Variações sobre um mesmo tema Laura Barile v_05, modificada em 08/02/2011 laurabarile@gmail.com
CENA 1 - INT. SALA - DIA Tela black. "Essa é a história dele". Uma tela imensa, presa na parede, com a pintura de uma mulher. É atraente, de cabelos escuros cheios - numa pose sedutora e provocativa. A sala é enorme e tem poucos e espalhados elementos. O ambiente é escuro e o papel de parede de um azul demodê. Renato, 23 anos, cabelos castanhos desalinhados, tira com uma espátula as camadas da pintura. Começa pelos cabelos, depois desce delicadamente para o rosto. Renato, o chá... Renato suspende por um breve instante seu movimento, sério, sem tirar os olhos do quadro. Aguça a audição. Som de chaleira apitando. CENA 2 - INT. COZINHA - DIA Renato entra na cozinha pela porta 3 (a 4 está fechada). Há um fogão, algumas caixas de madeira que servem de armário e uma mesa. A pia pinga. Sobre o fogão, uma chaleira apita. Renato tenta fechar a pia inutilmente, num movimento quase automático, depois desliga o fogo. Morde levemente o lábio, como se se lembrasse de algo. Som de porta batendo. Renato sai pela porta 4. CENA 3 - INT. SALA - DIA Renato vai até a pintura com passadas impacientes e rápidas. Desbasta o quadro. Som seco de madeira batendo em uma mesa. Renato fecha os olhos, como se sentisse em si o som batendo. Abre os olhos novamente, encarando a tela. Desbasta mais uma parte do quadro, as grossas camadas de tinta indo ao chão. Som suave de tilintar de vidro. (doce) Deixa que eu limpo... Renato sorri. Fica sério novamente ao som de molho de chaves, e de alguns passos, sempre olhando para o quadro. Morde o lábio, entortando a boca. Olha para o quadro, a cabeça pensa para um lado, inseguro do próximo passo sobre a tela. Na cozinha (off) uma chaleira apita. Renato sai pela porta 1.
2. CENA 4 - INT. COZINHA - DIA Renato entra pela porta 3, olha ao redor, como se procurasse algo. Pega uma caneca escura no armário suspenso. Desliga o fogo. Movimentos mecânicos: saquinho de chá de camomila, água fervendo, sachê de chá na água fervendo. Renato sai, a caneca em mãos, pela porta 4. CENA 5 - INT. SALA - DIA Renato vai até a pintura, com passos instáveis e ansiosos, pega a espátula. Descasca o quadro com mais afinco e agressividade que das outras vezes. Eu prefiro erva-cidreira. Renato para um instante. Olha o quadro, como se o analisasse. Continua a tirar camadas da tinta, com a espátula. Som seco de madeira batendo. Renato fecha os olhos ao som, mas os abre muito rapidamente e continua com ímpeto o trabalho no quadro. Sou eu no quadro... Mira o meio do rosto na pintura, descobre camadas. Som de vidro quebrando. Renato para.... O chá. Som de chaleira apitando. Renato caminha com surpreendente instabilidade até a porta 2 e sai. CENA 6 - INT. COZINHA - DIA Renato entra na cozinha pela porta 3. A pia pinga. Ele desliga o fogão, se vira para pegar a caixa de chá sobre a mesa e chuta sem perceber um pequeno pedaço de vidro. Se agacha para ver o que é. Ao lado do vidro quebrado, uma sobra esparsa de açúcar derramado. Renato encosta o dedo com lentidão no açúcar derramado sobre o chão da cozinha. Se ergue, em um suspiro. Renato aperta impaciente a torneira da pia, que mesmo assim não para de pingar. Olha inquieto para as duas portas da cozinha. Sai pela porta 4.
3. CENA 7 - INT. SALA - FIM DE TARDE Renato volta para o meio da sala, com passos inseguros e mais lentos que das outras vezes. Usa a espátula com inesperada delicadeza, desgastando a parte superior da tela, tirando pouca tinta. Renato... Som de tilintar suave de vidros que aos poucos se confunde e se transforma em um som de molho de chaves. Você precisa terminar... Renato solta a espátula, em um suspiro desesperado. Renato ergue as mãos até a cabeça. Chaleira apita (off), som agudo e insuportável. CENA 8 - INT. COZINHA - NOITE A pia pinga constantemente. Renato entra na cozinha pela porta 3, parece irritado. Desliga o fogo. Abre o armário, pega uma caneca escura, pega uma caixa de chá, escolhe o chá de camomila. Abre o sachê, coloca água na caneca, mergulha o sachê. Olha para a pia pingando. Sai pela porta 4, sem tentar consertá-la, a caneca na mão. CENA 9 - INT. SALA - NOITE Renato volta novamente até o centro da grande sala. Som de vidro quebrando fragmentado ao longo da cena. Renato olha para a tela. Larga a caneca, pega a espátula. Raspa grossas camadas, sem muita delicadeza ou cuidado. A própria tela (suporte físico) começa a ser danificada por seus movimentos. Som de molho de chaves e madeira seca, batendo. Renato raspa camadas de tinta da tela, que caem no chão com ruído. Renato! - REPETIDAS VEZES Som de passos atravessando a sala. Renato não se vira, continua desgastando a pintura do quadro. Som de molho de chaves, som de porta batendo. Som constante de pia pingando. Som de vidro quebrando, som de passos - tudo começa a se unir numa massa indistinta de som, enquanto Renato raspa a tela com mais e mais agressividade.
4. Sou eu no quadro. É diferente. Silêncio - Renato para. Dá dois passos para trás, cambaleante. Contempla a pintura - a tela parcialmente destruída, mas com resquícios claros da imagem da mulher, cada pedaço com diferentes camadas de tinta. Som de chaleira apitando. Renato se volta para o som, como se despertasse. Pega a caneca escura, a seu lado, e parte em direção à cozinha, pela porta 4. CENA 10 - INT. COZINHA - NOITE A chaleira apita continuamente, som cada vez mais agudo e mais alto. Renato entra na cozinha, a caneca escura na mão. Entra e se detém perto da porta. Lina está na cozinha, agindo com extrema naturalidade. Ela olha para ele, ali parado. Renato, o chá... Renato sai de seu estado inerte. Coloca a caneca escura sobre a pia. Desliga o fogo. Sobre si, um armário suspenso. Tira dele duas canecas roxas com bolinhas, bem femininas. Ao se chocarem, levemente, as canecas produzem um som de tilintar. Renato faz tudo com contida lentidão. Você precisa terminar o seu quadro. É seu, o quadro. Você sabe disso. Sou eu no quadro. É diferente. Estão de costas um para o outro, ela de frente para a mesa, ele de frente para a pia. Renato se vira, estica o braço até os cabelos cheios de Lina, fazendo um carinho. Lina coloca com ruído uma caixa de sachês de chá sobre a mesa. Som seco da madeira sobre a mesa. Renato tira imediatamente a mão de seus cabelos. Pega de camomila. Eu prefiro erva-cidreira. Antes que Renato possa responder, Lina já se antecipa e pega os saquinhos de erva-cidreira.
5. Tá, pode ser, erva cidreira... Lina se vira para entregar os saquinhos. Renato pega os sachês de chá das mãos dela, buscando contato com seus dedos, que ela logo retrai e se vira de volta, fechando a caixa. Som seco de caixa de madeira fechando. Renato entorna água na caneca - som de água escorrendo. Lina vai pegar o pote de açúcar sobre a mesa, ele escorrega de suas mãos. Som de vidro quebrando. E (uníssono) Deixa que eu limpo... Se olham e sorriem um para o outro. No chão, o pote quebrado e um montinho de açúcar. Lina se antecipa com naturalidade para pegar a vassoura e a pazinha atrás da porta. (tenso) Pega a vassoura. Eu prefiro a pazinha... Renato se agacha com a vassoura, Lina fica de pé, apenas curvada, segurando a pá. Ele tenta desengonçadamente acertar com os cacos de vidro e o açúcar a pá que Lina segura, derrubando açúcar para os lados. Lina não se contém e ri. Renato ri de volta, ri de si mesmo. Ela agacha também. Renato pega o braço de Lina, desce deslizando a mão por ele, até encontrar a mão dela, que aperta forte por um instante. (perdendo o sorriso) Desculpa. Lina permite esse rápido toque, mas aproveita a situação para soltar rápido seus dedos de entre os dedos de Renato, segurando firme na alça da pazinha e apontando-a com um movimento de cabeça. Som de tilintar dos vidros juntados sobre a pazinha. Renato a olha fixo, ela desvia o olhar para a pia, ou a mesa (qualquer canto). Pia pingando. Se erguem ao mesmo tempo. Renato aproveita o movimento para encostá-la no balcão, cercando-a em um abraço. Lina fica séria abruptamente, se esquiva e sai na direção da mesa. Renato aperta a torneira, que por um instante para de pingar. Lina vai até a mesa, onde está uma bolsa de pano enorme e muito cheia, tira da bolsa um molho de chaves. Pia volta a pingar. Ele, muito sério, pega a caneca escura que havia deixado sobre a pia. Ela vai até Renato. Dá um beijo seco na sua bochecha.
6. Se cuida. Renato imóvel, a caneca escura na mão, a respiração rápida e limitada. Lina tira uma das chaves do molho e a coloca sobre a mesa. Renato a observa enquanto ela se afasta. Som de passos, som de porta batendo. Renato contrai os ombros ao som da porta. Fica mais alguns segundos imóvel, olhando na direção da porta, até todos os sons se desfazerem em silêncio. Som da cidade ao longe, começa a aumentar suavemente. Ele se move lentamente na direção da mesa. Sobre ela, há um pote metálico improvisado com açúcar e uma colherinha de plástico. Ele coloca açúcar em sua caneca escura, que está com chá, mexe e lambe a colher. O chão está limpo. Sai pela porta 3. CENA 11 - INT. SALA - FIM DE NOITE/ COMEÇO DE DIA Renato volta pela porta 2 para perto do quadro, desprende a tela da parede lentamente e a enrola. Coloca a tela em um canto, onde há alguns cavaletes encostados e telas enroladas. Renato sai para o corredor, novamente pela porta 2, e caminha decidido. CENA 12 - EXT. VARANDA - AMANHECER Renato entra em um terraço aberto e iluminado. Sobe um lance pequeno de escadas, com passos firmes e relaxados. Amanhecer de dia. A cidade.