noção, ou um principio intuído que seria conhecido por si só. Este parece ser o cenário até aqui. As objeções e a resposta de Descartes, baseada nessa distinção. Tentaremos a seguir dar continuidade a análise do texto de Descartes, mas especificamente o tópico quarto das Respostas às Segundas Objeções com o objetivo de aprofundar nossa compreensão das questões envolvidas. É no fim do tópico quatro das respostas às Segundas objeções que Descartes reave sua resposta à objeção do círculo, retomando a distinção que ele realizara no tópico terceiro, a saber, entre a certeza daquilo que seriam princípios intuídos e a dúvida que existiria a respeito de lembranças de conclusões deduzidas. Esta retomada é estruturada textualmente da seguinte maneira: num primeiro momento o filosofo reapresenta uma ideia que podemos encontrar já na Quinta Meditação segundo a qual seríamos de uma tal natureza que, tão logo pensamos claramente qualquer verdade, somos naturalmente levados a crer nela. A respeito desta tese, ao que nos parece, neste primeiro momento de sua resposta ele defende que há uma certeza produzida por essa persuasão e que ela poderia ser motivo para erradicar até mesmo alguma possível noção de falsidade, ou melhor, falsidade absoluta das nossas percepções claras e distintas. Nas palavras dele, tal persuasão seria [...] em tudo o mesmo que uma perfeitíssima certeza. A seguir tentaremos expor propriamente este momento, atentando para problemas que surgem ao longo do texto. 2- Falsidade absoluta e a certeza absoluta No primeiro momento o filósofo retoma então a sua ideia já presente na Quinta Meditação - de que existe uma inclinação natural da mente para dar assentimento àquilo que ela entende e percebe como clara e distinto. Nas palavras de Descartes Primeiramente, tão logo pensamos claramente qualquer verdade, somos naturalmente levados a crer nela. E se tal crença for tão forte que jamais possamos alimentar qualquer razão de duvidar daquilo que acreditamos desta forma, nada mais há que procurar: temos, no tocante a isso, toda a certeza que se possa razoavelmente desejar

197 Pelas palavras acima, notamos que para o filósofo a mente ao encontrar-se diante de uma percepção clara e distinta não consegue abdicar de dar adesão a ela, permanecendo persuadido e caracterizando uma certeza. Em outras palavras, parece tratar-se de uma afirmação forte na qual se verifica ser impossível que a mente não adira ao que é intuído como clara e distinto, mais ainda, não a julgue (a certeza) como verdade. Após esta constatação, no seguimento do texto, Descartes começa a introduzir a ideia de uma falsidade, especulando a hipótese de que se tal percepção, compreendida por nossa mente como clara e distinta, poderia mesmo percebida desta maneira, não ser de fato como a julgamos perceber. Tratar-se-ia, portanto de uma falsidade absoluta que poderia existir independentemente de nossa percepção que é clara e distinta, ou, nos apareceria assim. O que parece nos estar em jogo aqui é uma especulação ou questionamento do pensador se uma tal percepção, tido como verdadeira por nosso espírito, seria verdadeira também verdadeira? Com a continuidade do texto nota-se a posição do filósofo, na qual ela deixa claro que tal hipótese não é possível, pois a persuasão ou convencimento que nossa mente possui diante de uma percepção clara e distinta seria tal que para além de qualquer possibilidade de falsidade ou dúvida, Descartes a identifica a algo que ele denomina de perfeitíssima certeza. E a partir daí passa a desenvolver a noção de falsidade absoluta. Ele introduz assim tal conceito: Pois, o que nos importa, se talvez alguém fingir que mesmo aquilo, de cuja verdade nos sentimos tão fortemente persuadidos, parece falso aos olhos de Deus ou dos anjos, e que, portanto, em termos absolutos, é falso? Por que devemos ficar inquietos com essa falsidade absoluta, se não cremos nela de modo algum e se dela não temos a menor suspeita? Pois pressupomos uma crença ou persuasão tão firme que não possa ser suprimida; a qual, por conseguinte, é em tudo o mesmo que uma perfeitíssima certeza Mas é realmente dubitável que tenhamos qualquer certeza dessa natureza, ou qualquer persuasão firme e imutável Nesta passagem, verificamos que como mencionamos acima, uma noção de falsidade absoluta é sugerida ou considerada em contraponto com nossa percepção clara e distinta. Entretanto, a posição de Descartes parece ser firme: a certeza que possuímos frente a uma percepção clara e distinta é tal que afasta a possibilidade de que aquilo de temos certeza ou estamos persuadidos possa ser falso, mesmo para Deus ou mesmo para os anjos. Por isso tal certeza ou persuasão é em suas palavras:...em tudo o mesmo que uma perfeitíssima certeza. Porém, na mesma passagem, um interessante fato pode ser observado. Ao mesmo tempo em que defende a existência de uma certeza perfeitíssima, a qual ele adjetiva ainda de

firme e imutável, ele reconhece que é dubitável que possamos ter uma certeza deste tipo. O que primeira vista poderia soar um pouco incoerente. Mas não tanto se considerarmos que dubitável seria algo que possa ser passível de duvida, não o sendo de fato. Todavia é inegável que isso gere e mereça ser discutido posteriormente. Se então Descarte conclui, ao que nos parece nesse momento do texto, não haver uma noção de falsidade absoluta, a percepção que percebemos como clara e distinta, constituindo a perfeitíssima certeza, não pode ser e não é diferente do modo como a percebemos. Parece-nos que esta noção de certeza abarcaria um caráter absoluto, indo de encontro com a noção de certeza que Descartes ambiciona nas Meditações Metafisicas e que podemos encontrar na quarta meditação. Lá, verifica-se a defesa de uma certeza que seria certeza de que todas as coisas entendidas clara e distintamente são verdadeiras, do modo mesmo como as entendemos. De modo semelhante também podemos lembrar aqui da noção de certeza exposta e sugerida nos Princípios da Filosofia. Lá vemos o filósofo realizar uma distinção entre certeza moral e certeza absoluta ou metafísica (algo realizado também no Discurso do Método e nas Sétimas Objeções e Respostas). 198 Existem algumas coisas, mesmo no que concerne àquelas relativas à natureza, que são estimadas como absolutamente, e mais do que moralmente, certas; estas se assentam num fundamento metafísico, qual seja, que Deus é sumamente bom e de modo algum enganador, e, consequentemente, que a faculdade que ele nos deu para distinguir o verdadeiro do falso não pode errar, quando a usamos retamente e por meio dela percebemos algo distintamente Parece nos então diante das palavras acima, que esta certeza metafísica encontrada nos princípios, elimina qualquer possibilidade de as coisas serem distintas do modo como nós percebemos, e assim se assemelharia a noção de certeza das Segundas Respostas que estamos analisando. Como vimos, tal certeza é algo que além de ser percebido como claro e distinto, é tão certo que não pode nem ser considerado falso para Deus e nem para os anjos. Se for assim, trata-se de uma certeza que supõe a erradicação de uma falsidade absoluta. O que consequentemente nos possibilitaria uma especulação inversamente proporcional sobre um igualmente aspecto absoluto para tal certeza. Deste modo, se considerarmos que tal certeza pode ser absoluta, um problema então se coloca para nós: tal certeza absoluta e nas palavras

199 Descartes, perfeita, independeria do conhecimento de um deus veraz? Esta questão revela-se de difícil abordagem dadas as complexidades para se entender as afirmações do filósofo. No contexto que estamos analisando e no qual surge a ideia de uma tal perfeitíssima certeza, as Respostas as Segundas Objeções, Descartes está respondendo a Mersenne sobre qual seria o fundamento possível para construirmos e apoiar a certeza produzida pelo sujeito cognoscente, ou, a certeza humana. Ao mesmo tempo, nas Meditações encontramos passagens que servem de forte base textual para indica que o pensador associa esta certeza ao conhecimento de Deus. Na própria passagem citada pouco acima por nós, na Quarta Meditação, ele agrega a certeza da percepção clara e distinta ao conhecimento de Deus. Neste mesmo momento ele assinala que a certeza que podemos ter de que tudo que é percebido por nós como claro e distinto é, de fato, do modo mesmo como as percebemos ser, foi algo que não pôde ser provado antes da Quarta Meditação. Também na meditação seguinte, ele realiza uma afirmação que vai de encontro com a passagem da Quarta. Diz Descartes na Quinta Meditação: [...] a certeza e a verdade de toda a ciência dependem unicamente do conhecimento do verdadeiro Deus, de tal maneira que, antes de o conhecer, não [pudemos] saber perfeitamente nada sobre nenhuma outra coisa. Após então estas afirmações nas Meditações, poderíamos supor que nas Respostas as Objeções, parte que integra a obra Meditações, o filósofo concluísse ou defendesse que se existe uma certeza, que abole e erradica até mesmo uma falsidade absoluta, tal certeza seria atingida através da existência de um Deus veraz. Entretanto, não é isso que parece que o filósofo sustenta. O que Descartes diz como já expomos acima é que [...] tão logo pensamos claramente qualquer verdade, somos naturalmente levados a crer nela não obstante e de maneira alguma prossegue ele devemos ficar inquietos com essa falsidade absoluta, se não cremos nela de modo algum e se dela não temos a menor suspeita. Esta afirmação talvez possa sugerir que uma verdade, enquanto percepção de modo clara e distinto independeria do Conhecimento de Deus para sua certeza. De todo modo, trata-se de uma questão ainda por ser desenvolvida e explorada. Voltando ao texto das Segundas Respostas, como foi possível verificar nas citações acima, após debater os conceitos de falsidade absoluta e certeza perfeita, ele imediatamente afirma [...] é realmente dubitável que tenhamos qualquer certeza dessa natureza, ou qualquer persuasão firme e imutável. Apesar desta afirmação, os indícios textuais nos levam a sugerir que o pensador acreditava que tal certeza, apesar de dubitável, poderia ser obtida. Uma

evidencia disto é que logo em seguida, no mesmo texto, ele passa então a discutir e especular sobre aquilo que podermos identificar como algumas condições dessa certeza perfeitíssima. Passemos a estes pontos agora. Descartes indica então alguns requisitos para se obter tal certeza. Vejamos quais seriam estes. Podemos ler na sequencia do texto: 200 Muitas vezes já notamos que no sentido pode haver erro, como quando um hidrópico sente sede, ou a neve parece amarela a quem sofre deicterícia; pois este último não a vê menos clara e distintamente desta forma do que nós a quem ela parece branca. Podemos deduzir destas palavras do filósofo que não conseguiríamos apreender uma tal certeza se nossa percepção proceder dos sentidos. Mais ainda, como é ressaltado na passagem, mesmo esta percepção sensorial seja por mim percebida de modo claro e distinto, ela pode sim nos enganar e levar ao erro. Desta maneira, somente a clareza e distinção não parece ser um requisito forte para atingirmos uma certeza. Pois mesmo, se apresentando este modo a nossa mente, as percepções sensoriais podem ser enganosas, e mostram a nós que aquilo que julgamos como verdadeira, na realidade, é falso. Então, as condições exatas que parecem ser apontados aqui como fundamentais para a certeza absoluta são a clareza e distinção, e a percepção derivar do intelecto e não da experiência sensória. Esclarece nesse sentido Descartes: Resta, portanto, que, se podemos tê-la, é somente das coisas que o espírito concebe claramente e distintamente. Bibliografia DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 3ª ed., 1983. (Col. Os Pensadores ). DESCARTES, René. Oeuvres de Descartes, ed. C. Adam and P. Tannery, Paris: Vrin: vol IX.