A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS EM GOIÁS: UMA RETROSPECTIVA HISTÓRICA. Elizabeth Gottschalg Raimann (Universidade Federal de Goiás - Campus Jataí)



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Transcrição:

A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS EM GOIÁS: UMA RETROSPECTIVA HISTÓRICA Elizabeth Gottschalg Raimann (Universidade Federal de Goiás - Campus Jataí) Numa pesquisa realizada junto a Escola Modelo instituição municipal de educação na cidade de Itumbiara/Goiás buscou-se compreender os nexos entre as políticas educacionais voltadas para a oferta e a manutenção da educação de jovens e adultos e as práticas educacionais realizadas no interior da escola tendo como referencial teórico de análise as contribuições de Michel Foucault. A partir da análise documental disponível na escola municipal fez-se um levantamento do inicio das atividades dessa modalidade de ensino relacionando-a com as propostas do governo estadual e federal. Desta forma, este trabalho apresenta a trajetória da educação de jovens e adultos no contexto local e nacional, bem como os discursos produzidos em torno dessa educação no período entre as décadas de 1970 a 2000. A trajetória da Educação de Jovens e Adultos no contexto local e estadual Nos arquivos disponibilizados pela Secretaria Geral da Escola Modelo pôde-se encontrar documentos que indicam a implantação da Educação de Jovens e Adultos EJA- por volta do ano de 1993. Essa afirmação se sustenta conforme registros da autorização nº 014/93 da Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Desporto Superintendência de Ensino Não-Formal (SUPENFOR) e Ofício Circular nº 016/93 da mesma superintendência. O primeiro documento está datado em 09/03/1993 e autoriza o funcionamento do Projeto Saturnus na escola, conforme Resolução nº 144 de 07/12/1990 do Conselho Estadual de Educação do Estado de Goiás; o outro documento, Ofício Circular nº 016/93, por sua vez oferece o livro do professor Oficina das Letras como sugestão a ser adotada na 1ª Etapa (alfabetização) do Programa de Educação Básica (P.E.B). Tanto o Projeto Saturnus e o P.E.B. estão inseridos no programa do governo federal que,

posteriormente, passa a responsabilidade do P.E.B. ao governo estadual, como se verá mais adiante no Oficio Circular nº084/93. O Programa de Educação Básica do governo federal é originário do Programa de Educação Integrada (P.E.I.), o qual teve como órgão responsável por sua execução o MOBRAL Movimento Brasileiro de Alfabetização. Esse movimento foi criado pela Lei nº 5.370, de 15/12/67 sendo regulamentado em setembro de 1970 e teve como objetivo a alfabetização urbana analfabeta de 15 a 35 anos e, posteriormente, crianças de 9 a 14 anos a partir de 1974, para regular o fluxo de alunos do 1º grau (Cunha, 1991). Conforme Cunha, o MOBRAL foi organizado para desenvolver quatro programas: a Alfabetização Funcional, a Educação Integrada, o Desenvolvimento Comunitário e as Atividades Culturais. O Programa Educação Integrada teria 12 meses de duração, posteriores à alfabetização, compreendendo o conteúdo compacto das quatro primeiras séries do ensino de 1º grau (Cunha, 1991, p.256). No levantamento da história da EJA em Goiás realizado pela pesquisa de Machado (2001), a autora menciona o P.E.I. e destaca o Parecer n. º 44/73 do C.F.E., de 24 de janeiro de 1973. Esse documento justifica a importância do Programa de Educação Integrada pelo fato de ser realizado em doze meses letivos, após cinco ou seis meses do curso de alfabetização, pois seus alunos assimilavam em menor tempo as informações devido ao amadurecimento, ao estímulo do desenvolvimento motor e da percepção. O referido Parecer foi sancionado no Estado de Goiás pela Resolução nº 1.032, de 27 de abril de 1973, que estabeleceu normas gerais para o Ensino Supletivo (Machado, 2001). Em 1972, a responsabilidade de desenvolver o Programa de Educação Integrada foi transferida para as secretarias estaduais de educação conforme documento que dá informações gerais para o funcionamento do Curso de Alfabetização e Suplência I para a Escola Modelo e será analisado mais à frente. Na década de 1970, foi criado o Departamento de Ensino Supletivo (DESu) pelo Decreto n. º 281/71 da Secretaria da Educação e Cultura do Estado de Goiás como órgão responsável pelo planejamento, implantação e implementação do Ensino Supletivo, de acordo com o previsto na Lei n. º 5.692/71. O DESu assumiu as funções do Serviço de Educação de Adultos, que até então assumia os cursos noturnos

vinculados ao Departamento de Ensino Primário, nas três décadas anteriores (Machado, 2001). Segundo Machado (2001), o DESu em 1973, amparado pela legislação do supletivo em nível nacional e estadual, desenvolve programas e projetos como cursos e exames supletivos na função suplência; cursos na função de suprimento, incluindo o de habilitação de docentes leigos: Projeto Lúmen; cursos nas funções aprendizagem e qualificação e o projeto de implantação do Centro de Estudos Supletivos de Goiânia. O Projeto Saturnus, por sua vez, foi concebido como uma extensão da ação desse Centro de Estudos Supletivos CES (Resolução n. º 411 de 22 de dezembro de 1977) para oferecer o 1º grau a adolescentes e a adultos com idade igual ou superior a 17 anos, que não tivessem concluído a escolarização regular, correspondente às quatro últimas séries do ensino de primeiro grau (Machado, 2001). Os Centros de Estudos Supletivos são apresentados por Mafra (1980) que faz um trabalho detalhado a respeito da estrutura arquitetônica e didática para a implantação desses centros no país, mostrando a importância dessas estruturas para o sucesso da proposta. Desta forma, entre os anos de 1973 a 1983, a Educação de Jovens e Adultos em Goiás esteve ligada à modalidade de Ensino Supletivo, contando com inúmeros programas no DESu. Posteriormente, o Ensino Supletivo seria denominado por Alfabetização e Suplência I, para as quatro primeiras séries da 1ª fase do Ensino Fundamental. Na década de 1980, o MOBRAL entra em fase de declínio, pois tanto o Programa de Alfabetização Funcional como o Programa de Educação Integrada não conseguiram alcançar as metas estabelecidas para a erradicação do analfabetismo (Machado, 2001). No Estado de Goiás, até meados dos anos 1980, os números apontavam positivamente o aproveitamento da aprendizagem dos alunos em decorrência do êxito do trabalho que o supletivo alcançou, conforme levantamento realizado por Machado (2001). No período da reabertura política, a autora afirma que as mudanças no setor da educação provocaram resultados que levaram a um revés o Ensino Supletivo. Em 1985, extinto o MOBRAL, deu-se lugar a Fundação Educar que assimilou sua estrutura e passou a apoiar técnica e financeiramente iniciativas de governos estaduais, municipais e entidades civis. Em 1990 essa fundação se extinguiu, acontecendo o

mesmo com o Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania PNAC que esteve na ativa somente por um ano (Di Pierro; Jóia; Ribeiro, 2001). Considerando-se a importância que o Ensino Supletivo teve no contexto da Reforma do Ensino no Brasil, no início da década de 1970, normatizando a organização didático-pedagógica da Educação de Jovens e Adultos EJA - e considerando-se que este se estendeu também para a Escola Modelo com a denominação de Curso de Alfabetização e Suplência I, conforme Ofício Circular nº 084/93, faz-se necessário conhecer a proposta desse ensino específico na lei que o originou e revisitar o contexto de sua implantação apreendendo sua estrutura e seu funcionamento bem como os discursos que se estabeleceram em regimes de verdade a partir de sua implantação. Trabalho este que se pautará na análise elaborada por Nagle (1976) que trata da Lei 5.692/71, nos seus aspectos de natureza técnico-pedagógica e administrativa. Década de 1970 e o ensino supletivo Nagle (1976) em A reforma e o ensino tem como propósito de suas análises delinear um quadro geral dos princípios e das medidas constantes da Lei nº 5.692/71 a fim de contribuir para fornecer um instrumental de trabalho para a equipe escolar agir com segurança no trato das questões levantadas pela referida lei (p.5). A Lei Federal 5.692/71, que regulamenta a reforma do Ensino de 1º e 2º graus, no artigo 24 apresenta a finalidade desse ensino como sendo a de suprir a escolarização regular para adolescentes e adultos que não a tenham seguido ou concluído na idade própria; proporcionar, mediante repetida volta à escola, estudos de aperfeiçoamento ou atualização para os que tenham seguido o ensino regular no todo ou em parte. E por fim, o ensino supletivo abrangerá cursos e exames a serem organizados nos vários sistemas de acordo com as normas baixadas pelos respectivos Conselhos de Educação. Ao tratar em específico do Ensino Supletivo, Nagle inicia com o texto do Parecer 699/72 do Conselho Federal de Educação (C.F.E.), aprovado em 6/7/72, regulamentando essa modalidade de ensino: O Ensino Supletivo encerra, talvez, o maior desafio proposto aos educadores pela Lei 5.692 de 11 de agosto de 1971. Ligando o presente ao passado e ao futuro, na mais longe linha de continuidade e coerência histórico-cultural de uma reformulação educacional já feita entre nós, ele constitui e constituirá cada vez

mais, a realidade escolar às mudanças que se operarem em ritmo recente e no mundo. [...] Não é, portanto, de admirar que o capítulo IV do novo diploma legal seja, ao mesmo tempo, fonte de grandes entusiasmos e causa de significativas reticências. Uns proclamam que a ele, com vantagem, tenderá a reduzir-se no futuro a Lei 5.692; outros simplesmente o temem, quando não o deploram (Nagle, 1976, p.89). No entendimento de Nagle, as afirmações acima demonstraram o caráter revolucionário a que se propunha, na época, às novas normas de educação supletiva pretendendo com isso solucionar a problemática da educação escolar brasileira. Isso aconteceria, ainda segundo o autor, mediante a redefinição dos antigos preparatórios e dos mais recentes exames de madureza ajustando-se às condições do presente e às do futuro e assim ao lado do que já estava estabelecido abrir cursos, solução que para regularizar a situação presente, naquilo que pode conter de negativo (1976, p.89). E, continua Nagle, justificando o legislador ao tratar da suplência: A distorção das idades é um problema que a educação supletiva procura resolver. Outro, também importante no mundo atual, propõe-se sob a forma de exigência, cada vez maior, de retornos continuados para a atualização dos conhecimentos, tanto gerais como especializados, único caminho que torna possível enfrentar as constantes e cada vez mais profundas mudanças sociais e tecnológicas. É nesse sentido que a solução proposta para a educação supletiva firma-se no presente e projeta-se no futuro, com as suas múltiplas aberturas e virtualidades (Nagle, 1976, p.89). Di Pierro, Jóia e Ribeiro (2001) numa breve análise a respeito da Lei 5692/71 no que se refere a EJA, apresentam que a flexibilidade foi um de seus componentes mais significativos do atendimento educativo (p.62), concretizada nas modalidades de Cursos Supletivos, Centros de Estudos e Ensino à distância. Essa flexibilidade é possível depreender a partir do artigo 25 relativo ao Ensino Supletivo que propõe o emprego de variados meios de comunicação, conforme se pode ler: O ensino supletivo abrangerá, conforme as necessidades a atender, a iniciação no ensino de ler, escreve e contar e a formação profissional definida em lei específica até o estudo intensivo das disciplinas do ensino regular e a atualização de conhecimentos. Os cursos supletivos terão estrutura, duração e regime escolar que se ajustam às finalidades próprias e ao tipo especial de aluno a que se destinam. Os cursos supletivos serão ministrados em classes mediante a utilização de radio, televisão, correspondência e outros meios de comunicação que permitam o maior alcançar o maior número de alunos (Nagle, 1976, p. 91).

O discurso que se estabeleceu em torno da proposta do Ensino Supletivo era como se esse pudesse resolver, de uma vez por todas, as questões referentes à falta de escolarização e os males decorrentes disso; como se fosse possível, mediante uma flexibilidade, promover uma adesão incondicional por parte daqueles que necessitassem de uma formação continuada para a obtenção de melhores empregos, ao mesmo tempo pudesse levar o país a um patamar mais produtivo e competitivo por meio de uma melhor qualificação da mão de obra. O ensino supletivo inserido na reforma do ensino da década de 1970 está no contexto político-econômico da ditadura militar, no qual prevalecia o discurso do Brasil-potência. Ribeiro (2000) na análise que faz da organização escolar no período da ditadura militar infere que devido a aproximação entre a elite econômica internacional e as minorias responsáveis pelo golpe militar isto não só influenciou mais determinou os dispositivos normativos presentes na Lei nº 5.692/71. E a autora chama a atenção para as intenções explícitas e implícitas presentes nos objetivos gerais e específicos de cada grau de ensino e assim se posiciona: É possível supor quão estreitamente ligados eram os interesses das minorias responsáveis pelo golpe militar de 1964 e os da burguesia internacional, que iriam determinar o texto legal e, mais ainda, os efeitos práticos sobre a ordenação da educação brasileira das Leis nº 5.540/68 e 5.692/71. [...] Da impressão de que a inspiração da Lei nº 5.692/71 é de base liberal (humanista moderna), causada pelo exame dos objetivos proclamados, passa-se à conclusão de que a inspiração é em última instância de base tecnicista, quando do exame dos objetivos reais, orientados por uma compreensão sobre o contexto no bojo do qual a lei foi projetada e aprovada (Ribeiro, 2000, p.193-194). Percebe-se como a sociedade capitalista se estabeleceu e se fortaleceu por meio de práticas discursivas e por uma tecnologia de controle e disciplinarização tornando o sujeito produtivo e dócil. O contexto, sócio-cultural, político e econômico dessa época, se apresentou num conjunto de relações que propiciaram a aparição e a proliferação de determinados discursos no campo da educação, como o caso do discurso tecnicista, materializando-se em documentos de normatização e práticas pedagógicas conformando o aluno à sociedade capitalista, pois no tecnicismo valorizava-se a técnica pela técnica e o conhecimento adquirido era avaliado de forma quantitativa e a avaliação era um fim em si mesma.

Essas referências à regulamentação do ensino supletivo nos encaminham ao documento enviado à Escola Modelo pela Secretaria da Educação e Cultura, Superintendência de Educação à Distância e Continuada por volta de 1993 que trata do Funcionamento do Curso de Alfabetização e Suplência I. Esse, na sua fundamentação legal, traz o seguinte texto: Informações gerais para o funcionamento do Curso de Alfabetização e Suplência I: 1 Fundamentação legal: O Programa de Educação Integrada foi criado em 1971, tendo como órgão responsável pela execução o antigo MOBRAL. Em 1972, esta responsabilidade foi transferida para as Secretarias Estaduais de Educação e, em 1973, o Conselho Federal, através do Parecer nº 44//73, reconheceu o Programa de Educação Integrada como Curso Supletivo, equivalente às quatro primeiras séries da 1ª fase do Ensino Fundamental, com validade nacional e com direito a prosseguir os estudos via Ensino Supletivo ou Regular. O referido programa será desenvolvido a partir de 1994 com a denominação Alfabetização e Suplência I de acordo com a Resolução nº 695/93 do Conselho Estadual de Educação do Estado de Goiás (Goiás. Secretaria da Educação e Cultura, Superintendência de Educação á Distância e Continuada, Departamento técnico-pedagógico, Divisão de Cursos, 1994, p.01). Junto a esse documento segue oficio Circular nº 084/93 de 06/12/1993 que informa a reestruturação do Programa de Educação Básica por meio da resolução do C.E.E. do estado de Goiás, nº 695 de 17/09/93 e, posteriormente, segue o dispositivo legal que autoriza o funcionamento dos cursos pela Escola Modelo por parte da Superintendência de Ensino Não-Formal. Pode-se perceber que as resoluções encaminhadas para a EJA estão em nome da Superintendência de Ensino Não-Formal e depois pela Superintendência de Educação à Distância e Continuada. As mudanças ocorridas ao se nomear o órgão responsável pela EJA em Goiás é assim apresentado por Machado: Nas últimas décadas em Goiás, em especial a de 1990, no que se refere à Educação de Jovens e Adultos, é preciso destacar as mudanças sofridas pelo órgão responsável por essa modalidade de ensino no estado, que já passou por seis denominações diferentes no século XX: Serviço de Educação de Adultos, nas décadas de 1940 a 1960; Departamento de Ensino Supletivo (DESu), na década de 1970; Unidade de Ensino Supletivo (UES), na década de 1980; Superintendência de Educação Não-formal (Supenfor) e Superintendência de Educação a Distância e Continuada (Seadec ou Sued), na década de 1990. Há dificuldade de localizar, nos documentos oficiais, uma explicação para essas alterações, mas pode ser observado que se relacionam com o lugar e o papel que a Educação de Jovens e Adultos vai assumindo no decorrer da história, na política educacional brasileira (Machado, 2001, p.48).

O dispositivo legal enviado a Escola Modelo apresenta todas as informações necessárias ao funcionamento da proposta do Curso de Alfabetização e Suplência I e traz numa inscrição a lápis no topo do documento os seguintes dizeres a Bíblia da Suplência. Esse enunciado caracteriza a importância que o dispositivo tem para o corpo técnicoadministrativo (supostamente alguém da escola fez a inscrição) em conduzir o curso proposto, pois a SEADEC estabelece um estatuto extremamente normatizador, detalhando as diferentes responsabilidades tanto do corpo técnico-administrativo, como do corpo docente e discente. A estrutura e o funcionamento dessa proposta para os cursos demonstra a preocupação do órgão responsável em disciplinar e normatizar tanto a EJA quanto seus alunos, quando estabelece uma série de prescrições apresentadas, como por exemplo, na matrícula, nos critérios para o ingresso do aluno, sistema de promoção, procedimentos e critérios para a implantação do curso. Percebe-se com isso que o campo da educação, em especial o da EJA, é extremamente produtivo, pois discursivamente se produz a identidade de seus alunos, ou seja, se diz o que são, o que se quer deles e o que devem ser para se ajustar à sociedade que aí se estabelece. Década de 1990 e a educação de jovens e adultos Durante o período de 1985 a 1992 a EJA ocupou um espaço contraditório no contexto nacional. Enquanto a Constituição Federal, de 1988, ampliava o direito à educação básica a jovens e adultos, o governo federal, reduzia seus interesses pela EJA e, conseqüentemente, suas ações de intervenção nessa modalidade de educação. Em âmbito mundial, a EJA passou a ser alvo das atenções, sobretudo de organismos multilaterais como a UNESCO, UNICEF, Banco Mundial e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Esses organismos planejaram a Conferência Mundial de Educação para Todos, em 1990, e durante a sua realização foi elaborada a Declaração de Jomtien, por meio da qual os países signatários assumiram compromissos com a educação básica e com a erradicação do analfabetismo (Di Pierro; Jóia; Ribeiro, 2001).

A omissão e o desinteresse do governo federal esteve presente em seus discursos em diversos momentos no início da década de 1990 e produziu, além de uma rarefação de investimentos para a EJA, regimes de verdade, conforme o discurso do ex-ministro da Educação José Goldemberg manifestando-se contrário à educação de adultos por entender que este investimento era desnecessário por não trazer resultados significativos, conforme ilustra o fragmento abaixo: O grande problema de um país é o analfabetismo das crianças e não o dos adultos. O adulto analfabeto já encontrou o seu lugar na sociedade. Pode não se bom lugar, mas é o seu lugar. Vai ser pedreiro, vigia de prédio, lixeiro ou seguir outras profissões que não exigem alfabetização. Alfabetizar o adulto não vai mudar muito sua posição dentro da sociedade e pode até perturbar. Vamos concentrar nossos recursos em alfabetizar a população jovem. Fazendo isso agora, em dez anos desaparece o analfabetismo (Goldemberg, 1991 apud Beisiegel, 1997, p. 30). Quanto às práticas provenientes da rarefação do investimento governamental, temos a falta de apoio por parte do governo federal que se estende também às ações por parte dos governos estaduais na EJA. Com isto, muitos municípios, que atendiam esta educação, passaram a assumir sozinhos a responsabilidade de oferecer esta modalidade de ensino, com recursos próprios e, muitas vezes, sem o preparo técnico para gerenciar estas ações (Di Pierro; Jóia; Ribeiro, 2001). Considerando a trajetória da EJA no contexto estadual e federal, a pesquisa de Machado (2001) faz referência ao município de Itumbiara que estava integrado ao Programa de Educação de Alfabetização e Cidadania. Nesse programa, em 1989, por meio de uma iniciativa desenvolvida por parte do governo local no Plano Municipal de Alfabetização, o projeto abriu 19 salas atendendo a 558 alunos adultos, dos quais 103 eram funcionários da prefeitura. Considerações finais Atualmente, a Escola Modelo está autorizada a funcionar para ministrar a EJA, conforme dispositivo legal da Portaria nº 3914/2001, por um período de quatro anos letivos, a partir de janeiro de 2000, no nível Ensino Fundamental, 1º e 2º Segmentos, com equivalência de estudos de 1ª a 8ª séries.

A trajetória da oferta e manutenção da educação de jovens e adultos não pode ser desvinculada dos regimes de verdade do campo econômico e político e esses por sua vez estabelecem vínculos estreitos com as práticas pedagógicas elaboradas em torno dessa modalidade de ensino. Bibliografia BEISIEGEL, Celso de Rui. Considerações sobre a política da União para a educação de jovens e adultos analfabetos. Revista Brasileira de Educação, nº4, p.26-34, jan-abr. 1997. CUNHA, Luiz Antonio. Educação e desenvolvimento social no Brasil. 12.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991. DI PIERRO, Maria Clara, JÓIA, Orlando, RIBEIRO, Vera Masagão. Visões da educação de jovens e adultos no Brasil. Cadernos Cedes, UNICAMP, ano XXI, nº55, novembro 2001 b, p.58-77. GOIÁS. Secretaria da Educação, Cultura e Desporto, Superintendência de Ensino Não- Formal, Departamento Técnico-Pedagógico, Divisão de Cursos. Informações Gerais para o funcionamento do Curso de Alfabetização e Suplência I [1994]. MACHADO, Maria Margarida.A política de formação de professores que atuam na educação de jovens e adultos em Goiás na década de 1990. 2001. 231 f. Tese (Doutorado em Educação: História, Política, Sociedade) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2001. MAFRA, Mario Sérgio. Conhecendo um Centro de Estudos Supletivo. 2. ed Brasília: NEC/SEPS, 1980 NAGLE, Jorge. A reforma e o ensino. 2.ed. São Paulo: EDART/MEC, 1976. 109 p. RIBEIRO, Maria Luisa Santos. História da Educação Brasileira: A organização escolar. 16. ed. Revisada e ampliada.campinas: Autores Associados, 2000. 207