Jó 14,13-17: uma resposta à Palavra de Deus

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Transcrição:

ISSN 1676-3742 Jó 14,13-17: uma resposta à Palavra de Deus Job 14:13-17: a response to the Word of God Ednéa Martins Ornella Resumo Com a redação de Jó 14,13-17 considerada do século V a. C., analisamos o contexto histórico, econômico, social e religioso em que foi redigida, as implicações para a vida do povo de Israel e o significado teológico da poesia. Buscamos estabelecer o que motivou Jó a desejar esconder-se no sheol, por tempo determinado, até YHWH desistir de sua ira e voltar a se recordar dele. A concepção da doutrina da retribuição da época se mostrava incompatível com o sofrimento do justo e fiel, vítima da crise social que degradava o pobre cada vez mais. A classe alta espiritualizada foi chamada a dar uma resposta à Palavra de YHWH que ama os pobres. Este estudo lembra que a prática da lectio divina do passado deveria se repetir no presente, desde que se permita que o texto ultrapasse nossos próprios pensamentos e nos sensibilize de forma pessoal e comunitária para uma resposta à Palavra divina, através de uma atitude cristã diante do sofrimento humano. Palavras-chave: Livro de Jó; Redenção; Reconciliação; Salvação. Abstract Given that Job 14.13-17 is believed to have been written as early as in the 5th century BC, we herein analyze the historical, economic, social, and religious context in which it was written, as well as its implications on the life of the people of Israel and the theological meaning of this piece of poetry. We also try to determine what motivated Job to hide himself in Sheol for a set time, until YHWH s wrath ceased, so that he could be once again remembered by YHWH. Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v.48, p. 611-622, set./dez.2014 611

The conception of the retribution doctrine of that time was incompatible with the suffering of the righteous and faithful, victimized by the social crisis that increasingly worsened the situation of the poor. The spiritualized upper class responded to Word of YHWH, who preached the love for the poor. This study points out that the ancient practice of lectio divina should be reestablished in the present, provided that the text is allowed to exceed our own thoughts, being able to touch us both personally and communally for a response to the Divine word, through a Christian attitude in the face of human suffering. Keywords: Book of Job; Redemption; Reconciliation; Salvation. Introdução Lemos, meditamos e na oração somos chamados a dar uma resposta à Palavra de Deus. O dom divino nos permite olhar a realidade e perguntar: Que conversão da mente, do coração e da vida o Senhor nos pede em Jó 14,13-17? Qual o sentido do desejo de Jó, manifestado no poema, de que o Senhor o esconda no sheol? A tradição do antigo Israel era de que o sofrimento e a miséria eram causados pelo pecado do homem. No entanto, Jó subverte o ensinamento da doutrina da retribuição. Qual a intenção do autor com esta polêmica? Vamos buscar a resposta a partir do contexto histórico-social da redação da poesia. 1. O contexto histórico-social da redação de Jó 14,13-17 Diante das argumentações colocadas pelos estudiosos do tema, concordamos que a redação da poesia é pós-exílica, do século V a. C. São compatíveis com o período: 1) a crítica do autor à doutrina da retribuição, quando a nação israelita testemunhava seu fracasso como entidade político-religiosa, acreditando que YHWH a abandonara injustamente 1 ; 2) a estrutura urbana relatada no diálogo, com quadras públicas e portões (cf. Jó 5,4; 29,7; 31,21), onde ocorriam os acordos jurídicos e negócios públicos, evidência de uma sociedade agrícola e não nômade; 3) cumprimento das exigências da Aliança de culto exclusivo a YHWH e respeito ao próximo 2. 1 Cf. MORLA, V. Job 1 28, Bilbao: Desclee De Brouwer, 2007, pp. 12-13. 2 Cf. COOGAN, M. D. The Social Worlds of The Book of Job. In: Schloen, J. David (ed.), Exploring The Longue Durée 8: Essays in Honor of Lawrence E. Stager. Winona Lake: Eisenbrauns, 2009, pp. 77-81. 612 Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v.48, p. 611-622, set./dez.2014

Nesta época, os exilados puderam retornar da Babilônia. Ciro, rei da Pérsia, dominador tolerante, permitiu a reinserção dos exilados e a reconstrução do Templo de Jerusalém. Israel procurava se organizar e reafirmar sua identidade nacional, com a atuação de Esdras e Neemias e dos profetas Ageu, Zacarias e Malaquias. Este último reporta como uma época de desordens, com sacerdotes que não exerciam o cargo de forma devida, leigos acusados de leviandade com a religião e a prática de matrimônios com estrangeiros. Foi também uma época de crise econômica (cf. 2Rs 4,1; Am 2,6; Is 50,1) em que: 1) a reconstrução das muralhas de Jerusalém, empreendida por Neemias, se tornou enorme e pesado fardo para o povo, obrigado a trabalhar na obra, além da própria atividade; 2) a reforma de Dario, que estipulava o pagamento de tributos em moeda de prata, exigia um excedente de produção; 3) a questão climática podia ameaçar o êxito da produção agrícola. Os pequenos agricultores, que plantavam para a própria subsistência, não conseguiam produzir o suficiente para pagar os impostos e sobreviver. Os pobres não tinham como pagar suas dívidas e penhoravam a propriedade, a si próprios e a família, terminando todos vendidos como escravos para estrangeiros. Para Neemias, a decadência da cidade era fruto do contato com os estrangeiros e, por isso, adotou medida política segregacionista que se converteu no fundamento da nova Jerusalém. O casamento com estrangeiros passou a ser uma transgressão à Lei e o motivo das desventuras de Jerusalém (cf. Ne 13,23ss). O capital estrangeiro foi expulso de Jerusalém e o poder sadoquita foi quebrado. Foram retomados o pagamento dos dízimos ao Templo, a observância do sábado e a determinação do oferecimento ao Templo de tudo que era devido a YHWH. Os que não concordaram com as medidas exilaram-se na Samaria. 3 O livro de Neemias relata o protesto que o povo apresentou ao governador contra os ר ים,ח nobres, e os,ס ג נ ים magistrados (cf. Ne 5,7). Queixava-se de não colher o suficiente para comer e sobrar para plantar nova safra, vender e obter dinheiro para pagar os impostos. A classe alta tirava partido da situação enriquecendo cada vez mais com o beneficio do direito de crédito sobre os endividados. Neemias repreendeu os aristocratas e impôs o perdão das dívidas e a devolução dos bens e escravos penhorados, com base na tradição das antigas isenções extraordinárias (cf. Ne 5,6-13). 3 Cf. SACCHI, P. Historia del Judaísmo en la época del Segundo Templo. Madrid, Editorial Trotta, 2004, pp. 151-157. Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v.48, p. 611-622, set./dez.2014 613

As medidas não foram suficientes e o povo, empobrecido, continuava a se degradar. Apresentou-se um grande desafio ético-religioso para a comunidade e a classe alta. Certamente, sabendo que YHWH ama os pobres, tiveram de dar uma resposta à palavra do Senhor. O estudo da estrutura do poema, sua delimitação, tradução e análise semântica ajudam na compreensão do texto como parte da resposta a YHWH. 2. Jó 14,13-17 no contexto do livro de Jó O livro de Jó possui gênero literário e estrutura próprios, com seus 42 cc. distribuídos entre narrativa (prólogo e epílogo) e poesia. A estrutura poética, bipartida, está dividida em cc. 3-27.28 e cc. 29-41. O c. 3 é o primeiro discurso de Jó, de uma série de diálogos entre Jó e seus três amigos (Elifaz, Baldad e Sofar), e o c. 28, com o discurso da Sabedoria, faz um balanço final desse debate. A primeira parte da estrutura bipartida possui três ciclos de discursos: os cc. 3-11, os cc. 12-20 e os cc. 21-27. Cada um destes ciclos começa com um discurso de Jó. No segundo ciclo, nos cc. 12-14, está um discurso de Jó em resposta à fala de Elifaz, desmascarando os amigos e se dirigindo diretamente a YHWH. Um discurso longo, formado de quatro poemas: c. 12, c. 13,1-19, c. 13,20-28 e c. 14. 4 O quarto poema (c. 14) possui 22 vv. onde se encontra Jó 14,13-17, uma unidade literária, centro de um quadro com duas molduras, uma anterior (Jó 14,1-12) e uma posterior (Jó 14,18-22). As duas molduras têm como tema a vida do homem comparada à vida da natureza. O centro do quadro (Jó 14,13-17) tem temática diferente, com o autor parecendo deter-se em uma reflexão mais profunda e abandonando as comparações do homem com a natureza. מ י י ת ן ב ש א ול ת צ פ נ נ י ת ס ת יר נ י ע ד ש וב א פ ך ת ש ית ל י ח ק 13a 13b 13c 13d 13e Quem dera no sheol me ocultasses, me escondesses, até desistires de tua ira? Me fixasses um tempo, 4 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L. SICRE DÍAZ, J. L. Job, Comentario teológico y literario. Madrid: Ediciones Cristiandad, 2002, p. 54. 614 Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v.48, p. 611-622, set./dez.2014

ו ת ז כ ר נ י א ם י מ ות ג ב ר ה י ח י ה כ ל י מ י צ ב א י א י ח ל ע ד ב וא ח ל יפ ת י 13f 14a 14b 14c 14d e, então, recordasses de mim. Se morrer o homem, acaso viveria? Todos os dias da minha luta eu aguardaria com ansiedade até chegar o meu indulto. 15a ת ק ר א Convocar-me-ias, 15b ו אנ כ י א ע נ ך e eu te responderia: 15c ל מ ע ש ה י ד י ך ת כ ס ף da obra de tuas mãos sentirias saudade. 16a כ י ע ת ה צ ע ד י ת ס פ ור Porque agora, meus passos contarias, 16b לא ת ש מ ור ע ל ח ט את י não vigiarias sobre meu pecado; 17a ח ת ם ב צ ר ור פ ש ע י selada no seixo minha transgressão, 17b ו ת ט פ ל ע ל ע ונ י branquearias minha iniquidade. Jó 14,13-17 apresenta verbos e substantivos marcados, em sua maioria, pelo uso de partículas e sufixos ligados à primeira pessoa comum singular e à segunda pessoa singular masculino, indicando predominância de uma reflexão sobre a identidade pessoal no contexto de indagação com a divindade. A mudança de temática e o uso da expressão idiomática י י ת ן,מ introduzindo um desejo incompatível com a constatação do contido na moldura anterior ao poema, sobre a transitoriedade da vida, evidenciam a unidade literária, cujo esquema abaixo ajuda na compreensão do seu significado teológico. Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v.48, p. 611-622, set./dez.2014 615

3. Significado teológico de Jó 14,13-17 Jó deseja esconder-se no sheol, um desejo paradoxal, pois quer ser escondido de YHWH pelo próprio YHWH, de quem ninguém se esconde. 5 O desejo צ פ ן é enfatizado com o uso de dois verbos de significados semelhantes, ocultar e esconder ת ר.ס O povo de Israel não tinha condições de lutar contra o império persa e os altos impostos cobrados, mas esconder-se no sheol não fazia sentido para eles, que valorizavam a vida, considerando que a mesma deveria ser vivida plenamente, com o desfrute dos recursos da criação, numa vida longa, 5 Uma ironia do autor (cf. SEOW, C. L.. Hope in two keys: Musical Impact and the Poetics of Job 14. In: Congress Volume Ljubljana [2007], pp. 495-510). 616 Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v.48, p. 611-622, set./dez.2014

com saúde, felicidade, prosperidade e muitos descendentes. 6 Morrer significa ir para o sheol, de onde não há retorno, longe de YHWH, de todos e de tudo (cf. Sl 88,6). E, por isso, temendo não sobreviver à ira divina 7, Jó quer um tempo para que YHWH vá dele se recordar e, assim, possa voltar. A pergunta retórica Se morrer o homem, acaso viveria? torna a argumentação eloquente e traz a questão do limite da vida dado por YHWH, Senhor da vida e da morte. Jó, em seu sofrimento, não desfruta de uma vida plena. O uso do verbo, aguardar, mostra sua esperança durante seus dias de luta. O verbo na forma piel dá o sentido de uma espera ansiosa, até chegar o, o indulto, quando YHWH convocar e Jó responder. O jogo dialogal com os verbos e, com YHWH convocando e o homem respondendo, evidencia o desejo da relação. 8 O homem precisa de YHWH e YHWH precisa do homem. 9 O uso do vocábulo, obra de tuas mãos, ao invés de, homem, parece realçar o fato de o homem ser um feito divino e, como tal, estar nas mãos de YHWH. Há uma hierarquia entre e, mas é YHWH que domina o processo em que, contudo, vai sentir saudade ( ) de sua obra. A esperança faz Jó exclamar:, porque agora, um sinal de esperança de um novo tempo, um futuro de felicidade 10, no qual YHWH vai contar os passos de Jó, como pai amoroso que guia os passos do filho para que não caia. 11 Há uma busca pela interação e relação, equilibradas, entre YHWH e o homem. Na negativa do não vigiar sobre o pecado, não ( ) sobre o ( ), YHWH oferece esperança de transformação, possibilidade de 6 Cf. MARTIN-ACHARD, R. Da Morte à Ressurreição segundo o Antigo Testamento. São Paulo: Editora Academia Cristã Ltda, 2005, pp. 20-21. 7 A questão para Jó é saber se verá o fim da ira de YHWH e terá seu destino mudado ou se será esquecido por YHWH no sheol (cf. SCHONOCKS, J., The Hope for Ressurrection in the Book of Job. In: The Septuaginta and Messianism. Leuven: M. A. Knibb [2006], p. 291-292). 8 Ouvir e responder constitui a natureza própria do ser humano aberto ao diálogo com o divino (cf. Is 50,4s) (cf. WOLFF, H. W. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2008 p. 131). 9 Cf. PINKER, A. Job s Perspectives on Death. In: Jewish Bible Quarterly 35 (2007), pp. 73-85. 10 O momento de sair do sheol é o momento de viver uma vida plena, livre de mesquinhas e desapiedadas perseguições divinas (cf. Jó 14,16-17) (cf. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, L. Um caminho através do sofrimento, O Livro de Jó. São Paulo: Paulinas, 2011, pp. 70-72). 11 Jó se submete, reconhecendo que tem seus passos contabilizados por YHWH (cf. Jó 14,16a), e mesmo que algumas vezes imagine que YHWH possa ser seu inimigo, vive no mundo criado por YHWH e, a cada passo vê mais claramente para além dessa inimizade (cf. TERRIEN. S., Job: Poet of Existence. Oregon: Wipf and Stock Publishers, 2004, p.132). Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v.48, p. 611-622, set./dez.2014 617

uma vida de justiça para todos. Com sua misericórdia, YHWH vai selar ( no seixo a transgressão humana ) num lugar hermeticamente fechado, vai branquear a iniquidade, a ( ). Os três substantivos, e chamam a atenção para a perfeição do perdão de YHWH diante da condição humana. Em seguida, seguimos inteiramente o estudo de Rainer Albertz 12 para explicar a resposta dada pela classe alta à palavra do amor divino misericordioso que redime, reconcilia e salva. 4. A solidariedade para com o irmão desafortunado A crise dividiu a classe alta em, justos e, ímpios. A obra de Jó é uma resposta pastoral da classe alta espiritualizada, também solidária, contra a postura sedutora dos ímpios. A classe espiritualizada solidária desenvolveu um trabalho pastoral, mantendo as obrigações de misericórdia com os irmãos desventurados. Internamente, protegiam os membros do próprio grupo, sujeitos também às adversidades do clima e da política. Externamente, trabalhavam contra a postura sedutora dos ímpios. Nas escolas, faziam campanhas para neutralizar a influência egoísta, utilizando uma série de sentenças curtas na alfabetização. Pretendiam fixar nos jovens as duas alternativas, a piedade e a impiedade, com a qual teriam que conviver socialmente e fazer escolhas. Apresentavam exortações com a relação entre religiosidade e atitude ética. Os ditos repetiam inúmeras vezes o quão mal é o ímpio, e o destino que o espera. Na celebração litúrgica, propagavam a atitude solidária mostrando que sem ela a comunidade estava ameaçada. Pretendiam fixar a conduta do ouvinte à lei divina, em favor da partilha fraterna, evitando que os egoístas fossem imitados. Os solidários percebiam ser o verdadeiro Israel e cuidavam da comunidade. O drama de Jó 14,13-17 é o drama da classe alta solidária. Na narrativa, Jó é o homem justo ( ), piedoso ( ), aristocrata, rico e estimado, pai dos pobres, aquele que liberta o pobre do jugo dos ímpios com sua misericórdia. No contexto das leis e tradições judaicas, Jó representa o aristocrata que tem escravos e meeiros, mas é humano e misericordioso. O autor concorda que há uma ordem harmoniosa no mundo criado por YHWH, mas nele existem forças que se opõem. O sofrimento nem sempre é resultado de pecado nem desejo de 12 Cf. ALBERTZ, R. Historia de la religión de Israel em tiempos del Antiguo Testamento. V.1. Madrid: Editorial Trota, 1999, pp. 661-708. 618 Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v.48, p. 611-622, set./dez.2014

Deus. No entanto, o ímpio mantinha a situação que justificava seu egoísmo, sentindo-se ainda digno da bênção divina. O pobre era considerado infiel e pecador, devendo conformar-se com seu sofrimento. A expressão poética, branquearias minha iniquidade, lembra que YHWH com sua misericórdia abre um novo horizonte relacional com o ser humano. A caiação espessa é dada à parede para que adquira boa aparência, uma imagem da misericórdia divina que perdoa, mas não esquece nossos pecados. Perdoar a dívida do pobre significava atender ao desejo divino, incluí-lo novamente no mercado, tornando-o apto a consumir e ajudar a impulsionar a economia, trazendo riqueza para toda a comunidade. Não há sentido em um Senhor da Criação déspota e caprichoso, que não se preocupa com o ser humano. Com o sofrimento o israelita se sentia como se estivesse próximo de estar morto, quase no sheol. O texto exclama: Quem dera!. A fé em YHWH e o desejo de um mundo melhor exigia uma reflexão. Conclusão A Bíblia é a palavra de Deus para todas as épocas. A crise em Judá serviu para o autor do livro de Jó fazer uma reflexão sobre o destino do homem, o sofrimento e a realidade em que vivia. Jó não perde a fé e a esperança de um mundo mais justo. O pecado é inerente ao homem, mas YHWH oferece sempre uma saída para o pecador (cf. Jó 14,13-17), que tem livre arbítrio nas escolhas que faz (cf. Jó 8,4). No mundo hodierno prospera o consumismo exacerbado ao lado da Teologia da Prosperidade, com seu sistema de trocas com Deus, onde poucos têm muito e muitos têm tão pouco que vivem no vale da fome, da doença e da miséria. Portanto, a Palavra de Deus pede uma resposta urgente de todos em prol de um mundo melhor e mais justo. Jó 14,13-17 se mostra atual e de acordo com o afirmado na GaudiumEtSpes: as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e dos que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Como os aristocratas da classe alta espiritualizada, o cristão de hoje pode responder à palavra divina procurando transformar o mundo, minimizando o sofrimento e aproximando-se de Deus, que em sua misericórdia redime, reconcilia e salva. Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v.48, p. 611-622, set./dez.2014 619

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