O Enigma da Chegada. Um romance em cinco partes. quetzal serpente emplumada V.S. Naipaul. Tradução de José Vieira de Lima



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Transcrição:

V.S. Naipaul

O Enigma da Chegada Um romance em cinco partes Tradução de José Vieira de Lima quetzal serpente emplumada V.S. Naipaul

Em memória do meu querido irmão Shiva Naipaul 25 de fevereiro de 1945, Port of Spain 13 de agosto de 1985, Londres

I O jardim de Jack

Nos primeiros quatro dias, choveu. Eu mal conseguia ver onde estava. Depois, a chuva parou e, para lá do relvado e dos anexos em frente da minha pequena casa rústica, via campos com árvores despidas de folhas nos limites de cada um deles; e, mais ao longe, consoante a luz, lampejos de um pequeno rio; por vezes, tinha a estranha sensação de que as águas do rio se situavam acima do nível da terra. O rio chamava-se «Avon»; não o Avon que associamos a Shakespeare. Mais tarde quando a terra ganhou um significado mais profundo, quando já tinha absorvido uma porção mais vasta da minha vida do que a rua tropical onde crescera senti-me à vontade para designar mentalmente os campos planos e húmidos, com regos, como «brejos» ou «prados alagados», e as elevações de formas suaves, arredondadas, para lá do rio, como downs ou «pequenas colinas». Porém, naquela altura, depois da chuva, tudo o que eu via apesar dos vinte anos que já tinha passado em Inglaterra eram campos planos e um rio estreito. Era inverno. A ideia de inverno e neve sempre me entusiasmara; porém, em Inglaterra, a palavra perdera para mim alguma da sua aura romântica, porque os invernos ingleses raramente eram tão extremos como aqueles que eu imaginara quando vivia muito longe, na minha ilha tropical. Sentira

12 V.S. Naipaul a severidade do tempo noutros locais em Espanha, em janeiro, numa estância de esqui perto de Madrid; na Índia, em Simla, em dezembro, e nas alturas dos Himalaias em agosto. Porém, em Inglaterra, este tempo severo mais parecia uma miragem. Em Inglaterra, usava o mesmo tipo de roupa todo o ano; raramente vestia um pulôver; mal precisava de uma gabardina. E, embora soubesse que os verões eram ensolarados e que, no inverno, as árvores ficavam despidas, fazendo lembrar vassouras, como nas aguarelas de Rowland Hilder, o ano no que respeitava à vegetação e mesmo à temperatura era, para mim, uma espécie de borrão indistinto. Tinha dificuldade em distinguir uma fase ou estação da outra; não associava as flores nem a folhagem das árvores a nenhum mês específico. E, no entanto, gostava de ver a paisagem; reparava em tudo e podia ficar comovido com a beleza das árvores, das flores, das alvoradas radiosas, dos fins de tarde em que a luz se demorava. O inverno era para mim essencialmente uma época de dias curtos e de luzes elétricas acesas por todo o lado à hora do trabalho; e também uma época em que a neve era uma possibilidade. Se digo que era inverno quando cheguei àquela casa no vale do rio, é porque me lembro do nevoeiro, dos quatro dias de chuva e nevoeiro que não me deixavam ver as terras à minha volta e que ecoavam a ansiedade que sentia na altura, ansiedade em torno do meu trabalho e daquela mudança para um local novo, mais uma das muitas mudanças que me tinham levado a Inglaterra. Era inverno, também, porque eu estava preocupado com os custos do aquecimento. Na casa, havia apenas eletricidade mais dispendiosa do que o gás ou o petróleo. E não era nada fácil aquecer aquela casa. Era comprida e estreita; não ficava longe dos prados alagados e do rio; e, do chão de cimento à terra distariam, quando muito, uns trinta centímetros.

O Enigma da Chegada 13 Até que, certa tarde, começou a nevar. A neve polvilhou o relvado em frente da minha casa; polvilhou os ramos nus das árvores; deu relevo a coisas que passavam despercebidas, aos anexos vazios e velhos em torno do relvado a que, até então, eu não prestara atenção ou cuja presença ainda não retivera; de tal forma que, paulatinamente, enquanto apreciava a neve que caía, um quadro grosseiro do meio em que eu vivia foi-se desenhando ao meu redor. Coelhos saíam das suas tocas para brincarem na neve ou para comerem. Uma coelha, toda curvada, com três ou quatro crias. Eram uma cor diferente, suja, na neve. E esta imagem dos coelhos, ou, mais especificamente, da sua nova cor, faz emergir ou cria os outros pormenores desse dia de inverno: a luz tamisada pela neve ao fim da tarde; as estranhas casas vazias em torno do relvado que se tornavam brancas e distintas e mais importantes. Também me traz à memória a floresta que eu julgava ver para lá da cerca embranquecida junto à qual os coelhos comiam. O relvado branco; as construções vazias em redor do relvado; a cerca de um dos lados do relvado, a brecha que havia na cerca, um caminho; a floresta para lá desse caminho. Eu via uma floresta. Mas não era realmente uma floresta; era apenas o velho pomar nas traseiras do casarão em cuja propriedade se encontrava a minha casa. Aquilo que via, via-o muito claramente. Mas não sabia para que estava a olhar. Não tinha nada em que pudesse encaixar aquilo que via. Sentia-me ainda numa espécie de limbo. No entanto, havia certas coisas que eu conhecia. Conhecia o nome da vila aonde chegara de comboio. Era Salisbury. Era quase a primeira localidade inglesa que eu conhecera, a primeira de que tivera alguma noção, graças à reprodução da pintura de Constable da Catedral de Salisbury no meu livro de leitura da terceira classe. Muito longe, na minha ilha tropical, quando ainda nem tinha dez anos. Uma reprodução a quatro cores que me parecera a mais bela imagem que jamais vira. Sabia que a casa em que me ia instalar ficava num dos vales fluviais perto de Salisbury.

14 V.S. Naipaul Tirando o lado romântico da reprodução de Constable, o conhecimento que eu trazia para o meu novo meio-ambiente era linguístico. Sabia que «avon», originalmente, significara tão-só «rio», tal como «hound» na sua origem significara «cão», qualquer tipo de cão, e não um cão de caça. E sabia que os dois elementos constitutivos de Waldenshaw o nome da aldeia e da mansão em cuja propriedade eu ia residir, ou seja, «walden» e «shaw», significavam «floresta». Mais uma razão para que, independentemente da sensação de conto de fadas proporcionada pela neve e pelos coelhos, eu julgasse ver uma floresta. Também sabia que a casa ficava perto de Stonehenge. Sabia que havia um caminho que conduzia até perto do círculo de pedras; sabia que, num ponto elevado desse caminho, se tinha uma vista magnífica. E, certa tarde, quando a chuva parou e o nevoeiro se dissipou, depois desses quatro primeiros dias, resolvi sair e procurar o caminho e a vista. Não havia nenhuma aldeia digna desse nome. Sentia-me contente com isso. Conhecer pessoas ter-me-ia deixado nervoso. Depois de todo o tempo que passara em Inglaterra, ainda sentia esse nervosismo de um sítio novo, essa sensibilidade crua; ainda sentia que vivia no território do outro, ainda me sentia um estrangeiro, um solitário. E toda e qualquer viagem a uma nova parte do país aquilo que, para outros, poderia ter sido uma aventura era para mim como remexer numa velha ferida. A estreita estrada pública acompanhava os terrenos sombrios, isolados por teixos, da herdade. Do outro lado da estrada e da cerca de arame e da vegetação enfezada na berma da estrada, uma colina erguia-se íngreme. Stonehenge e o caminho ficavam nessa direção. Deveria haver um trilho que levasse da estrada pública a esse caminho. Para encontrar esse caminho, deveria virar à esquerda ou à direita? Para dizer a verdade, não havia problema nenhum. Chegando a um trilho, virava-se à esquerda; chegando a outro trilho, virava-se à direita. Esses dois trilhos encontravam-se na casa de Jack,

O Enigma da Chegada 15 ou na velha quinta onde ficava a casa de Jack, no vale para lá da colina. Havia dois caminhos para a casa. Caminhos diferentes: um era muito antigo, o outro era novo. O caminho antigo era mais longo, mais plano; seguia o leito de um rio, um velho leito, amplo e sinuoso; teria sido usado por carroças noutros tempos. O caminho novo adequado a máquinas era mais íngreme, escalava a colina para depois cair a pique. Chegava-se ao velho caminho se se virasse à esquerda na estrada pública. Faias pendiam sobre este trecho da estrada. O caminho seguia ao longo de uma saliência no monte, imediatamente acima do rio; e, depois, quase descia ao nível do rio. Aqui, havia algumas, poucas, casas. Reparei: uma velha casa pequena de tijolo e pedra com um belo pórtico; e, na margem do rio, muito perto de água, uma casa de paredes brancas e telhado de colmo que estava a ser «remodelada». (Passados alguns anos, essa casa continuava em vias de remodelação; para lá das janelas empoeiradas ainda se viam sacas de cimento meio cheias.) Aqui, neste pequeno conjunto de casas, metia-se pelo velho caminho para se chegar à casa de Jack. Um caminho asfaltado passava diante de uma meia dúzia de casinhas sem nada de invulgar, duas das quais exibiam era o seu único toque fora do comum o elaborado monograma do proprietário, do construtor ou do arquiteto, com uma data que, coisa surpreendente, era uma data da guerra: 1944. O asfalto acabava, o caminho estreito tornava-se rochoso; depois, à medida que se entrava pelo vale, este alargava-se, com muitos sulcos silicosos abertos por rodas, separados por faixas irregulares de rijos tufos de ervas. Sentia-se que era um vale muito antigo. À esquerda, uma encosta escarpada ocultava uma outra vista. Esta encosta era nua, sem árvores nem mato; sob o ténue e macio manto de erva, distinguiam-se linhas e riscas, como marcas de chicotadas, sugerindo longos anos consecutivos de cultivo em tempos recuados; sugerindo também fortificações. O amplo caminho serpenteava; o amplo vale (talvez

16 V.S. Naipaul um antigo leito fluvial), onde se situava nessa altura o caminho, estendia-se direito e comprido, limitado ao longe por uma colina baixa. A casa de Jack e o terreiro da quinta ficavam no extremo desse vale, no sítio onde o caminho mudava de direção. O outro caminho para a casa de Jack, o mais curto, o mais íngreme, o mais recente, que subia junto a um trecho da estrada para depois descer até ao vale e ao terreiro da quinta, era ladeado a norte de um corta-vento de jovens faias protegidas por pinheiros mais altos. No cimo da encosta, havia um celeiro moderno, com paredes metálicas; um pouco mais abaixo, no outro lado da encosta, havia uma brecha no corta-vento. Era aí que se podia ter uma vista de Stonehenge: ao longe, pequeno, difícil de enxergar, mais indistinto que os alvos de tiro militares, vermelhos ou cor de laranja, luminosos. E, no fundo da encosta, no fundo do caminho rochoso e irregular que acompanhava o corta-vento, encontravam-se as construções abandonadas da quinta e a fila sobrevivente de habitações de casinhas rurais, entre as quais a de Jack. Em redor, todas as colinas eram silicosas e secas, de um castanho esbranquiçado, de um verde esbranquiçado. Porém, em baixo, em torno dos edifícios da quinta, o solo era lamacento e negro. As rodas de tratores tinham escavado uma linha de charcos irregulares na lama negra. Na primeira tarde, quando desci pelo caminho escarpado protegido pelo corta-vento e cheguei aos edifícios da quinta, tive de perguntar qual era o caminho para Stonehenge. No alto, no sítio onde se tinha uma boa vista de Stonehenge, tudo parecera simples. Porém, depois desse sítio, tinha havido uma sucessão de colinas e encostas; cavidades e caminhos tinham sido ocultos; e, no fundo, onde a lama e os largos charcos tornavam a marcha difícil e faziam com que os espaços parecessem mais vastos, e onde parecia haver muitos caminhos, alguns a partir do amplo caminho do vale, acabei por me sentir confuso, perdido. No entanto, era uma busca simples naquela paisagem

O Enigma da Chegada 17 vazia; e eu não me tinha esquecido de que, no primeiro dia, perguntara a alguém qual era o caminho. Teria sido Jack? Não fixei a pessoa; estava mais preocupado com o estranho carácter do passeio, com a minha própria estranheza, e com o absurdo da minha questão. Disseram-me que contornasse os edifícios da quinta, virasse à direita, seguisse pelo caminho principal, o mais largo, e ignorasse todos os caminhos mais tentadores, os caminhos de terra seca, que partiam do caminho principal para os bosques que ficavam no outro lado, jovens bosques que, falaciosamente, sugeriam terras recônditas, a orla da floresta. Assim, depois de ter passado a lama em torno das casinhas e do terreiro da quinta e a misturada de madeira velha e de velho arame farpado todo emaranhado e de peças de máquinas agrícolas notoriamente ao abandono, virei à direita. O largo caminho lamacento cobriu-se de ervas ervas altas e molhadas. E quando, passado pouco tempo, depois de ter deixado os edifícios da quinta para trás, dei por mim a caminhar num vasto e velho leito vazio de um rio, a sensação de espaço tornou-se esmagadora. O caminho cheio de ervas, o antigo leito fluvial (era o que eu pensava), subia de tal forma que o olhar se fixava algures a meio caminho entre a terra e o céu; e, de ambos os lados do caminho, erguiam-se as encostas das colinas, que se alargavam e agigantavam contra o céu. Num dos lados, havia gado; no outro, para lá de um pasto, uma vasta área escalvada, onde cresciam jovens pinheiros, como uma pequena floresta. Dir-se-ia uma paisagem antiga; tinha-se uma sensação de espaço, de terra nunca ocupada, do princípio das coisas. Não havia casas à vista, nada a não ser o amplo caminho cheio de ervas, o céu por cima dele, e as largas encostas de ambos os lados. Nesse trecho do itinerário, era possível uma pessoa sentir o vazio, fixar-se na ideia de vazio. Porém, quando cheguei ao cimo do caminho e fiquei ao nível dos túmulos e mamoas que

18 V.S. Naipaul se espalhavam pelas altas colinas em volta, e olhei para Stonehenge em baixo, vi também os campos de tiro da planície de Salisbury e as muitas casinhas, de aspeto cuidado, de West Amesbury. O vazio, os grandes espaços no seio dos quais me sentira a caminhar, eram tão ilusórios como a ideia de floresta para lá dos jovens pinheiros. Por todo o lado e a pouca distância passavam estradas e autoestradas, com camiões e carros de cores vivas que pareciam brinquedos. Stonehenge, as mamoas e os túmulos antigos recortados contra o céu; os campos de tiro militares, West Amesbury. O antigo e o novo; e, de uma época intermédia, ou a meio caminho, o terreiro da quinta com a casinha de Jack no fundo do vale. Muitos dos edifícios da quinta já não eram usados. Os celeiros e os estábulos paredes de tijolo vermelho, telhados de ardósia ou de telhas de barro em torno do terreiro lamacento degradavam-se a olhos vistos; e, nos estábulos, só de vez em quando havia gado gado doente, vitelos frágeis, isolados da manada. Telhas caídas, telhados esburacados, chapas de ferro enferrujadas, metal torcido, uma humidade que tudo impregnava, tons de ferrugem, castanho e preto, com um musgo luzidio ou de um verde extinto na lama pisada e repisada, amaciada pelo esterco do estábulo: o isolamento dos animais naquele local, como coisas prestes a serem descartadas, era terrível. Numa determinada época, tinha havido naquele local gado que sofria de alguma malformação. A criação desses animais tornara-se tão mecânica que a sua malformação também parecia mecânica, causada por algum erro no processo industrial. Bizarras excrescências de carne tinham-se formado em diversas partes do corpo, como se tivessem formado o animal num molde constituído por duas metades e, na junção do molde da matéria-prima do animal, a mistura a partir do qual o fabricavam tivesse transbordado; as excrescências tinham então endurecido e ganhado a consistência da carne, revestindo-se da pelagem preta e branca do gado frísio. Nesse terreiro

O Enigma da Chegada 19 de quinta arruinado, abandonado, cheio de esterco e musgo, onde a única coisa nova era a sua própria bosta, os animais tinham ficado ao longo dos anos, sobrecarregados por esse bizarro fardo, com essas excrescências dependuradas do meio do corpo como papadas de touro, como pesadas cortinas, aguardando a viagem derradeira até ao matadouro. Longe dos velhos edifícios da quinta, ao longo do amplo caminho plano que eu imaginava ser a velha estrada para a quinta e a casinha de Jack, havia outros vestígios e ruínas, relíquias de outros esforços ou vidas. No final desse amplo caminho, num dos lados, envolvidas pelas ervas altas, viam-se umas caixas pintadas de cinzento e dispostas em duas filas. Soube mais tarde que eram ou tinham sido colmeias. Nunca me disseram quem é que se ocupava das abelhas. Seria um trabalhador da quinta, algum dos moradores das casinhas rurais, ou seria alguém que, dispondo de mais tempo para o lazer, se lançara numa pequena atividade de apicultor, que abandonara e esquecera depois? Abandonadas, insondáveis, as caixas cinzentas que, para quem quer que fosse, não valia a pena recuperar, tornavam-se algo misteriosas naquele espaço aberto. Do outro lado do grande caminho, cuja vasta curva em torno dos edifícios da quinta começava precisamente aí, via- -se, abrigada por jovens árvores e mato, uma velha caravana verde, amarela e vermelha, em bom estado, uma caravana cigana de tempos idos (foi o que eu pensei), que dava a sensação de ter perdido os cavalos pouco tempo antes. Um outro mistério; um outro objeto construído com apuro e depois deixado ao abandono; um outro fragmento do passado que já não servia para nada, mas que ninguém fizera desaparecer. Tal como as peças de máquinas agrícolas, antiquadas, dispersas, ocupando demasiado espaço, que se iam enferrujando cada vez mais no terreiro da quinta. A meio do trecho reto do grande caminho, muito para lá das colmeias e da caravana, erguia-se uma velha meda, feita

20 V.S. Naipaul com fardos de feno empilhados em forma de cabana e coberta com um plástico velho e preto. O feno era agora palha escura; rebentos verdes espreitavam no meio do negrume da meda; esse feno que, num verão, alguém, com todo o esmero, ceifara, enfardara e empilhara, degradava-se, transformando-se em estrume. Agora, guardavam o feno da quinta num barracão moderno, aberto, uma estrutura pré-fabricada que exibia o nome do seu fabricante um pouco abaixo do vértice do telhado. O barracão fora erigido ao lado da confusão e da imundície do velho terreiro da quinta como se houvesse sempre espaço disponível e nunca fosse necessário recuperar as velhas estruturas. No barracão, o feno era fresco e tinha um cheiro doce e cálido; e os fardos eram arrumados em degraus dourados, limpos, com um odor quente, que, para mim, evocavam a história da palha que, depois de fiada, volvia ouro, e as alusões, nos livros cujas histórias se passavam na Europa, a homens que dormiam na palha dos celeiros. Eu nunca compreendera isso em Trindade, onde a erva para o gado era sempre cortada fresca e verde, e nunca deixavam que se transformasse em palha. Agora, no inverno, no fundo daquele vale húmido: fardos de palha dourada em altas pilhas, cálidos degraus dourados ao lado da lama negra sulcada por rodas. Não muito longe da meda abandonada erguida em forma de cabana ou de uma casinha rural, viam-se os restos de uma verdadeira casa, uma casa com paredes que, aparentemente, tinham sido feitas com pedra silicosa e cimento. Uma casa simples e talvez sem alicerces, encontrava-se agora completamente esventrada. Paredes em ruínas, sem teto, chão de terra nua nem o menor vestígio de uma pedra ou de um chão de cimento. Desprendia-se daquelas ruínas uma tão forte impressão de humidade! A toda a volta do terreno, as árvores que o limitavam sicómoros, faias ou carvalhos tinham crescido desproporcionadamente, fazendo com que a casa parecesse pequena. Outrora, teriam passado praticamente despercebidas, essas árvores que, continuando a crescer enquanto

O Enigma da Chegada 21 a casa deixara de viver, cobriam com uma sombra perpétua uma terra gelada, musgosa, negra. Junto às estradas públicas, casas mais pequenas, construídas no século anterior por gente que ocupara terras devolutas, essencialmente trabalhadores agrícolas, tinham firmado direitos de propriedade para os construtores e os seus descendentes. Porém, aqui, junto ao caminho cheio de ervas, no meio das colinas e dos campos e da solidão, o proprietário ou o construtor da casa não deixara nada atrás de si; nada fora firmado, estabelecido. Apenas as árvores que ele plantara tinham continuado a crescer. Talvez a casa tivesse sido apenas o abrigo de um pastor. Mas essa era apenas uma hipótese. As cabanas dos pastores teriam sido por certo mais pequenas; e as árvores em torno do terreno não sugeriam uma cabana de pastor, não sugeriam que um homem ali se tivesse alojado, de vez em quando, apenas durante alguns dias. As ovelhas já não eram os principais animais da planície. Uma vez, assistira à tosquia de ovelhas. O trabalho era executado por um homem corpulento, um australiano, como me disseram, e a tosquia decorria num dos velhos edifícios paredes de madeira e teto de ardósia ao lado da fila de casas onde Jack vivia. Assisti à tosquia por um mero acaso; nunca ouvira falar de tal coisa; muito simplesmente, coincidiu com um dos meus passeios à tarde. Mas era notório que algumas pessoas sabiam da tosquia; as pessoas da quinta e pessoas de outros locais tinham-se reunido para apreciar o acontecimento. Era uma demonstração de força e rapidez: o animal era erguido e tosquiado (e, por vezes, ferido) de um só golpe, após o que o despachavam dali para fora na sua estranha nudez. A cerimónia parecia saída de um romance de outros tempos, talvez de Thomas Hardy, ou de um almanaque agrícola da era vitoriana. E era como se, nesse momento preciso, os campos de tiro da planície de Salisbury, e os trilhos brancos deixados no céu pela aviação militar, e os barracões do exército e as ruidosas autoestradas tivessem deixado de existir. Era

22 V.S. Naipaul como se, naquele recanto, perto dos edifícios da quinta e da casa de Jack, o tempo tivesse parado por um breve momento e as coisas continuassem a ser como haviam sido em tempos remotos. Mas a tosquia das ovelhas pertencia de facto ao passado. Como as velhas construções da quinta. Como a caravana que nunca mais se faria à estrada. Como o celeiro onde já ninguém guardava os cereais. Este celeiro tinha no cimo uma janela, da qual se projetava um suporte metálico. Talvez uma roldana e uma corrente ou uma corda tivessem sido fixadas a esse suporte para içar os fardos que vinham nas carroças, fazendo-os depois entrar no celeiro através da janela. Havia o mesmo dispositivo antigo na cidade de Salisbury, no piso superior daquela que fora em tempos uma mercearia reputada. Este dispositivo sobrevivera ou então tinham-no preservado como uma antiguidade, uma imagem de marca, um pormenor que ficava bem numa velha cidade que se preocupava com o seu passado. Porém, aquilo que, na cidade, era uma antiguidade, no fundo do vale, não passava de lixo. O suporte fazia parte de um celeiro que se ia degradando inverno após inverno deixavam-no sobreviver, tal como aos outros edifícios dilapidados da quinta, porque, naquela região protegida, os regulamentos só permitiam a construção de novos edifícios nos locais onde havia construções antigas. E, tal como o barracão moderno pré-fabricado substituíra a velha meda em decomposição, também mas mais longe, não uma simples adição aos velhos edifícios da quinta o verdadeiro celeiro se erguia agora no cimo da colina, ao lado do corta-vento. Tinha paredes de chapa galvanizada; devia ser à prova de ratos. Aí, eram as máquinas que tudo comandavam; e os potentes camiões (e já não as carroças que, em tempos, deviam usar o caminho plano que conduzia ao velho celeiro no fundo do vale) deixavam a estrada, metiam pelo caminho rochoso, estacionavam no pátio de cimento do celeiro, e a calha do celeiro despejava os poeirentos cereais nas fundas carroçarias dos camiões.