O TRABALHO DOCENTE NA VOZ DA PROFESSORA: APONTAMENTOS SOBRE O EXERCÍCIO DA PROFISSÃO



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Transcrição:

O TRABALHO DOCENTE NA VOZ DA PROFESSORA: APONTAMENTOS SOBRE O EXERCÍCIO DA PROFISSÃO TOSCANO, Carlos UEL/Pr ctoscano@uel.br Área Temática 4: Formação de Professores e Profissionalização Docente Resumo No presente trabalho apresenta-se e discute-se parte dos resultados de uma pesquisa que realizamos com alunas-professoras do curso de Pedagogia da UEL, entre 2006 e 2008, que investigou os desafios e as perspectivas que se apresentam para a atuação docente, nos anos iniciais do ensino fundamental e suas implicações na formação inicial de professores para essa mesma etapa da escolaridade focalizando-se o ensino de Ciências realizado por estes profissionais com suas turmas de alunos. Para tanto, tomou-se como referência os estudos realizados por Charlot, Bakhtin e Lahire, levando-se em conta que esses autores, em suas especificidades, situam nas práticas sociais a gênese do especificamente humano, destacando nesse processo o papel do outro e da mediação semiótica. Os dados aqui compartilhados resultaram de encontros realizados entre 2007 e 2008 e se referem a um dos sujeitos desta pesquisa, que à época era professora regente de uma turma de 2ª. Série, em uma instituição pública de ensino no interior do Paraná. O estudo, que buscou contribuir para ampliar a visibilidade das condições nas quais alunas em formação inicial têm se tornado professoras das séries iniciais, acabou por colocar em evidência o entrelaçamento de variados fatores que configuraram a ação de uma professora em um contexto particular, enfatizando as questões geradas pela forma como se viveu a implementação de uma política de resultados, implementada pelos órgãos responsáveis, que orientava o conjunto de ações no interior da escola e que acabava gerando uma certa competição e prioridades. E também um certo descompasso entre essas demandas e o ritmo do aprendizado das crianças assim como a necessidade de interlocução, nem sempre satisfeita, para discussão, planejamento e aprimoramento do trabalho realizado. Palavras-chave: Formação de professores; Trabalho docente; Anos iniciais do ensino fundamental; Ensino de ciências. Introdução Este trabalho que ora apresento resulta dos estudos sobre a formação e atuação docentes que vimos realizando há mais de uma década e que nos últimos anos voltou-se para

177 o interior do curso de Pedagogia em que atuamos, envolvendo alunas-professoras, isto é, sujeitos que vivem dois papéis: o de aluna no referido curso e o de professora, nos anos iniciais do ensino fundamental. Nesse contexto específico, estudamos os processos pelos quais nos constituímos professores elegendo a relação com o saber na área de Ciências Naturais construída no trabalho docente como uma forma de refletir sobre própria formação e atuação dessas professores(as) nos anos iniciais do ensino fundamental. Para tanto, selecionamos um grupo de alunas do curso de Pedagogia que, independente do ano de ingresso, atuavam no magistério dos anos iniciais do ensino fundamental. Um dos grupos formados correspondia ao perfil esperado: elas haviam feito o Magistério em nível médio, o que lhes garantia a possibilidade de atuarem como professoras na referida etapa da educação básica. Nesse estudo põe-se em relevo a narrativa de uma dessas professoras na qual ganham destaques fragmentos de seu percurso de formação e o relato de uma de suas experiências vividas nessa condição. Assumindo a perspectiva de que a gênese do especificamente humano se encontra nas relações sociais em que os sujeitos participam e destacando, nesse processo, o papel do outro e da mediação semiótica, Charlot, nos estudos sobre a relação com o saber, Bakhtin/Voloshinov, nos estudos da linguagem, e Lahire, nos estudos sobre a escola, acabaram por oferecer contribuições significativas para este estudo. A partir do momento em que nascemos se coloca para nós uma necessidade de aprender, visto que somos introduzidos em um mundo preexistente: o mundo humano. Charlot (2000, p.53) nos lembra que: Nascer é penetrar nessa condição humana. Entrar numa história, a história singular de um sujeito na história da espécie humana. Entrar em um conjunto de relações e interações com outros humanos. Entrar em um mundo onde ocupa um lugar (inclusive social) e onde será necessário exercer uma atividade.

178 O processo formativo de um profissional, professor/a, abarca múltiplas dimensões e instâncias formativas e configura-se como uma síntese de inúmeras relações sociais vividas (o que importa também em singularidade). Sendo assim, a constituição desse profissional é parte da constituição de um sujeito que vem sendo historicamente produzido. Todo esse processo tem início com o nascimento do sujeito em suas relações sociais que passam a ser vividas. Tais relações ficam indiciadas em suas práticas que, por sua vez, são sempre delimitadas pelas condições sociais de produção dessas práticas. Bakhtin/Voloshinov (2001, p.11) nos falam de um segundo nascimento, o nascimento social, que se segue ao nascimento biológico. Para eles: O homem não nasce como organismo biológico abstrato, mas como fazendeiro ou camponês, burguês ou proletário: isto é o principal. Ele nasce como russo ou francês e, por último, nasce em 1800 ou 1900. Só essa localização social e histórica do homem o torna real e lhe determina o conteúdo da criação da vida e da cultura. (grifos dos autores). Esta localização do homem singular, no tempo e no espaço de sua existência, permite situá-lo no processo histórico e social, possibilitando que se possa compreendê-lo nas relações sociais em que se vai apropriando da realidade, ao mesmo tempo que vai interferindo nela e, assim, edificando sua biografia. Biografia marcada pelos lugares sociais ocupados, pelas interlocuções produzidas no diálogo ininterrupto da cadeia de comunicação verbal. Ocupamos, ao longo da vida, diferentes lugares sociais e, por vezes, até mesmo no mesmo local. Esse, embora não seja o único, é o caso da escola dos anos iniciais para os seus professores. Inicialmente ocupamos o lugar de alunos/as e, depois, o lugar de professores. Tais mudanças nos lugares sociais ocupados, de acordo com Fontana (2008, p. 598): Repercutem na constituição da identidade pessoal e profissional em que vários novos elementos contam na formação da imagem de si, tais como o nível de qualificação e de formação frente às aspirações, às dificuldades práticas das tarefas e os riscos do fracasso, os julgamentos de pares e superiores hierárquicos, o investimento simbólico de que a atividade se reveste, dentre outros. Apontando para o dinamismo que envolve o processo de apropriação do mundo e que implica também uma (re)elaboração deste, Charlot (op. cit., p. 53) afirma ainda que esse

179 sistema de sentido, no qual se diz quem sou eu, quem é o mundo, quem são os outros, se elabora no próprio movimento através do qual eu me construo e sou construído pelos outros, esse movimento longo, complexo, nunca completamente acabado. Referenciais teórico-metodológicos O trabalho docente pressupõe a necessidade de lidar com múltiplas exigências em um campo específico de relações sociais historicamente construídas numa situação singular que configura uma determinada instituição escolar. A escola, nos lembra Lahire (1997, p.69), não é um simples lugar de aprendizagem de saberes, mas sim, e ao mesmo tempo, um lugar de aprendizagem de formas de exercício do poder e de relações com o poder. Adentrar esse espaço implica, portanto, conhecer e atuar no interior de complexos dispositivos que, de acordo com Guedes-Pinto e Fontana (2006, p.72), são Entendidos como conjuntos organizados e estabilizados de procedimentos relativos às diversas formas da atividade humana, apesar de produzidos em condições históricas determinadas, naturalizam-se como modos de agir, de pensar, de enunciar, aos quais recorremos se mesmo nos darmos conta. A opção por escolher situações particulares tem-se apresentado como uma possibilidade de aproximação do modo como vem se dando, historicamente, o funcionamento desses dispositivos que envolvem o funcionamento da escola, como eles se configuram em situações concretas, como repercutem nos atores envolvidos e como estes atuam nas circunstâncias que se apresentam. Para o estudo de configurações particulares recorri às narrativas das protagonistas dos acontecimentos. Narrativas estas que foram construídas na interlocução entre o pesquisador e a equipe de alunas-professoras em que se tematizavam fragmentos do percurso de formação e suas experiências como professoras, dando-se destaque às questões que envolviam o ensino de ciências, como uma forma de direcionamento e aproximação com o real na problemática da atividade docente. Ou seja, buscou-se tornar visíveis aspectos de uma escola em funcionamento, e, nesta, ações e reflexões de uma particular professora em suas tentativas para um bom ensino, dirigido para crianças em uma classe de 2ª série, de uma das áreas de conhecimento sob a sua responsabilidade.

180 Nesse sentido, a narrativa resultou de um processo de interação que teve como base a confiança no compartilhamento dos dilemas e desafios vividos no espaço de trabalho escolar e também no da formação inicial e no acolhimento, pelo grupo, das questões que emergiam, inicialmente como questões pessoais, nesse novo lugar social por elas ocupado. Se não nascemos professores/as, mas nos tornamos, a compreensão do processo formativo que nos leva a sê-lo, de uma maneira determinada, concreta e real, pode tornar-se mais produtiva quando abrimos espaço para as várias instâncias que participaram desse processo, buscando também identificar enlaces e interconexões, rupturas e continuidades. Sendo assim, para a análise do relato escolhido assumi a perspectiva enunciativadiscursiva proposta por Bakhtin e Voloshinov. Para ambos, Uma análise fecunda das formas do conjunto das enunciações como unidades reais da cadeia da comunicação verbal só possível de uma perspectiva que encare a enunciação individual como um fenômeno puramente sociológico. (BAKHTIN;VOLOSHINOV, 2002, p.126) Isto porque para esses autores, a palavra dita dirige-se, por um lado, a um interlocutor e, portanto, a enunciação, é marcada por tal situação, por outro, a palavra, como signo, é retirada pelo interlocutor de um estoque social de signos disponíveis. Desse modo, foram objeto de atenção as vozes sociais que compareceram no interior das enunciações e deram corpo ao relato, uma vez que estas são também respostas a outros enunciados originados não somente das condições do diálogo face a face em que estamos envolvidos nos momentos de interlocução, mas também diálogos que se realizavam com interlocutores localizados em outros espaços e tempos. O relato da professora A professora aqui referida tem aproximadamente 25 anos e viveu na cidade de Itanhaem, situado no litoral sul do estado de São Paulo. Conta que sua aproximação à profissão e ao curso do Magistério no ano de 2000, se deveu a uma indicação de sua mãe pelo fato deste ter ser oferecido em período integral, na época denominado de Centro Específico de Formação e Atualização do Magistério (CEFAM), e haver uma bolsa de estudos, o que nas circunstâncias do momento transformou-se em fator decisivo.

181 Torna-se professora, à época, não era uma questão que se colocava para ela. Entretanto, acabou aceitando a indicação da mãe, pois não tinha outro desejo. Conseguiu passar no exame de seleção e verificou que nos dois primeiros anos desse curso, era igual ao do colegial, mas que existiam atividades diferenciadas no outro turno e citou: estudos do meio, atividades de laboratório de biologia, dentre outras. A partir do terceiro ano a especificidade do curso emerge mais claramente: surgiram as metodologias e aí as atividades se voltavam mais diretamente para a atuação docente. Lembrou ainda que havia uma escola municipal em frente ao CEFAM que acabou servindo como campo de estágio e que as atividades eram discutidas e orientadas no segundo período do curso. A partir de 2004, iniciou o curso de Pedagogia e, assim, pode realizar um sonho antigo, o de adentrar o campus da Universidade Estadual de Londrina, que ficava à margens da rodovia que a levava à casa do avô. Rememorando acontecimentos nos cursos de formação, Magistério e Pedagogia, a professora disse que no primeiro o quadro de professores/as era muito reduzido: professora de metodologia de Ciências também dava de Filosofia, acho que ela não era da área (de Ciências), o que tinha era voltada para a feira de ciências, havia uma sala que a gente fazia experiências para as crianças. Recordou que também faziam teatro e que o Magistério se preocupou bastante com a Educação Infantil: também porque a gente tinha tempo para conversar sobre os estágios, apresentar os trabalhos e trocar as coisas, pelo fato do curso ser integral. Ao referir-se ao curso de Pedagogia, ela fez a seguinte consideração: Acho que tem muita diferença entre o Magistério e a Pedagogia. Eu que fiz os dois vejo isso. Tem muita gente que entra na Pedagogia agora e não tem noção da sala de aula, da questão do lúdico. Tem gente até que fala: isso é coisa do Magistério, está enfeitando muito! Mas a gente fazia muitas coisas diferentes: fazia livro, livro da vida. Então tinha que pesquisar e aí a gente aprendia muito porque tinha que fazer com capricho. Nesse livro tinha que pesquisar desde o nascimento até os cinco anos. Pegava revista tinha que escrever, fazer resumos daquilo que se pesquisava e comprava uma ata de 50 páginas e escrevia e colava as figuras. Eu tenho até hoje. Depois eu fiz da adolescência. Naquela época era tudo escrito, não tinha essa coisa de computador. Fazia-se também livros infantis, criava-se histórias, lendas, mitos, histórias com as coisas que aconteciam no estágio, eu me lembro de ter escrito sobre o menino gordo, uma história em quadrinhos, ele não era chamado para fazer educação física. E uma outra que eu fiz era a de um menino que não emprestava as coisas. Faziam-se muitas coisas, não só pela exigência do professor, tínhamos que pesquisar sobre aquilo. Estudava-se só para isso. Tínhamos que ter aquela dedicação. Com o tempo podíamos nos dedicar mais.

182 Aqui (na Pedagogia) a diferença foi tanto que no terceiro ano eu fiquei esperando mais. Vai-se retomar. Mas achei interessante que a gente viu mais a questão teórica que lá, deixou um pouco a desejar também. Nem todos os professores levavam isso tão a fundo. Que é importante a questão de discutir a prática em sala de aula. Mas acho que uma coisa complementou a outra, no meu caso. Após uma iniciação profissional na Educação Infantil, ela afirmou que sua condição profissional se alterou bastante a partir do segundo semestre de 2006, quando começou a atuar nas séries iniciais, na condição de professora aprovada em concurso público no município vizinho a Londrina. Sua atuação na segunda série do ensino fundamental da rede publica escolar desse município a colocou diante de novas necessidades e desafios: No primeiro dia de aula eu fiquei muito nervosa. Quando eu me vi diante delas, 33 crianças, eu não sabia nem o que falar. Porque é uma sensação diferente. Tem aquela coisa: agora era de 1ª. à 4ª série. No dia em que eu fui escolher a escola, eu percebi: nossa!, Agora eu vou dar aula de 1ª. à 4ª. série. Então tenho que conhecer um pouco mais o assunto para ter a didática para explicar. Por isso que eu acho que é diferente. Como eu também não tinha experiência, era um pouco insegura, eu me preocupava com cada frase, de entender para dizer para eles. Porque quando eu pedisse para que eles falassem, eu iam lembrar do que eu tinha dito. Então se dissesse o que não tinha nada a ver eles iam reter isso, achando que aquilo era verdadeiro, pois eles não questionam muito a gente. Então eu tinha um pouco de receio de estar explicando de forma imprecisa, que fugisse um pouco. Por isso eu achava que tinha que ter mais responsabilidade de estar estudando aquilo para ter mais segurança. E as crianças se prendem muito naquilo que a gente fala. Eu via: isso aqui eu falei, isso também. Nesta nova situação, a professora buscou de variadas formas, novas interlocuções com o intuito de corresponder ao esperado. Uma das buscas se voltou para a coordenadora da escola: Quando eu entrei [na sala da segunda série] a sala já estava encaminhada, era uma sala ótima, tudo que vc propunha eles faziam, não teve muito aquela coisa de: eu vou sentar, vou ver com ela, certinho. Porque era uma sala boa. E também porque ela via que eu estudava, que eu já tinha experiência com alfabetização, então não teve muito aquela preocupação de dar suporte. Eu que ficava indo atrás, posso dar isso, aquilo, trabalhar desse jeito. Ia mais atrás do que ela chegava. Ela [a coordenadora] só indicava: tem tal caderno do professor se você quiser dar uma olhada..., tem uma biblioteca que tem os livros tal e tal..., mas não ajudava, não sentava junto para fazer. Eu mostrava o que preparava porque assim tinha mais segurança naquilo que estava sendo planejado. Até hoje, lá, nessa escola, ela não pede caderno de planejamento. Quando eu vou dar as atividades, ela não fala assim: deixa-me olhar antes de você dar. Não, fica livre. Ela só perguntava: você está dando tal conteúdo? Ciências vai trabalhar isso? Geografia? Você está dando? Está fazendo avaliação contínua? Tal dia tem que me entregar as notas! Então é mais por esse lado.

183 As diferentes áreas de conhecimento, que são objeto de ensino nas séries iniciais do ensino fundamental, provocaram nuances nos movimentos de busca e interlocução pela professora: Português foi mais tranqüilo para explicar, tenho facilidade com a interpretação de texto, tiro muito dos textos para discussão. Na Matemática, na 2ª. série, não é tão complicada. É diferente da 4ª. série, que é terrível, bem mais complicada. Na 2ª. não é tanto, então, eu dava conta também, eu tinha facilidade para explicar e era muito concreto e era interessante. Ciências, História e Geografia eram mais assim: tinha os conteúdos lá (no livro) e tinha que buscar material, porque o livro as vezes, era muito pobre. Falava sobre o assunto, mas era muito simplificado. Então se ia atrás de textos. Mas o que se encontrava mais é para você estudar o assunto. Não para ensinar. Quando tinha projeto de escolas, você não tinha acesso aos materiais. Então era mais por isso. Em Ciências, eu também contava com a ajuda de uma bibliotecária na escola. Ela me ajudava separando os materiais dos assuntos que eu passava para ela: revista ciência hoje, livros inclusive de 5ª. à 8ª, dicionários, quando eu preciso e livros, só de caixa alta. Eu tenho tido muito apoio dela e como nossa hora-atividade é muito curta, não dá tempo de fazer tudo. Como ela conhece bem o material que tem na biblioteca, fica mais fácil. A professora também nos relatou uma significativa experiência vivenciada na elaboração e desenvolvimento de um projeto, da qual toda a rede de escolas foi convidada a participar: Todo ano tinha a proposta da secretaria municipal. E aí eles colocavam que um professor da escola tinha que participar para representar a escola. Então eu quis participar e mais duas professoras. Então ficou: uma da 4ª., uma da 1ª. e eu da 2ª. Nós fomos numa reunião, trouxeram para nós, explicaram sobre o projeto e fizeram uma proposta para nós. Como eu não tinha feito nenhum projeto na escola achei interessante fazer. Mas pelo conhecimento do que pela competitividade. Como esse projeto tinha premiações, acabava gerando competição. E eu não gosto de fazer nada para competir porque estraga, é um entrave na educação. Eu achei muito interessante ter participado, fiquei muito satisfeita, deu muito resultado, só que nesse ano (2008) eu já não tenho mais vontade de fazer, porque eu tive muita dificuldade. Teve uma situação quando do plantio das mudas, minha classe era numerosa, com 28 alunos e minha auxiliar estava ajudando uma outra turma. Minha orientadora sabia disso porque eu mostrava o planejamento e as datas com o que ia acontecer. E naquela hora não apareceram para me ajudar para descer com as crianças. Minha auxiliar se ofereceu, mas não era o horário dela ficar comigo mesmo assim ela acabou me ajudando. É complicado porque tem todo um processo de plantar, tem que esperar a vez, e, por isso, tem que ter alguém. O projeto pedia para explorar o espaço da escola, mas você não tinha pessoal. E sozinho não se dava conta. Acabava desanimando. Estressava muito. Outra coisa era aquele individualismo. Eu não estava acostumada com isso. Eu gosto de ajudar todo mundo. Mas como tem premiação, acabava incentivando a

184 competitividade. Eu ficava triste, cada um olhando para si. E esses projetos eram um pouco assim. No dia da apresentação dos projetos, contou-nos a professora: [...] teve a visita do prefeito, e o foco [da apresentação] ficou só nisso: o prefeito assistiu essa apresentação, falou, teve sessão de fotos, aquela coisa, e os meus alunos, que ficaram num canto, eu os preparei para apresentar, para explicar. E eles foram organizados para isso: um grupo ia explicar sobre as sementes, outro sobre as raízes, etc. Eles ficaram empolgados com tudo isso! O prefeito que vinha, e tal. Mas o prefeito viu a outra apresentação e depois foi embora. Nem a secretária da educação ficou: só deu uma olhadinha. E na minha cabeça, os outros alunos iam descer para os meus alunos explicarem. Mas ninguém desceu e voltamos para a sala. Então qual foi o objetivo? Na explicação a gente aprende mais. Eu esperava que eles pudessem explicar para a 1ª. série e também para os maiores, mas não foi isso o que aconteceu e eu fiquei muito frustrada. Em 2008, com a chegada de novas professoras, ela buscou uma interlocução com elas, lembrando que: Quando eu cheguei à escola, em 2006, eu ficava atrás de todo mundo e achava que quem estava há mais tempo que eu tinha o que me ensinar. Eu esperava a mesma coisa, mas não. Essas pessoas que chegaram não têm muito contato comigo. No começo do ano a gente estava muito juntas. Como as nossas horas-atividades são separadas... A minha turma é diferente das turmas delas. Uma turma é aquela que está mais avançada, bem mais avançada, enquanto que a outra se parece um pouco com a minha. Só que como a gente faz hora-atividade separada, as duas ficam juntas e eu fico sozinha. Elas vão fazendo, tendo idéias e não vão trocando comigo. Eu no começo ia muito lá: olha tem o caderno do planejamento do ano passado, tenho tal atividade. Elas começaram a disparar na minha frente, se preocupando muito com o conteúdo, em si, enquanto eu tinha que me preocupar mais com a alfabetização, retomando. Eu não podia me fixar só no conteúdo das 5 disciplinas. Minha turma é mais lenta, leva mais tempo. E tem sempre que retomar, retomar, retomar. E elas lá na frente. Eu não sei..., a orientadora me elogia muito, eu não sei se isso gera um conflito, sem eu querer. Acho que é isso o que está acontecendo. Isso tudo desanima. Não é para concorrer. A gente tem que fazer as coisas porque temos uma visão de mundo, uma visão de alguma coisa, de ser humano, de compromisso, e não porque você quer se destacar, o profissional de destaque (risos). Com relação ao trabalho com a turma de 2008, a professora destacou significativas diferenças na interlocução com os pais das crianças:

185 Esse ano é diferente do ano passado: os pais estão agora cobrando mais, não estão compreendendo tanto o trabalho como no ano passado. Antes (no ano anterior), desde o começo, na primeira reunião eu coloquei como é que era a turma, que não adiantava comparar com a outra turma, porque às vezes tem amigo, parente, e aí começa: lá eles estão vendo tal coisa e a gente não. Porque eles eram de uma turma que não tinham visto certos conteúdos, então tinha que retomar. E os pais entendiam mais. Nesse ano a cobrança está maior, em termos assim: letra de mão, por que meu filho não escreve com letra de mão?, O que está acontecendo?. E explica que o importante é o conteúdo, o que ele está escrevendo, e não se está de caixa alta, baixa. De que adianta isso se ele fica travado? Porque no começo, essa transição, é muito difícil para eles. E na produção de texto, eles ficam lá olhando a letra e o pensamento vai embora, a atenção fica na forma da letra. Então tem que ser aos poucos. Eu expliquei para os pais que ia ser aos poucos, que eles iam na oficina de manhã para treinar, mas que eu não ia deixar escrever com a letra de mão, só quando eu via que tinham segurança. E aí ficou muito batendo nessa tecla. No boletim, quando a gente deixa uma nota em aberto, para ele ter uma chance, aí questiona: eles não têm notas! Esse ano está mais complicado por isso. Mas isso ainda é o de menos. Outra diferença apontada pela professora diz respeito ao aumento do número de classes e no foco de atenção que, segundo ela, está na primeira (série) e as demais professoras acabam ficando em segundo plano. Ela contou ainda que: A secretaria cobrava muito, demais. Começou, tinha um mês, tinha que estar no silábico. Tinha teste toda semana. Testagem, testagem..., para ver em que nível que a criança estava. Eu acho que isso sobrecarrega, tanto que tinha 60 crianças que estavam no pré-silábico e aí começou aquele desespero que as crianças não estavam aprendendo e os professores acabam ficando nervosos, e aquela pressão. Para eles a criança não está avançando. [...] Tudo era número, não é? Quando diminuiu o número de pré-silábicos acalmou mais na primeira série. Na 2ª. também, mas menos. A gente sentava pouco, não tinha essas trocas. Com relação ao ensino de Ciências, História e Geografia, a professora constatou que não há cobrança muito específica. Segundo ela, Não teve uma orientação assim: vamos trabalhar esse conteúdo vamos fechar nisso aqui: você tem que trabalhar e avaliar. Mas é como eu falei, não existia aquela coisa de sentar e conversar como foi feito, como foi... Cada um fazia do seu jeito. Ela (a orientadora) falava: você está avaliando? Quando está perto de fechar as notas ela fala: fechou a nota? Não tinha aquele acompanhamento como na pré-escola. Tinha um planejamento para seguir e era acompanhado, o que para mim era importante

186 porque eu estava começando. Ela me orientava, avaliava, dava sugestões, e assim vai-se aprendendo. Quando você trabalha assim é muito mais rico do que quando se trabalha sozinha. Ficava mais restrito. É por isso que eu buscava participar de encontros com outras professoras de sala de aula para estar trocando. Quando eu ia para cursos. Quanto ao ensino de Ciências, a professora contou que está trabalhando o tema da água, que foi o do projeto realizado no ano passado e que é parte do planejamento anual de trabalho. Lembra que no do ano passado ela chegou a fazer uma pesquisa com os pais das crianças da sua turma para saber como eles sentiram a participação dos seus filhos no projeto: Considerações Finais Os pais me contaram que de manhã eles (os filhos) observavam suas plantas que tinham levado para suas casas para cuidar delas e cada dia, três alunos traziam as suas para ver e mostrar como estavam e fotografaram. E os pais me descreveram esse cuidado que eles tinham com a planta. Percebi que eles começaram a explorar o espaço que tinham em casa e outras plantas que lá se encontravam. Assim envolveu os pais, o fazer na escola e em continuidade em casa. Eu percebi que, depois disso, eles ficaram muito melhores. Particularmente em Ciências, estimula-se muito eles estabelecerem relações, você sintetizar assuntos, sistematizar para poder escrever. Eles melhoraram muito a escrita, a leitura, o interesse. Os relatos de formação e atuação profissional têm apontado para um sinuoso percurso que envolve, no plano específico, condições concretas de possibilidade. Aqui, no caso da referida professora não foi diferente. Tais condições de possibilidade são circunscritas por diversos fatores historicamente multideterminados. Seu desejo de tornar-se professora não estava dado nos anos iniciais da escolaridade fundamental. Essa indicação foi trazida por um outro de suas relações familiares e a possibilidade de tornar-se professora foi sendo elaborada e construída no percurso da formação escolar do curso Normal de nível médio, e depois com o início de sua atividade profissional como professora, inicialmente na Educação Infantil, depois, na continuidade de sua formação, com o ingresso no curso de Pedagogia e, posteriormente, com a regência numa 2ª série do ensino fundamental. As experiências profissionais que foi tendo no campo da educação escolar ao longo de seu percurso formativo, de certo modo, mediavam a percepção em relação ao curso acima referido, permitindo que ela elaborasse, a partir do lugar de professora, uma consideração crítica e, num certo sentido, um desapontamento tanto no que se refere ao proposto no interior das disciplinas, como também em relação às diferentes expectativas de suas colegas de sala de

187 aula, que, com percursos outros, orientavam-se por outras referências, e falavam do lugar social de alunas. Nesse sentido, essa condição particular de aluna e professora acabava por criar um excedente de visão (BAKHTIN, 2000), relativo ao referido curso, uma vez que do lugar de professora, tinha a expectativa de encontrar interlocutores que contribuíssem com subsídios para a sua atuação em sala de aula, nem sempre correspondida. E, de forma concomitante, vivia, por essa mesma condição, as tensões geradas pelas diferentes expectativas e, portanto, formas diferenciadas de inserção no curso, no dia a dia com suas colegas de classe. No cotidiano escolar na qual exercia a regência da 2ª série teve de se deparar com as exigências requeridas de uma profissional, já habilitada para tal, mas ainda em fase de formação, agora em nível superior, o que lhe gerava um conjunto de desafios, próprios da iniciação profissional, como lidar de forma satisfatória com o ensino das diferentes áreas de conhecimento, a busca por orientações e parcerias para realização do trabalho, conforme por ela relatado, e também com um conjunto de questões específicas do contexto escolar da qual começava a fazer parte: as exigências da secretaria da Educação e que chegavam a ela pelos seus superiores hierárquicos na instituição escolar, aprender a construir uma boa relação com os pais, com as colegas professoras e demais auxiliares. A concomitância dos dois lugares sociais por ela ocupados, o de aluna do curso de Pedagogia e o de professora potencializou e fez emergir questões que acabam por tencionar as relações próprias no interior dos referidos espaços, produzindo conseqüências tanto no exercício da profissão como no desempenho do ofício de aluna, e também conseqüências no transito de um espaço a outro. As questões e desafios que a ela se apresentavam no exercício da profissão docente acabaram colocando, em parte, suas propostas em cheque, uma vez que não via satisfeita sua necessidade de interlocução, tendo em vista um processo de construção coletivo de trabalho, o que inviabilizava a implementação desse aspecto enfatizado ao longo de seu percurso de formação. De forma articulada a esse processo, as tensões originadas nesse novo lugar social ocupado por ela na escola, alcançaram e ressignificaram as indicações, orientações e prescrições veiculadas no curso de Pedagogia, uma vez que sua apropriação era mediada pelas questões trazidas pela/na atuação profissional.

188 As indagações que vai enunciando ao longo de seu relato colocam em evidência a presença e uma tentativa de articulação entre as vozes que circulavam no espaço da universidade e, portanto no interior do referido curso, com as vozes que constituíam o espaço escolar. Tentativa essa que acaba adquirindo delineamentos dialógicos (Bakhtin, 2002) variados entre essas vozes: incorporação (total ou parcial), rejeição (total ou parcial), tentativas de aproximação, etc. Nos seus enunciados apresentaram-se e problematizaram-se aspectos das condições imediatas com que ela se deparou no exercício da profissão docente, configurando um certo contexto específico, na qual se incluiu o pedagógico, mas que não se restringiu a ele. São também consideradas questões relacionadas às condições mais amplas que nesse imediato se apresentaram e, portanto, acabaram interferindo no seu cotidiano profissional, ainda que de forma fragmentária e/ou como vestígios, nas quais se entrecruzaram diferentes tempos históricos e marcas de espaços sociais diversos que se influenciaram mutuamente. Nesse contexto podemos identificar: as ênfases da atual política educacional do município, que por sua vez resulta de um modo de apreensão e implementação da política nacional para a educação escolar, em geral, e para os anos iniciais do ensino fundamental em particular; o uso político, pelos agentes locais, das ações desenvolvidas pelos docentes envolvendo as crianças e a presença de práticas educativas que são marcas localizadas em diferentes espaços e tempos históricos, que, por assim dizer, convivem nas ações docentes enunciadas pela professora. Por essa perspectiva, encontramos a constituição de um sujeito, neste caso uma professora, que se elaborou e está sendo elaborada na concretude das condições sociais e culturais que se apresentaram em contextos específicos. Sua atuação profissional, documentada a partir do seu dizer, trouxe a possibilidade de por no visível aspectos do quê e do como se viveu um certo espaço-tempo, localizado no interior de uma instituição escolar e que, numa relação social especifica que é também de trabalho, envolveu dispositivos que modularam as situações de ensino e as ações possíveis com sujeitos reais. Em conseqüência, acabamos por evidenciar, buscando esmiuçar a complexidade envolvida no exercício da atuação docente, uma profissional que está sendo, historicamente. REFERÊNCIAS

189 BAKHTIN, M. (2002) Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Bernardini, A. F.; Pereira Jr, J. P.; Góes Jr, A.; Nasário, H. S.; Andrade, H. F. 5ª Edição. São Paulo: Annablume (2000) Estética da Criação Verbal. Trad. Pereira, M.E.G. 3ª Edição. São Paulo: Martins Fontes. BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud; Yara Frateschi Vieira. 10 a. Edição. São Paulo: Annablume, 2002. CHARLOT, B. Da relação com o saber: Elementos para uma teoria. Trad. Bruno Magne. Porto Alegre, Artes Médicas Sul, 2000. FONTANA, R. A. C. Memórias de Iniciação: um estudo das narrativas de jovens professoras acerca de sua integração à docência. In: Anais do IVX ENDIPE: Trajetórias e Processos de Ensinar e Aprender: lugares, memórias e culturas. PUCRS: p. 595-615, 2008. GUEDES-PINTO, A. L. FONTANA, R. A. C. Apontamentos teóricos-metodológicos sobre a prática de ensino na formação inicial. In: Educação em Revista, Belo Horizonte: v.44, p. 69-87. Dez. 2006. LAHIRE, B. Sucesso Escolar nos Meios Populares: as razões do improvável. Trad. Ramon A. Vasques e Sonia Golfeder. São Paulo: Ed. Ática, 1997.