COMPANHIA DE COMÉRCIO DE PERNAMBUCO E PARAÍBA: ESTATUTO E FUNCIONAMENTO Clara Farias de Araujo 1 Resumo: Este trabalho pretende analisar a Companhia de Comércio de Pernambuco e Paraíba (1758-1778), tendo como ponto de partida a realização de um estudo comparativo entre o alvará de instituição e uma representação dos homens de negócio da praça de Pernambuco, nos quais se fundamentava a organização das atividades e administração. O estudo verifica que a reivindicação de privilégios mercantis feita pelos homens de negócio se baseava em privilégios sancionados pela Coroa nos estatutos de outras companhias que conferiam incentivos reais na forma de distinções sociais, mas alargava as vantagens mercantis já estabelecidas no alvará de instituição da Companhia. Palavras-chave: Companhia, Pernambuco, privilégios Abstract: This work intends to analyze the Company of Trade of Pernambuco and Paraíba (1758-1778), tends as starting point the accomplishment of a comparative study between the institution permit and a representation of the homens de negócio da praça de Pernambuco, us which it was based the organization of the activities and administration. The study verifies that the revindication of mercantile privileges done by the business men based on privileges sanctioned by the Crown in the statutes of other companies that checked real incentives in the form of social distinctions, but it enlarged the mercantile advantages already established in the permit of institution of the Company. Key-words: Company, Pernambuco, privilege 1 Doutoranda na UFRJ, bolsista da Capes.
O decreto de Sua Majestade de 22 de dezembro de 1758 estabeleceu em Pernambuco e Paraíba uma bem regulada Companhia Geral do Comércio com as mesmas condições, e privilégios da do Grão Pará e Maranhão (AHU, PE, cx. 90, d. 7214). Para o desenvolvimento de uma reflexão inicial sobre o seu funcionamento como fontes principais utilizarei o alvará de instituição confirmado em 13 de agosto de 1759, comparando-o com o disposto na representação dos homens de negócio da praça do Recife, sem data, anexada a um ofício de 12 de março de 1759. O uso do alvará concomitante ao da representação cumpre uma função estratégica. A um primeiro olhar, pensei tratar-se de documentos similares, mas um exame cuidadoso revelou disparidades, principalmente no que concerne aos privilégios. O primeiro favorecia a Junta em Lisboa e a Direção no Porto e o segundo, mais afeito à praça do Recife, requisitava vantagens e distinções para aqueles que entrassem com avultadas somas. Constituir-se-ia um corpo político com uma Junta e duas Direções. A Junta estabelecida em Lisboa, contaria com um provedor, dez deputados, um secretário e três conselheiros; as duas Direções, uma no Porto e a outra em Pernambuco, seriam formadas por um intendente e seis deputados. 2 E entre os deputados seria eleito um vice-intendente 3 (CARREIRA, 1982: 281-302; RIBEIRO JR. 2004: 83). No alvará de instituição, à Junta competia o governo e disposição geral, enquanto as Direções tinham autonomia para decidir sobre os negócios relativos às suas instâncias, consultando a Junta nas matérias e negócios de maior importância, que não fossem do seu expediente. 4 Os homens de negócio da praça do Recife detalhavam outra organização administrativa: 2 artigo 1 do alvará de instituição da Companhia de Pernambuco e Paraíba. Posteriormente acrescidos de seis para oito o número de deputados em Pernambuco. 3 artigo 6 Idem. 4 Idem. 2
cujo número para o comércio de Lisboa deve ser de sete, dois para terem a seu cargo os despachos, e vendas de todas a fazendas, dois para as compras, e carga de todos os efeitos, dois para assistirem as despesas dos navios, se a Companhia os compreender, um administrador geral que há de receber as contas de todos para as fazer lançar nos livros, que se hão de destinar para com toda a clareza se dar conta; e se a Companhia compreender também o comércio da Costa da Mina, Angola e Sertão serão mais seis homens de negócio, dois para administrarem cada um dos ditos comércios (AHU, PE, cx. 90, d. 7214) Os treze homens receberiam ao menos a comissão de dois por cento de tudo o que venderem, e outros dois por cento de todas as remessas que fizerem (AHU, PE, cx. 90, d. 7214). Quanto aos cargos, não há disposição similar no alvará, mas quanto às comissões, o artigo vinte e nove determinava que o intendente e deputados em Pernambuco levassem dois por cento apenas nas vendas a bruto realizadas nas capitanias de Pernambuco e Paraíba, sem que tirassem comissão das remessas para o reino. O estatuto se apresenta como uma solicitação dos homens de negócio das praças de Lisboa, Porto e Pernambuco, mas dos doze nomes que assinam o alvará, 5 apenas dois eram correspondentes dos acionistas de Pernambuco em Lisboa, João Henriques Martins e Manuel Pereira de Faria. Os outros eram importantes homens de negócio do reino. Quanto ao segundo, não foi encontrada menção ao seu envolvimento em outras atividades; o primeiro, a esse tempo era correspondente do irmão Henrique Martins em Lisboa e administrador do contrato de subsídio dos vinhos e aguardentes de Pernambuco. As ações eram de quatrocentos mil réis, facultando a cada pessoa a graça de entrar com as que quiser, sem distinção de estado, ou condição (AHU, PE, cx. 90, d. 7214). Todavia cartas escritas pelo governador Luís Diogo Lobo da Silva, que narram as negociações realizadas por ordem de Sua Majestade e resistências manifestas ao novo estabelecimento, denotam o esforço empreendido para convencer os homens de negócio, por serem as pessoas que dispunham de cabedal para fazê-lo. Das sessenta e três pessoas com as quais diz ter falado, constam apenas trinta e duas na relação de acionistas, identificadas como homens de negócio. Destas, vinte e cinco entraram com ações de quatro contos de réis para cima. 5 Conde de Oeiras, José Rodrigues Bandeira, José Rodrigues Esteves, Policarpo José Machado, Manuel Dantas Amorim, Manuel António Pereira, Inácio Pedro Quintela, Anselmo José da Crus, João Xavier Teles, José da Silva Leque, João Henriques Martins e Manuel Pereira de Faria. 3
Aos acionistas originários eram concedidas graças e privilégios. habilitando-os sem dispensa para receberem os hábitos das ordens militares, aposentadoria ativa, e passiva exonerando-os dos ofícios de Justiça, cargos, e encargos da República e alardes, e dando-lhes a natureza do vínculo, capela, ou prazo, além do interesse de quinze por cento de seus capitais, e dos mais que podem provir no bom êxito desta negociação (AHU, PE, cx. 90, d. 7214) 6 O trecho acima reitera no que se refere à dispensa mecânica o exposto em estatutos anteriores elaborados durante a criação da Companhia do Grão Pará e Maranhão, Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro e na proposta fracassada de criação de uma Companhia Geral da Guiné. Segundo Fernanda Olival a dispensa mecânica era justificada pela necessidade de angariar capitais para estabelecer companhias mercantes oferecendo o centro político em troca distinções sociais (OLIVAL, 1998-1999: 73-97). Além dos privilégios referendados no estatuto, concedidos aos acionistas originários e àqueles que entrassem com ações no valor de quatro contos de réis para cima, os homens de negócio da praça do Recife peticionaram a Sua Majestade outras prerrogativas relacionadas à composição da Direção. Que os homens de negócio moradores na praça do Recife de Pernambuco que entram com ações de dez mil cruzados 7 e daí para cima são os devem administrar os cabedais da dita Companhia, e para as primeiras três frotas serão nomeados pelo Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor governador e capitão general, preferindo os mais antigos e inteligentes no negócio (grifo nosso) (AHU, PE, cx. 90, d. 7214) Eles pleiteavam restringir o acesso à administração dos cabedais e os incentivos aos que podiam dispor desta condição. Que os que entrem com ações de dez mil cruzados, e daí para cima lhes será permitido mandarem vir o que lhes forem necessário para o ministério de suas casas dando-se-lhes livres, como as religiões, e aos Senhores bispo, governador, e ministros (AHU, PE, cx. 90, d. 7214) 6 No estatuto, artigos 43, 44 e 57. 7 quatro contos de réis. 4
Aparentemente a entrada era irrestrita a pessoa de qualquer condição, o mesmo não acontecia no que tange à Direção. A preferência aos mais antigos e inteligentes no negócio referendava uma hierarquia entre os homens de negócio que já estava disposta antes da fundação da empresa comercial. 8 A Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba foi fundada após a solicitação dos homens de negócio da praça de Pernambuco de uma companhia que atuasse interna e externamente no resgate de carnes secas e couros do Sertão e escravos na Costa da Mina. A proposta era limitar o número de barcos que realizavam o comércio do Sertão, taxar a dois mil e quinhentos réis a cabeça de gado e a venda da carne seca a setecentos e vinte réis a arroba nesta praça, oitocentos e oitenta para a Bahia, e dez tostões para a cidade do Rio de Janeiro (AHU, PE, cx. 84, d. 6965). Com o mesmo propósito de limitar o comércio, escreviam os homens de negócio sobre a intenção de fundar uma companhia para resgate de escravos na Costa da Mina. Contudo, o ouvidor da capitania, João Bernardo Gonzaga, entendia que a companhia precisaria abarcar as praças do Rio e Bahia formando um só corpo, porque separadas arruinariam umas as outras (AHU, PE, cx. 84, d. 6953). Mais tarde, junto à representação, os homens de negócio voltam a assinalar a importância da manutenção do comércio com a Costa da Mina, que se achava em decadência por causa da má qualidade dos tabacos da praça em relação aos da Bahia, e a necessidade daqueles que tinham ações na companhia das carnes secas de adquirirem as da companhia da Costa. Quando os homens de negócio propõem a criação de uma companhia para resgate dos escravos, atribuem a decadência do comércio à liberdade com que todos enviam embarcações e, contrariamente ao parecer da Câmara, ressaltam as benesses do tabaco não fosse a grande introdução na Costa. 8 Isto pode ser dito pelo estudo realizado atualmente por ocasião da elaboração da Tese de Doutorado em que se investiga a trajetória dos principais homens de negócio da capitania de Pernambuco e dos componentes da Direção da Companhia. 5
e sendo destes o mais importante o tabaco, que por privativo à nação portuguesa lhe facilitava grandes interesses, se vê sem estes por se meter grande quantidade, que pela sua abundância se acha reduzido a nenhum valor (AHU, PE, cx. 84, d. 6965) Repetidamente defendem a regulação do comércio como meio para evitar a decadência em que se encontra e impulsionar a introdução das aguardentes da terra na Costa. A criação de uma companhia para resgate de escravos seria um instrumento para regulamentar o comércio com a Costa da Mina e ampliá-lo com quantidade de outros gêneros que dos mesmos portos se podem resgatar, como sejam, ceras, gomas, marfins, (sem que estes prejudiquem aos de Angola) e outros de diversas qualidades, estabelecendo: a entrada da Bahia com oito navios, esta com quatro, a de Lisboa com um quarto nos da Bahia e Pernambuco fazendo-lhe conta interessar-se por este meio, cada um da lotação de três mil rolos de tabaco, e três mil ancoretas de aguardente a qual poderão diminuir aumentando proporcionalmente aquele segundo o seu maior rasgo, com obrigação de serem todas as referidas praças unidas neste negócio, para não poderem alterar a quantidade dos negócios da referida remessa (AHU, PE, cx. 84, d. 6965) Dentre as novas regras, taxava-se inclusive o que se devia dar por cada peça: de não poderem dar por escravo peça mais que oito rolos de tabaco, ou oito ancoretas de aguardente, de que se segue o benefício de poderem dar a terça parte da escravatura da terceira escolha para os senhores de engenho, e lavradores a preço de setenta mil réis (AHU, PE, cx. 84, d. 6965) Os homens de negócio acreditavam que só regular ou limitar a participação de outros homens de negócio da mesma praça não seria suficiente se as outras praças continuassem a comercializar sem regulação. Observa-se que nas duas petições para a criação da companhia de resgate de escravos e carnes secas, assinam os mesmos homens de negócio. 9 Contudo, sublinham o 9 Antônio José Brandão, José Vaz Salgado, Antônio Pinheiro Salgado, Antônio Elias da Fonseca Galvão, Antônio da Silva Loureiro, Domingos Pires Ferreira, José Silvestre da Silva, Henrique Miz, Manoel Gomes 6
interesse pela participação de todos os negociantes da praça de Pernambuco, já que a atuação através de companhias facultava a divisão das despesas e lucros, diminuindo o capital com que cada um tinha que entrar. Observando o funcionamento da Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba, focando naqueles que tiveram acesso aos cargos da Direção e a seus privilégios, a mudança na dinâmica comercial desponta da propriedade de mais um mecanismo seja na ascensão de alguns indivíduos, seja na reiteração de um pequeno grupo no topo da hierarquia mercantil. É o que nota o secretário Martinho de Melo e Castro: Foi de se apropriarem os referidos deputados de todos os gêneros, e efeitos que daqui se lhes remeteram, de os repartirem a crédito pelos seus parentes, amigos e associados; de os tomarem eles mesmos debaixo de nomes alheios para com eles negociarem, e de acumularem por estas forma a importantíssima dívida, que esses habitantes estão devendo à Companhia (AHU, PE, cx. 130, d. 9832) Fernanda Olival associa a entrada na Companhia aos incentivos reais na forma de distinções sociais. Conforme a autora, quando se instituiu a Companhia de Pernambuco e Paraíba, já se tinha consolidado uma prática vigente nos estatutos de outras companhias, a dispensa automática da mecânica para entrar nas Ordens Militares a todos os acionistas originários que adquirissem no mínimo dez apólices, como um mecanismo de atração social em torno da dispensa mecânica. Para ela um dos grandes incentivos era a mudança de status (OLIVAL, 1998-1999: 73-97). O principal requisito para ingressar na instituição era o capital, que os principais homens da capitania dispunham. O cabedal para comprar dez ações ou mais e a entrada como acionistas originários automaticamente resultaria em privilégios, mas a partir desta condição negociaram a administração de cabedais e privilégios mercantis. Leonor Freire Costa comprova que na Companhia os homens de negócio conferiram consistência política ao seu já conhecido poderio econômico (COSTA, 2000: 57). No caso desses homens, a posse de cargos na Direção consolida uma posição já reconhecida na sociedade local e no reino. dos Santos, Manoel Correa de Araujo, José de Abreu Cordeiro, José Bento Leitão, Manoel de Almeida Ferreira. 7
Todavia na representação que os homens de negócio moradores na praça do Recife fazem a Sua Majestade eles negociam, baseando-se num privilégio sancionado, a propriedade de privilégios mercantis na forma do controle dos cabedais e diferenciações no acesso a vantagens que lhe possibilitassem o abastecimento de suas casas, pelo menos para este grupo era o fim da concorrência. Tão importante quanto a nobilitação, os homens de negócio buscavam vantagens materiais que os diferenciassem no interior do grupo mercantil. Que os que entrem com ações de dez mil cruzados (quatro contos de réis), e daí para cima lhes será permitido mandarem vir o que lhes forem necessário para o ministério de suas casas dando-se-lhes livres, como as religiões, e aos Senhores Bispo, governador, e ministros (AHU, PE, cx. 90, d. 7214) Referências Bibliográficas: CARREIRA, António. As Companhias Pombalinas. Lisboa: Editorial Presença, 1982. COSTA, Leonor Freire. Pernambuco e a Companhia Geral de Comércio do Brasil. Penélope, nº 23, 2000, p. 41-65. OLIVAL, Fernanda. O Brasil, as companhias Pombalinas e a nobilitação no terceiro quartel do setecentos. In: Anais U. E. 8-9, 1998-1999: 73-97. RIBEIRO JR. José. Colonização e monopólio no NE brasileiro. Col. Estudos Históricos, 2ª ed. SP: Hucitec, 2004. 8