FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: CONCEITUAÇÃO DOUTRINÁRIA SOCIAL FUNCTION OF PROPERTY: DOCTRINAL CONCEPTS



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Transcrição:

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: CONCEITUAÇÃO DOUTRINÁRIA SOCIAL FUNCTION OF PROPERTY: DOCTRINAL CONCEPTS Henrique Franceschetto 1 Paulo Jonas Grando 2 RESUMO O presente Artigo Científico é fruto de um estudo doutrinário acerca do entendimento majoritário atual sobre a natureza do princípio constitucional da Função Social da Propriedade. Utiliza-se o método indutivo como base lógica, operacionalizado com a técnica da pesquisa bibliográfica, abordando-se: em um primeiro momento, conceitos fundamentais sobre a natureza dos princípios constitucionais vigentes no Brasil, visando facilitar a compreensão da pesquisa; em um segundo momento citam-se as diversas limitações existentes à Propriedade no ordenamento jurídico pátrio. Posteriormente visualiza-se uma noção fundamental das origens ideológicas do princípio constitucional abordado no trabalho, e, finalmente, elencam-se diversos entendimentos acerca da matéria existentes na doutrina brasileira atual. A pesquisa realizada tem como objetivo investigar o conceito doutrinário nacional atual acerca do princípio constitucional da Função Social da Propriedade. Após o trabalho, concluiu-se que, hodiernamente, a doutrina majoritária tende a convergir no sentido de que o instituto da Função Social da Propriedade está inserido no Direito de Propriedade, sendo que este não subsiste sem aquele. Além disso, também importa destacar que a grande maioria dos doutrinadores vê de maneira positiva a valorização crescente do aspecto social da Propriedade que vem ocorrendo de maneira progressiva no ordenamento jurídico brasileiro. Palavras-chave: Princípios Constitucionais, Função Social da Propriedade, Conceituação Doutrinária. ABSTRACT This Scientific Article is the result of a bibliographical research about the current understanding of the majority of the writers concerning the nature of the constitutional principle of Social Function of Property. The method used was the inductive, operationalized with the research of bibliographical sources from physical or digital platforms, concerning: at first, the fundamental concepts about the nature of the 1 Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí UNIVALI (2012). Advogado inscrito na OAB/RS n. 89.468.E-mail: hf.bc@live.com. 2 Graduado em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina (licenciatura plena em 1994 e bacharelado em 1996) É mestre em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina (2000) na opção Desenvolvimento regional e urbano. Atualmente é professor titular da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) nas disciplinas de metodologia científica e da pesquisa, Teoria das Relações Internacionais e Relações Internacionais do Continente Americano.

principles presented in the Constitution of Brazil, intended to ease the process of understanding the whole research; at a second moment, quotes were made about the various limitations that exist to the Property in the juristic system of Brazil. Later, the research brings fundamental notions of the ideological origins of the constitutional principle that is object to this study and, at last, comes a listed series of concepts to the Social Function of Property that exist nowadays in Brazil. This research had the purpose of investigating the bibliographical concept of the majority of the writers about the constitutional principle of the Social Function of Property. With the work it is possible to conclude that, nowadays, the majority of the authors tend to agree with the idea that the institute of the Social Function of Property is inside the Proprietary Law, and one does not exist without the other. Further from that, it is important to state that the great majority of the books has a positive view about this valorization of the social aspect of property that is occurring as a progressive tendency in the juristic system of Brazil. Keywords:Constitutional Principles; Social Function of Property; Doctrinal Conceptualization. 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo geral investigar o conceito doutrinário atual sobre o princípio constitucional da Função Social da Propriedade e, como objetivo específico, analisar as particularidades do princípio estudado, verificando suas características, e definindo-o como um limitador do Direito de Propriedade ou como parte integrante deste. O tema é atual e relevante, pois os poderes do proprietário vem sendo cada vez mais restringidos pela evolução do Direito contemporâneo e pelos entendimentos jurisprudenciais, superando-se o caráter absoluto da Propriedade e enfatizando, cada vez mais, o aspecto social deste instituto. Para encetar a investigação adotar-se-á o método indutivo, operacionalizado com a pesquisa das fontes doutrinárias. Este Artigo Científico não pretende esgotar o tema investigado, especialmente considerando a complexidade e extensão da matéria, servindo apenas como demonstrativo da tendência atual de entendimento que pode ser abstraída da doutrina nacional. O trabalho será dividido em quatro pontos. Inicialmente serão abordados conceitos fundamentais sobre a natureza dos princípios constitucionais vigentes no Brasil, objetivando a melhor compreensão do trabalho. Em um segundo momento serão brevemente citadas as diversas limitações existentes ao exercício do Direito de Propriedade. Posteriormente será vista uma noção geral sobre as origens ideológicas 2

do princípio da Função Social da Propriedade e por último serão elencados diversos conceitos doutrinários existentes atualmente para o princípio estudado. Nas considerações finais apresentar-se-ão breves sínteses de cada momento da pesquisa. 2 PRINCÍPIOS NO DIREITO BRASILEIRO Antes de se adentrar especificamente no estudo do princípio da função social da propriedade, é pertinente observar a lição do professor Lenio Streck 3 acerca da natureza dos princípios contidos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: [...] é equivocado pensar que os princípios constitucionais representam a positivação dos valores. O Direito é um sistema formado por regras (preceitos) e princípios. Ambos são normas. A diferença entre a regra e o princípio é que este está contido naquela, atravessando-a, resgatando o mundo prático. Na medida em que o mundo prático não pode ser dito no todo porque sempre sobra algo o princípio traz à tona o sentido que resulta desse ponto de encontro entre texto e realidade, em que um não subsiste sem o outro (aqui, o antidualismo entra como condição de possibilidade para a compreensão do fenômeno). (grifos do autor) Em seu magistério, o professor Paulo Cruz 4, trazendo um ponto de vista diferenciado sobre os princípios constitucionais, igualmente trata de esclarecer o conceito: Os princípios constitucionais, deve-se sempre repetir, são a expressão dos valores fundamentais da Sociedade criadora do Direito. Como a Constituição não é somente um agrupamento de normas jurídicas, mas a concretização e positivação destes valores, deve haver uma harmonia fundante entre os princípios e regras, como partes que coabitam em um mesmo ordenamento, sendo que os primeiros são espécies, e as segundas, gênero desta. Colhe-se da obra de Celso Antônio Bandeira de Mello 5 o conceito de que um princípio é um mandamento nuclear de um sistema jurídico, sendo um fundamento para este, uma disposição fundamental que se espalha sobre normas variadas ditando o 3 STRECK, Lenio Luiz.Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. p. 145. 4 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do direito contitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá. 2004. p. 102. 5 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 629. 3

espírito destas e servindo como instrumento para sua exata compreensão e inteligibilidade, justamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema de normas, no que lhe confere a tônica e lhe traz harmonia. Esta discussão sobre a natureza dos princípios constantes do texto da Carta Magna de 1988 é muito complexa e extensa, não sendo a pretensão deste estudo, e, portanto, este ponto não será totalmente explorado. Dada a noção necessária para compreensão deste artigo, passa-se a abordar as limitações do direito de propriedade. 3 LIMITES AO DIREITO DE PROPRIEDADE Segundo Venosa 6 Toda a propriedade, ainda que resguardando o direito do proprietário, deve cumprir uma função social. A superação do aspecto individualista do direito de propriedade no constitucionalismo brasileiro levou à previsão, no art. 5º, inciso XXIII da Carta Magna de 1988, que determina a toda propriedade esta obrigatoriedade do cumprimento de uma função social. Maria Helena Diniz 7 disserta em sua obra sobre os limites impostos ao direito de propriedade: A Constituição Federal, art. 5º, XXII, ao garantir o direito de propriedade, considerou a questão de suas restrições, que reaparece em forma analítica no art. 170, sob o título Da ordem econômica e social, que tem por escopo realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social com base nos seguintes princípios: liberdade de iniciativa; valorização do trabalho como condição da dignidade humana; função social da propriedade; harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produção; repressão não só ao abuso do poder econômico, caracterizado pelo domínio dos mercados, como também à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros e expansão das oportunidades de emprego produtivo. Em tudo isso há limitações ao direito de propriedade. (grifou-se) magistério: Venosa 8 traz o seguinte entendimento doutrinário sobre a matéria em seu A propriedade, portanto, tendo em vista sua função social, sofre limitações de várias naturezas, desde as limitações impostas no Código Civil de 1916, bem como no de 2002 em razão do direito de vizinhança, até as de ordem constitucional e administrativa para preservação do meio ambiente, fauna, flora, patrimônio artístico, etc. 6 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 147. 7 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 254-255. 4 v. 8 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. p. 149. 4

Na mesma senda, Marco Aurélio Bezerra de Melo 9 reafirma a variada limitação ao direito de propriedade estabelecida no ordenamento jurídico pátrio: É limitada, pois o proprietário enfrenta toda sorte de limites de ordem constitucional, legal e até convencional, estando hoje superada a idéia de que a propriedade é um direito sem limites. Nesse passo, merece registro o fato de que a nova redação do artigo 1.231 do Código Civil (antigo artigo 527, CC/16) não mais estabelece que a propriedade presume-se ilimitada, mas sim plena. Acertado o novo texto, pois apesar de a propriedade ter inúmeros limites, presume-se que ela não tem gravames reais, salvo quando demonstrados pelo interessado, uma vez que a presunção legal é relativa. (grifou-se). Pode-se perceber que hodiernamente o direito de propriedade possui diversos limites. Entretanto, como será demonstrado ao longo deste trabalho, o princípio da função social da propriedade é entendido não apenas como um limitador da propriedade, mas sim como parte integrante desta. 4 ORIGENS DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE No tocante às origens do princípio da função social da propriedade, Gama 10 afirma que seu surgimento teve como fundamento a ideia de regular a aplicação prática dos poderes conferidos ao proprietário: No campo do aspecto funcional do direito de propriedade exsurge a noção de função social da propriedade. Trata-se do papel que a propriedade desempenha nas relações jurídicas, econômicas e sociais, representado pelo aspecto dinâmico. Observa-se, inclusive, que o não cumprimento da função social da propriedade pode, em última instância, gerar repercussão no âmbito da perda da propriedade como na desapropriação-sanção prevista no art. 182, 4º, da Constituição Federal, relativamente à propriedade imobiliária urbana. (grifou-se) Na visão de Gilmar Mendes 11, o conceito de propriedade sofreu uma grande mudança no século XX, sendo que a propriedade privada tradicionalmente entendida perdeu boa parte de seu significado, que era apenas o de ser um instrumento para assegurar a subsistência individual do proprietário e tinha no poder de autodeterminação um fator básico da ordem social. 9 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito das coisas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 83-84. 10 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direitos reais. São Paulo: Atlas, 2011. p. 228. 11 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 368. 5

Cristiano Farias 12 traz em seu entendimento uma necessária reflexão no tocante à importância da função social imposta aos direitos subjetivos: É até mesmo redundante indagar acerca de uma função social do direito, pois pela própria natureza das coisas qualquer direito subjetivo deveria ser direcionado ao princípio da justiça e bem-estar social. Porém, o individualismo exacerbado dos últimos dois séculos deturpou de forma tão intensa o sentido do que é direito subjetivo, que foi necessária a inserção do princípio da função social nos ordenamentos contemporâneos para o resgate de um valor deliberadamente camuflado pela ideologia então dominante. Na obra de Darcy Bessone 13 está sintetizada a teoria que levou à criação do instituto da função social da propriedade: As concepções individualistas da propriedade partem do pressuposto da harmonização do interesse individual com a utilidade geral. A teoria da função social da propriedade nega essa harmonia, considerando-a ilusória. Pretende que tal função não se acha ligada à função individual, isto é, ao serviço que a coisa presta ao indivíduo isoladamente e enquanto tal. São dois planos independentes, o do interesse individual e o do interesse social, ainda que este tenha por fim último também o indivíduo, mas não certo indivíduo, ou uns poucos indivíduos, mas, sim, o maior número de indivíduos. Então, as coisas devem ser colocadas a serviço da maioria, do bem comum. Só na medida em que não interessarem ao plano social (bens de consumo ou de uso pessoal) é que se justificará a propriedade privada como uma forma harmonizável com os interesses coletivos. Chalhub 14, por sua vez, visualiza o surgimento deste instituto a partir de um ponto de vista econômico: [...] com o crescimento dos mercados e a massificação do consumo, fica cada vez mais nítida a função social da propriedade, vale dizer, a exigência de que o exercício da propriedade se faça conforme o interesse da coletividade. Aqui se observa claramente o distanciamento entre a teoria individualista da propriedade, em que o proprietário exercia seu direito do modo mais absoluto possível, nos termos da concepção radical do Código Napoleão, e a nova concepção, que privilegia o aspecto funcional da propriedade. (grifou-se) Relembrando a influência da religião católica nas ideias que foram positivadas no princípio constitucional estudado, Venosa 15 registra que: 12 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direitos reais. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 235/236. 13 BESSONE, Darcy. Direitos reais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 47. 14 CHALHUB, Melhim Namem. Propriedade Imobiliária: função social e outros aspectos. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 10-11. 6

A encíclica Mater et Magistra do Papa João XXIII, de 1961, ensina que a propriedade é um direito natural, mas esse direito deve ser exercido de acordo com uma função social, não só em proveito do titular, mas também em benefício da coletividade. Destarte, o Estado não pode omitir-se no ordenamento sociológico da propriedade. Deve fornecer instrumentos jurídicos eficazes para o proprietário defender o que é seu e que é utilizado em seu proveito e útil. Bem não utilizado é constante motivo inquietação social. A má utilização da terra e do espaço urbano gera violência. (grifos do autor) Colhe-se da doutrina de Carlos Roberto Gonçalves 16 : Após a Revolução Francesa, a propriedade assumiu feição marcadamente individualista. No século passado, no entanto, foi acentuado o seu caráter social, contribuindo para essa situação as encíclicas Rerum Novarum, do Papa Leão XIII e Quadragésimo Ano, de Pio XI. O sopro da socialização acabou, com efeito, impregnando o século XX, influenciando a concepção da propriedade e o direito das coisas. O princípio da função social da propriedade tem controvertida origem. Teria sido, segundo alguns, formulado por Augusto Comte e postulado por León Duguit, começo do aludido século. Em virtude da influência que a sua obra exerceu nos autores latinos, Duguit é considerado o precursor da idéia de que os direitos só se justificam pela missão social para a qual devem contribuir e, portanto, que o proprietário deve comportar-se e ser considerado, quanto à gestão dos seus bens, como um funcionário. (grifou-se) Ainda no tocante ao histórico desta importante previsão constitucional, Darcy Bessone 17 ressalta León Duguit: No campo jurídico, deve-se salientar a contribuição de León Duguit, principalmente através de notável conferência pronunciada em Buenos Aires, em que salientou a evolução do direito, no sentido de se admitir a chamada propriedade-função, isto é, a propriedade como função social, ou a riqueza como objeto de utilidade social, e não simplesmente individual. Acentuou que as leis do seu tempo eram dominadas pelo individualismo, mas que a evolução das idéias já havia atingido tal ponto que os antigos conceitos teriam de ser revistos. A expressão constante do Código Civil francês de que a propriedade era o direito de usar, gozar e dispor da coisa da maneira mais absoluta já não encontrava correspondência em leis posteriores da própria França. Os princípios inscritos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, dentre os quais está o que afirma o caráter sagrado e inviolável da propriedade, já se acham abalados, concluiu Duguit. (grifou-se) Visando elucidar o entendimento de Duguit, Silvio Rodrigues 18 enfatiza em seu magistério que do ponto de vista do teórico citado a propriedade não é um direito 15 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. p. 144. 16 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito das coisas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 244. 5 v. 17 BESSONE, Darcy. Direitos reais. p. 29-30. 7

subjetivo de seu detentor, mas sim a função social deste, e dessa forma o proprietário deve gerir o bem mantendo como objetivo o seu melhor rendimento e no interesse de toda a sociedade. É possível perceber que a função social da propriedade foi vista desde suas origens não apenas como uma limitação externa ao direito de propriedade, mas sim como parte integrante deste direito. 5 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: CONCEITUAÇÃO DOUTRINÁRIA No ordenamento jurídico de uma sociedade pluralista e democrática como a brasileira, a lei deve ter sempre em foco a repercussão social de sua aplicação, como já era idealizado por Pierre Joseph Proudhon 19 em sua época: A lei deve ser bastante ampla para permitir a todos, isolada ou coletivamente, o desenvolvimento de suas faculdades, o emprego de suas forças, de sua economia, e de sua inteligência, sem que possa aí colocar outro limite senão a liberdade do outro e não seu interesse. Eros Roberto Grau 20 propriedade da seguinte forma: refere-se à tendência de evolução do direito de A evolução do conceito da propriedade - que da plena in re potestas de Justiniano, da propriedade como expressão do direito natural, vai desembocar, modernamente, na idéia de propriedade-função social - apresenta momentos e matizes realmente encantadores, bastantes para desviar o estudioso da senda que tencione explorar. Tal evolução consubstancia, como afirmou André Piettre [...], a revanche da Grécia sobre Roma, da filosofia sobre o direito: a concepção romana, que justifica a propriedade pela origem (família, dote, estabilidade dos patrimônios), sucumbe diante da concepção aristotélica, finalista, que a justifica pelo seu fim, seus serviços, sua função. Em que pese a existência de várias limitações ao direito de propriedade, o foco desta pesquisa foram as definições doutrinárias dadas à previsão constitucional da função social da propriedade. Em seu magistério Washington de Barros Monteiro 21 traça linhas gerais acerca do princípio: 18 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Direito das coisas.28. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 81-82. 19 PROUDHON, Pierre Joseph. A propriedade é um roubo. Porto Alegre: L&PM, 1997. p. 130. 20 GRAU, Eros Roberto. Função Social da Propriedade (Direito Econômico). In: FRANCA, R. Limongi (coord.) Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. 21 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das coisas.38. ed. São Paulo: 8

A Constituição Federal, como já se viu, garante o direito de propriedade. Contudo, em seguida, impõe a subordinação da propriedade à sua função social, expressão de conteúdo vago, mas que, genericamente, pode ser interpretada como a subordinação do direito individual ao interesse coletivo. (grifou-se) Após seu estudo sobre a matéria, Melo 22 trouxe a seguinte conclusão: Usar de um bem é retirar do mesmo tudo aquilo que ele puder proporcionar, seja em favor do próprio proprietário ou de terceiro. Para que o uso não se converta em ato ilícito pelas mãos do abuso do direito é necessário que ele seja exercido segundo a função social e não se volte para prejudicar ninguém, conduzindo o exercício regular do direito para o próprio bem-estar da sociedade. Exemplo marcante é o do proprietário que utiliza o solo para o plantação ou para nele edificar sua moradia. (grifou-se) No que tange à discussão sobre a natureza atual da função social da propriedade, Lucas Barreto 23 se manifesta da seguinte forma: Outro ponto importante consubstancia-se em considerar-se a função social i) como um objetivo ao direito de propriedade, ou seja, algo que lhe é exterior, ou ii) um elemento desse mesmo direito, um requisito intrínseco necessário à sua própria existência. A doutrina mais atual, à qual nos filiamos, inclina-se a aceitar que a função social da propriedade é parte integrante da propriedade: em não havendo, a propriedade deixa de ser protegida juridicamente, por fim, desaparecendo o direito. Para ressaltar que a função social da propriedade não é apenas um limitador dos poderes do proprietário, Chalhub 24 afirma que o conceito deste princípio não se confunde com o sistema jurídico de limitações à propriedade uma vez que a função social está na estrutura do direito de propriedade, enquanto que as limitações propriamente ditas têm como objeto o exercício do direito, expressando-se na esfera do poder de polícia. Consta do magistério de Orlando Gomes 25 que: Saraiva, 2007. p. 92. 3 v. 22 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito das coisas. p. 85. 23 BARRETO, Lucas Hayne Dantas. Função social da propriedade: análise histórica. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 778, 20 ago. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7164>. Acesso em: 11 maio 2012. 24 CHALHUB, Melhim Namem. Propriedade Imobiliária: função social e outros aspectos.p. 12. 25 GOMES, Orlando. Direitos reais. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 120. 9

A partir do momento em que o ordenamento jurídico reconheceu que o exercício dos poderes do proprietário não deveria ser protegido tão somente para satisfação do seu interesse, a função da propriedade tornou-se social. O novo esquema manifestou-se pela consistência da função sob tríplice aspecto: 1º) a privação de determinadas faculdades; 2º) a criação de um complexo de condição para que o proprietário possa exercer seus poderes; 3º) a obrigação de exercer certos direitos elementares do domínio. De acordo com Alexandre de Moraes 26, a colocação da função social da propriedade como elemento estrutural do direito à propriedade privada demonstra a alteração de mentalidade trazida pela Constituição Brasileira de 1988: A referência constitucional à função social como elemento estrutural da definição do direito à propriedade privada e da limitação legal de seu conteúdo demonstra a substituição de uma concepção abstrata de âmbito meramente subjetivo de livre domínio e disposição da propriedade por uma concepção social de propriedade privada, reforçada pela existência de um conjunto de obrigações para com os interesses da coletividade, visando também à finalidade ou utilidade social que cada categoria de bens objeto de domínio deve cumprir. Por sua vez, Priscila Ferreira Blanc 27 traz que A função social da propriedade é um componente do próprio direito de propriedade, fazendo parte da essência deste. No que tange à matéria Bulos 28 se posiciona definindo que função social da propriedade é a destinação útil da propriedade do ponto de vista econômico, porém em nome do interesse público. Segundo o autor, o objetivo do princípio é otimizar o uso da propriedade, de sorte que não possa ser utilizada em detrimento do progresso e da satisfação da comunidade. Na mesma senda, Zenildo Bodnar 29 traz em sua obra que a propriedade reconhecida e que foi tutelada pela Constituição Brasileira de 1988 é tão somente aquela que cumpre sua função social, uma vez que o direito de propriedade passa a não ser apenas um direito, mas também uma função, valorizando-se o atendimento aos fins sociais em desprestígio aos interesses individualistas do proprietário. 26 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 268. 27 BLANC, Priscila Ferreira. Plano diretor urbano & função social da propriedade. Curitiba: Juruá, 2008. p. 43. 28 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 597. 29 BODNAR, Zenildo. Curso objetivo de direito de propriedade. Curitiba: Juruá, 2005. p. 22. 10

Ponderando acerca de discussão sobre a natureza da função social da propriedade, Melo 30 enfatiza que: Na sociedade atual não há mais espaço para entender a propriedade divorciada do elemento que lhe confere conteúdo e tutela jurídica que vem a ser o exercício do domínio mediante a atenta observância da função social, pois, em que pese a proteção privatística da propriedade, ela deverá retratar uma finalidade econômica e social apta a sua vocação urbana ou rural, gerando frutos, empregos e conduzindo à uma justa circulação de riquezas de modo a que tenhamos uma sociedade mais justa e solidária, objetivo primaz do estado democrático de direito inaugurado pela Constituição da República Federativa do Brasil. Com o fim do individualismo absoluto no direito de propriedade ocorreu uma grande mudança de perspectiva, na qual todo o ordenamento jurídico passou a enxergar as repercussões sociais deste direito. Nas palavras de Gama 31 : A pessoa humana substitui a noção de indivíduo, já que inserida no plano da vida comunitária e real e não distanciada dos dilemas sociais e econômicas existentes. O estágio atual é o de negação ao exacerbado individualismo, marca indelével do período das codificações oitocentistas e, desse modo, o novo modelo, fundado na integração dos valores coletivos nas relação intersubjetivas, se instrumentaliza na noção de função social. A inserção dos valores democráticos no tema da propriedade impõe torná-la mais permeada de valores sociais e culturais de inclusão e efetivo aproveitamento do bem. No campo dos bens imóveis, as reformas agrária e urbana se mostram fundamentais como importantes instrumentos políticos objetivando permitir a concretização do objetivo de solidariedade social. (grifou-se) Em sua obra, Priscila Ferreira Blanc 32 enaltece os efeitos de tal alteração no ordenamento jurídico pátrio, ao destacar que: esclarece: A mudança, com efeito, é bastante grande, pois, se anteriormente, no vigor do caráter absolutista da propriedade, os proprietários apenas não podiam utilizar suas propriedades de forma que prejudicassem a terceiros, agora, sob a égide da função social da propriedade são eles obrigados a utilizá-las de forma que beneficiem a comunidade. E mais adiante, ao falar sobre a propriedade de terras, a autora supracitada 30 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito das coisas. p. 88. 31 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direitos reais.p. 229. 32 BLANC, Priscila Ferreira. Plano diretor urbano & função social da propriedade. p. 42. 11

O dever de utilizar a propriedade em benefício de outrem vai além de meramente não utilizá-la em prejuízo de terceiros. A proibição da utilização errônea da terra converteu-se em obrigação da utilização correta. (grifou-se) Da mesma forma, Cristiano Farias 33 mudanças ocorridas: também disserta sobre as grandes Enquanto o proprietário do Estado Liberal agia nos limites impostos pela lei, segundo a máxima posso fazer o que quiser, desde que não prejudique terceiros, o proprietário dos tempos atuais sofre uma remodelação em sua autonomia privada, considerando que deve fazer tudo para colaborar com a sociedade, desde que não se prejudique. A propriedade deixa de cumprir meramente a função individual de outorgar uma posição de vantagem a seu titular. A autonomia privada do titular descobre o plano da intersubjetividade, ao se exigir que o proprietário compreenda que a sua felicidade se condiciona ao complementar reconhecimento da dignidade alheia e do anseio da sociedade por bem-estar. A utilização da expressão função social da propriedade, na verdade, não passa de uma opção ideológica para, em um sentido mais amplo, podermos compreender que toda e qualquer situação individual patrimonial se submete a um perfil solidário e redistributivo, no qual a prevalência axiológica da realização da pessoa humana submete as exigências utilitaristas de produtividade econômica a uma dose de conformação. (grifou-se) Orlando Gomes 34 ressalta que a aplicação do princípio da função social da Propriedade não pode ser restrita: A propriedade deve ser entendida como função social tanto em relação aos bens imóveis como em relação aos bens móveis. A concepção finalista apanha a propriedade rural, em primeiro lugar, porque a terra era até poucos tempos atrás o bem de produção por excelência e a empresa, que é o seu objeto na propriedade produtiva da sociedade industrial, bem como, embora sem a mesma eficácia, os valores mobiliários. Não se trata de uma posição apriorística, mas sim de uma posição de rigor lógico com o conceito de função social que polariza a propriedade para a realização de finalidades ou objetivos sociais. (grifou-se) Em sua obra, Bulos 35 ressalta a importância dada pelo legislador constituinte originário ao instituto da Função Social da Propriedade, mencionando quatro vezes esta locução (arts. 5º, XXIII; 170; 182, 2º; e 186, caput), demonstrando assim que Pretendeu enfatizar que a propriedade não é mero direito privado, e sim uma instituição voltada ao cumprimento de uma função social. 33 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direitos reais. p. 244. 34 GOMES, Orlando. Direitos reais. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 123. 35 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. p. 598. 12

Ressaltando a variedade de restrições existentes ao direito de propriedade, José Cretella Jr. 36 traz em seu magistério: [...] o direito de propriedade, outrora absoluto, está sujeito, em nossos dias, a numerosas restrições, fundamentadas no interesse público e também no próprio interesse privado, de tal sorte que o traço nitidamente individualista, de que se revestia, cedeu lugar a concepção bastante diversa, de conteúdo social, mas do âmbito do direito público. A classificação da propriedade como cumprindo ou não cumprindo função social tem reflexos na prática, já que a primeira tem tratamento tributário privilegiado em relação à segunda, quer se trate de propriedade urbana, quer se trate de propriedade rural. (grifos do autor) Pedro Lenza 37 leciona acerca das repercussões que o não cumprimento do princípio da função social da propriedade pode acarretar: [...] caso a propriedade não esteja atendendo a sua função social, poderá haver a chamada desapropriação-sanção pelo Município com pagamentos em títulos da dívida pública (art. 182, 4º, III) ou com títulos da dívida agrária, pela União Federal, para fins de reforma agrária (art. 184), não abrangendo, nesta última hipótese de desapropriação para fins de reforma agrária, a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, e não tendo o seu proprietário outra, e a propriedade produtiva (art. 185, I e II). No tocante à propriedade urbana, a desapropriação-sanção é a última medida, já que, primeiro, procede-se ao parcelamento ou edificação compulsórios e, em seguida, à imposição de IPTU progressivo no tempo, para, só então, passar-se à desapropriação-sanção. Desta forma, pode-se perceber que o próprio conceito de propriedade se alterou, possuindo atualmente dentro de sua estrutura, segundo a doutrina brasileira majoritária, a obrigatoriedade do cumprimento da função social na forma prevista constitucionalmente. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho teve como objetivo geral investigar o conceito doutrinário atual sobre o princípio constitucional da Função Social da Propriedade. Didaticamente este trabalho foi dividido em quatro momentos: 36 CRETELLA JR., José. Elementos de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 262. 37 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 691. 13

O primeiro tratou de citar conceitos fundamentais acerca da natureza dos princípios constitucionais vigentes no Brasil, objetivando facilitar o entendimento do princípio estudado. Esta breve explanação se justificou, pretendendo que o trabalho fosse corretamente assimilado, uma vez que princípios constitucionais são objeto de grandes debates, por sua própria natureza subjetiva. A segunda parte da pesquisa foi destinada a ressaltar a existência de diversas limitações ao Direito de Propriedade que controlam e limitam a liberdade de atuação do proprietário. É importante destacar que o princípio abordado neste trabalho, qual seja o da Função Social da Propriedade, não se encaixa nesta classificação, pois conforme visto na pesquisa ele não é um limitador do direito de propriedade, mas sim parte integrante deste. No terceiro momento, foram estudadas as origens do princípio constitucional da Função Social da Propriedade, especialmente no aspecto da origem ideológica que deu fundamento à criação deste princípio. Pode-se destacar que, apesar de ainda restarem discussões sobre a origem deste instituto, a personalidade mais notável e que mais contribuiu com suas ideias para o surgimento do entendimento que posteriormente levou à criação desta previsão constitucional foi León Duguit, que afirmava que a propriedade não é um direito subjetivo do proprietário, mas sim a função social do detentor da riqueza. No quarto e último momento foram elencados diversos conceitos doutrinários referentes ao princípio constitucional objeto deste estudo que serviram para que o leitor pudesse realizar uma efetiva análise da doutrina predominante hodiernamente no direito pátrio. Foi possível perceber que a doutrina brasileira majoritária atual tende a convergir no sentido de que a Função Social da Propriedade não deve ser encarada apenas como uma limitação ao Direito de Propriedade, mas sim como uma parte integrante deste, sem a qual a própria Propriedade deixa de existir. 14

REFERÊNCIAS BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 1999. BARRETO, Lucas Hayne Dantas. Função social da propriedade: análise histórica. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 778, 20 ago. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7164>. Acesso em: 11 maio 2012. BESSONE, Darcy. Direitos reais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. BLANC, Priscila Ferreira. Plano diretor urbano & função social da propriedade. Curitiba: Juruá, 2008. BODNAR, Zenildo. Curso objetivo de direito de propriedade. Curitiba: Juruá, 2005. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. CHALHUB, Melhim Namem. Propriedade Imobiliária: função social e outros aspectos. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. CRETELLA JR., José. Elementos de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do direito contitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá. 2004. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. 4 v. FARIAS, Cristiano Chaves de. Direitos reais. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direitos reais. São Paulo: Atlas, 2011. GOMES, Orlando. Direitos reais. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito das coisas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 5 v. GRAU, Eros Roberto. Função Social da Propriedade (Direito Econômico). In: FRANCA, R. Limongi (coord.) Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. 15

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito das coisas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das coisas. 38. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. 3 v. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006. PROUDHON, Pierre Joseph. A propriedade é um roubo. Porto Alegre: L&PM, 1997. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Direito das coisas. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. 16