Arte Bruta e Psicose: nomeação ou tentativa de abertura para o simbólico?



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Transcrição:

Arte Bruta e Psicose: nomeação ou tentativa de abertura para o simbólico? Rodrigo Godoy Fonseca Texto modificado, originalmente apresentado na II Ciranda de Psicanálise e Arte, organizada pelo Museu Nacional de Belas Artes e a Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro, em agosto de 2004. O ponto de partida para este trabalho foi uma lembrança, uma observação, algo que me chamou a atenção, durante os anos em que freqüentei cotidianamente os hospitais psiquiátricos. Todos conhecemos a história da multiplicação dos hospitais psiquiátricos durante o século dezenove. Temos o exemplo do Rio de Janeiro, com a criação, durante o império, do grandioso centro que foi o Hospício D. Pedro II, e que mais tarde viria a ser ocupado pela Universidade do Brasil, uma vez transferidos os doentes para os distantes Jacarepaguá e Engenho de Dentro. Na França, neste período, os chamados Asilos de Alienados se multiplicaram por todo o território, e muitos se encontram em funcionamento ainda hoje, modernizados. Podemos constatar que foram concebidos sob uma mesma planta arquitetônica, imutável (como, aliás, também é o caso do prédio carioca), com o pavilhão de admissão à frente, seguido de duas linhas paralelas de prédios, uma destinada ao abrigo dos homens e outra ao das mulheres, sendo o quadrilátero fechado pelo prédio da capela. A capela sempre estava presente, e a guarda dos doentes era invariavelmente (e isto até praticamente a metade do século XX em muitos casos) confiada a irmãs religiosas católicas. Estes pavilhões onde eram alojados os doentes possuíam em muitos casos pátios internos (alguns dotados de fossos), o que fazia com que o visitante, uma vez fechadas as portas de cada pavilhão, pudesse circular sem encontrar um único doente. Durante o século XX estas instalações sofreram modificações. Algumas portas foram abertas, novos pavilhões foram criados, sem que os antigos prédios fossem abandonados. Estes, ao contrário, foram batizados com os nomes daqueles que se destacaram durante o primeiro século (o anterior, XIX) da prática psiquiátrica, como Pinel, Esquirol, Morel, Charcot. O nome de Philippe Pinel pode ser encontrado nos pórticos de hospitais de vários continentes, mesmo naqueles de origem relativamente recente, como sabemos. O movimento de nomeação do próprio estabelecimento psiquiátrico, longe de ser algo da ordem do ingênuo ou do aleatório, acabou modificando o nome do conjunto, no sentido do eufemismo: de Asilo de Alienados ou Hospício a Hospital Psiquiátrico ou Colônia, de Hospital Psiquiátrico a Centro Hospitalar Especializado e daí até mesmo a Centro Psicoterápico. Foi em um destes hospitais, o Centro Hospitalar Sainte-Anne, (notem aí a ausência de referência à psiquiatria) que encontrei a situação que na verdade motivou esta introdução. Lá, os pavilhões de internação chamam-se Clínica das Doenças Mentais e do Encéfalo, Serviço Hospitalar Universitário de Saúde Mental e Terapêutica, ou portam o nome dos mestres, enquanto as alamedas foram batizadas de Camille Claudel, Vincent Van Gogh, Antonin Artaud, Franz Kafka, Paul Verlaine e assim por diante.

Seria este o sinal de um movimento de abertura, onde os administradores fariam uma justa homenagem a esses artistas marginalizados durante suas vidas? Ou seria uma sugestão para nos deslocarmos de um mestre a outro utilizando o caminho representado por um louco célebre, um artista delirante? A resposta não parece apontar, em meu entender, nem para a valorização do artista nem tampouco para o reconhecimento da genialidade na loucura. Dito de outro modo, penso que esta iniciativa teria muito mais a ver com uma tentativa de incorporação de certas singularidades pela cultura psiquiátrica ávida de tradição. Nesta perspectiva seria valorizada a coexistência de patologia e talento artístico, como fenômeno digno de certa curiosidade. I O interesse pela produção artística dos doentes mentais pode ser encontrado já na segunda metade do século dezenove, produção esta que foi em realidade primeiramente utilizada para exemplificar a degeneração presente em certas criações artísticas da época. Teóricos de grande influência, como o criminólogo e psiquiatra italiano Cesare Lombroso (criador da caraterologia, ou seja, o estudo da correlação entre características físicas e mentais) postulavam que, se as obras de certos doentes se aproximavam do encontrado como material produzido por alguns artistas, isto significava que tais artistas se encontravam em um processo de aproximação com o patológico que denominava de demência moral, e não que as criações dos doentes possuíam um valor artístico. O valor artístico destas criações passa a ser reconhecido a partir do início do século passado, mais precisamente na década de 20, notadamente a partir do trabalho de Hans Prinzhorn em Heidelberg e de Walter Morgenthaler na Suíça, psiquiatras que passaram a estudar sistematicamente as obras dos doentes internados nas instituições onde clinicavam. Será justamente nestas fontes que Jean Dubuffet encontrará o rico material para sua intervenção, a partir de 1945. É necessário dizer, no entanto, que entre os dois momentos, com o advento do nazismo, a coleção de Prinzhorn foi utilizada pela propaganda num sentido absolutamente pervertido, colocada lado a lado com obras de artistas como Klee e Kokoschka numa exposição realizada em Berlim em 1938 denominada Arte degenerada (Carl Schneider). Deixemos, porém, a definição da ação de Dubuffet ao próprio autor: Foi em julho de 1945 que nós empreendemos, na França e na Suíça para começar, e logo depois em outros países, pesquisas metódicas sobre as produções relacionadas com o que nós denominamos desde esta época Arte Bruta." Reconhecemos deste modo as obras executadas por pessoas incólumes à cultura artística, para as quais o mimetismo, contrariamente ao que se passa para os intelectuais, tem pouca ou nenhuma participação, de modo que seus autores tiram tudo (temas, escolha dos materiais utilizados, modos de transposição, ritmos, maneiras de escrever, etc..) de seu próprio interior e não dos clichês da arte clássica ou da arte em moda. Nós assistimos aí à operação artística inteiramente pura, bruta, inteiramente reinventada em todas as suas fases por seu autor, a partir somente de suas próprias impulsões. Arte onde se manifesta a função única da invenção, e não aquelas, constantes na arte cultural, do camaleão e do macaco. Artista plástico de raro talento, nome marcante das artes plásticas no século XX e homem de grande erudição, Jean Dubuffet irá, a partir de então, trabalhar em pelo menos três frentes: a da pesquisa de sua própria linguagem artística, a da crítica acerba do que chamou, já em 1968, de asfixiante cultura e a do garimpo de exemplos de Arte Bruta. Sobre as relações entre cultura oficial, criação artística e arte bruta ele escreverá:

A respeito da criação artística- rara, excepcional e de sua divulgação, podemos dizer que acontece algo como o que se dá em relação a algumas ilhas desertas cujo aspecto selvagem, que atrai o interesse, acaba desde que a propaganda hoteleira traz os turistas. Permanece então apenas uma selvageria fingida e repugnante, e os amantes de lugares raros e excepcionais procuram um outro lugar para armar a barraca. Encontramos freqüentemente na produção cultural, literária ou artística, posições parecidas às das agências de turismo especializadas em viagens organizadas coloridas de aventura e cujo roteiro inclui uma caça ao leão, um naufrágio, um convite à taba do cacique. O aculturado ao qual informamos, fora do campo cultural, uma arte bruta, acredita invariavelmente que queremos falar de produções pertencentes ao registro cultural, como aquelas de Van Gogh, do douanier Rousseau ou dos surrealistas, que mantém com a arte bruta a mesma relação que o engodo da agência turística mantém com a ilha deserta. Quanto às produções dos doentes mentais, sua posição será igualmente incisiva: Se a psicose consiste em se destacar da ótica usual e a inventar novas, digamos então que a criação de arte só pode ser psicótica e que ela nunca o é de modo suficiente. Os artistas assim taxados de loucura (muitos são prodigiosos) são aqueles que abraçaram sua criação de modo mais íntimo que os outros, a ponto de abandonar tudo para se transportar ao mundo que eles criaram. Eles são desta forma exemplares e eu não ousaria me comparar a eles Dubuffet, como vemos, está em busca do que poderíamos caracterizar como estrutural, mecanismo intrínseco ao processo criativo. Sua busca pelas produções dos iletrados, dos marginais, dos doentes mentais o faz propor este significante: Bruta. Arte não lapidada, ou melhor, não deformada pelos instrumentos da cultura oficial. Não se trata aqui de promover o psicótico através da nomeação, do título de artista, ao estatuto de bom selvagem criador de arte bruta. Particularmente aqueles confinados em asilos durante a maior parte de suas vidas (p.ex: Fernando Diniz, Emygdio de Barros). O que está em questão é o exame de um processo criativo que se impõe ao sujeito psicótico. II O psicótico ignora a língua que ele mesmo fala, nos diz Lacan em seu seminário de 1955. Ele acrescentará alguns anos mais tarde: os loucos são considerados e esta é justamente a tendência psiquiátrica muito mais como objetos de estudo que como ponto de interrogação no que se refere a uma certa relação do sujeito, do que situa o sujeito em relação a esta coisa que qualificamos de objeto estranho, parasitário, que é a voz essencialmente. Enquanto voz ela tem aqui apenas o sentido de ser suporte do significante. Sabemos o quanto a existência do psicótico é marcada, não por sua voz, no sentido de um discurso articulado a partir de uma posição subjetiva necessariamente caracterizada pela falta, mas sim pela invasão de vozes que representam o que Lacan valorizou, depois de De Clérambault, como fenômeno elementar, no sentido estrutural, do delírio. Invadido, perseguido, ameaçado. E mais: falado, agido, alvo de comentários, de manipulações e de conluios, do roubo e da divulgação de seus pensamentos. Seus?

A eclosão de uma psicose, o momento fecundo, verdadeira experiência de fim do mundo vem marcar um movimento de báscula, de ruptura, de precipitação. Nada será como antes. Ela será seguida de um movimento de reconstrução, que poderá adotar uma forma delirante, expansiva ou restritiva. Aprendemos com Freud a reconhecer o trabalho do delírio. Em sua análise da obra do presidente Schreber ele irá afirmar: O paranóico reconstrói o universo, não mais esplêndido, mas de modo a poder aí novamente viver. Ele o reconstrói com o trabalho de seus delírios. A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução. As criações artísticas de alguns psicóticos parecem desempenhar esta mesma função; a de criação de um espaço onde ele poderá viver. Elas podem apresentar algumas características bastante próximas dos delírios, como o caráter prolífico e incoercível de sua produção, o aproveitamento de materiais improváveis, do que está ao alcance, a apresentação no mais das vezes absolutamente plena, sem lugar para a representação de um vazio. Jean Oury irá, em seu livro Criação e esquizofrenia, tratar desta questão em conexão com do que ele nomeia de fábrica do dizer, ou seja, de algo que se encontra muitas vezes comprometido na psicose, a possibilidade de enunciação. Afirma Oury: Nos processos psicóticos, a fábrica do dizer foi bombardeada. É necessário então tirar o máximo proveito dos elementos subsistentes. Em nossa sociedade, infelizmente, os quadros, as esculturas, todas estas artes figurativas, são valorizadas apenas numa dimensão hedonista simplista...a emergência [o surgimento]de obras é da mesma essência que a estrutura, que a alíngua, que a fábrica do dizer. Não se deve então pedir artificialmente ao sujeito para pintar, esculpir, etc, mas tudo fazer para que ele tenha eventualmente a possibilidade para tanto. Nesta mesma obra Oury abordará o interesse do que chamará de enxertos de aberto, ou seja, de uma intervenção que possa propiciar o estabelecimento do que ele propõe sob o termo alemão de Umgang, ou seja, de uma certa troca, de um colóquio, em contraponto aos processos de fechamento e de espera tão característicos das trajetórias psicóticas. III Voltemos à interrogação inicial: Nomeação pode designar o ato de dar um nome, mas também o de atribuir um cargo ou função a alguém. Uma promoção poderíamos dizer, neste segundo sentido. Como já mencionei, penso que não é disto que se trata do ponto de vista psicanalítico. Na lógica do significante o que está em jogo, através da nomeação, é a designação de um lugar vazio a partir do qual será possível a metáfora, como possibilidade de passagem de um significante a outro significante. Para o psicótico, trata-se de uma metáfora bastante particular, forma de estabilização entre significante e significado atingida após a catástrofe representada pelo momento fecundo, metáfora delirante. Metáfora delirante como resposta à ausência de inscrição simbólica da falta no Outro, representada pela foraclusão do Nome do pai. Mas não é apenas para o psicótico que está colocada a necessidade de um enxerto de aberto, como diz Oury, mas também para todos nós, os condicionados culturalmente, para retomar a expressão de Dubuffet. Trata-se de interrogar, e interrogar não a obra como algo pronto e acabado, mas sim o processo de mise en forme, de criação. Donde o interesse de um significante novo, como o foi, há praticamente seis décadas, o de Arte Bruta.

Bibliografia: DUBUFFET, Jean. Asphyxiante culture. Paris: Éditions de Minuit, 1986. Bâtons rompus. Paris: Éditions de Minuit, 1986. l Homme du commun à l ouvrage. Paris: Gallimard, 1991. FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (Dementia paranoides), in Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas, volume XII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969. LACAN, J. O seminário, livro 3, As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. Formação do psiquiatra e Psicanálise ou Pequeno discurso aos psiquiatras, inédito. OURY, Jean. Le Collectif. Paris: Éditions du Scarabée, 1986. Création et schizophrénie. Paris: Éditions Galilée, 1989. RAGON, Michel. Du côté de l art brut. Paris: Éditions Albin Michel, 1996.