Anhanguera Educacional Centro Universitário Ibero-americano São Paulo - SP O controle pelo Medo Uma análise do poema O Medo, de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo 2013
Larissa Lima de Freitas O controle pelo Medo Uma análise do poema O Medo, de Carlos Drummond de Andrade. Trabalho realizado como requisito para obtenção de nota na cadeira Correntes Literárias, da professora Gisele Frighetto. A cadeira faz parte do curso Estudos Literários, da Universidade Anhanguera. São Paulo 2013
INTRODUÇÃO Em seu livro de poesias mais extenso A Rosa do Povo - escrito entre 1943 e 1945, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987; poeta, cronista e contista brasileiro) nos apresenta poemas cheios de metáforas que traduzem o período social e histórico daqueles anos. Em O Medo, sexto poema do livro, por meio da palavra que, entre outras coisas, representa o sentimento mais utilizado para causar rejeição ao sistema político do qual o autor acreditava, o comunismo, Drummond critica desde a base social e educacional até a condução política pela qual o Brasil tinha sido (e vinha sendo) levado. O Medo é um retrato, na visão do poeta, das causas e consequências da sociedade daqueles anos. Classe média e elite, as principais responsáveis pela ascensão da Ditadura do Estado Novo, no Brasil, e do fascismo na Europa, agora estavam vivenciando todos os aspectos do medo. Medo alimentado pela elite e perpetuado pela classe média.
O medo Neste poema de versos brancos 1, já no título com o artigo definido o, o autor especifica e determina de modo particular o substantivo medo. Não é um medo qualquer, um medo generalizado. É o medo. Mas, precisamente, qual medo? Em verdade temos medo. Nascemos escuro. As existências são poucas: Carteiro, ditador, soldado. Nosso destino, incompleto. No primeiro verso, Drummond afirma que temos medo com uma expressão que conota uma verdade fundamental em verdade, sem margem para dúvida, é uma conclusão: De fato temos medo. E segue de um ponto final, portanto ele não explica que medo é esse. Com esse ponto final, o verso seguinte não é uma continuação, é uma nova afirmação. Nascemos escuro nos faz referência ao ventre. A palavra escuro, no singular, discorda gramaticalmente de nascemos, que a antecede. Escuro pode omitir as preposições no ou do. Nascemos do escuro, ou no escuro, não somos ainda um ser social, nascemos sem nada saber, o que leva a crer que todas as futuras impressões que teremos do mundo, vieram de fora. E a angústia que o ser no mundo ocasiona: as existências são poucas. As opções são poucas, são fragmentadas, são incompletas. Ou você é um carteiro, profissão que ao mesmo tempo é comum, burocrática, profissão da classe média, mas representa também um andante, um mensageiro, que leva e diz algo (artista). Ou você pode ser um ditador posição superior, classe dominante, aquele que elimina o que lhe desagrada ou, ainda, pode ser um soldado obediente e servil. E fomos educados para o medo. Cheiramos flores de medo. Vestimos panos de medo. De medo, vermelhos rios Vadeamos. 1 Onde há uma métrica, mas não há rimas. A métrica deste poema não é totalmente regular, todo ele tem 13 estrofes - as duas primeiras estrofes com cinco versos cada, duas estrofes com oito versos, e todas as outras com quatro mas de forma geral segue um padrão.
Somos apenas uns homens E a natureza traiu-nos. Há as árvores, as fábricas, Doenças galopantes, fomes. Na segunda e terceira estrofes, Drummond elucida aspectos capitalistas como o consumo e a indústria - vestimos, fábricas - e suas consequências, juntamente com as guerras (mais especificamente a Segunda Grande Guerra, que ainda estava acontecendo) como doenças fomes. E fomes, no plural, onde podem ser englobadas as fomes de comida, de liberdade, de dignidade, por exemplo. Podemos entender que para ele, até então comunista, o medo é uma arma utilizada pelo sistema capitalista e pelos ditadores (estávamos em plena Ditadura do Estado Novo) para o controle social dependência para a resolução dos problemas causados por eles mesmos. Ainda sobre a ditadura: de medo, vermelhos rios vadeamos. Vermelhos rios dão a impressão de sangue, o sangue dos mortos pela ditadura, que vadeamos, ou seja, transpomos pela margem mais rasa - contornamos, passamos por cima desse sangue por medo. E, também, a cor vermelha é sempre uma imagem muito forte em um contexto político, por ser a cor que mais representa o Comunismo e a ideologia de esquerda. Refugiamo-nos no amor, Este célebre sentimento, E o amor faltou: chovia, ventava, fazia frio em São Paulo. Fazia frio em São Paulo... Nevava. O medo, com sua capa, nos dissimula e nos berça. Fiquei com medo de ti,
Meu companheiro moreno. De nós, de vós; e de tudo. Estou com medo da honra. Na quarta estrofe, Drummond fala do amor como fuga ao medo. Fuga representada pela cidade de São Paulo, onde chovia, ventava e fazia frio. Foi com a dissidência entre Minas Gerais e São Paulo, na chamada política do café com leite, que o Golpe do Estado Novo teve início em 1930. E apesar de A Rosa do Povo ter sido lançado em 1945, é possível concluir que O Medo foi escrito por volta de 1943, que é o ano de publicação de Plataforma de uma geração, de Antonio Candido. E neste momento as militâncias políticas só estavam começando a sair da clandestinidade (o medo, com sua capa, nos dissimula e nos berça). Escritores militantes passaram a publicar em jornais como O Estado de São Paulo 2, e foi lá que Candido publicou o texto que inicia este poema. Como resposta ao companheiro moreno, Drummond escreve O Medo, dizendo que também tinha medo - estou com medo da honra - Medo de honrar sua ideologia e correr, assim, risco de morte. Esta sexta estrofe é a única em que o autor utiliza a primeira pessoa do singular. Não é mais o coletivo falando, a sociedade. É ele, o seu medo particular. Assim nos criam burgueses. Nosso caminho: traçado. Por que morrer em conjunto? E se todos nós vivêssemos? Nesta sétima estrofe, o poeta reafirma o medo como uma questão do modo de vida vigente, burgueses criados e caminhos traçados. E continua justificando seu medo, o medo essencial, o medo da morte. Será que o mais importante era falar, combater, mesmo morrendo? Não seria mais importante se manter vivo? Depois de ter dito que o medo nos é imposto, a partir da oitava estrofe Drummond coloca a relação de toda uma sociedade com esse medo. Medo construído, solidificado como casas, caules e em efeito contínuo como repuxos só de medo. Mas um medo com calma, um medo silencioso, sutil, prudente e covarde. O medo é passado adiante, junto a toda forma de criação burguesa. Seja o medo da morte, o medo da desordem, ou até mesmo o medo do pecado visto que o poeta era agnóstico e já declarou 3 viver sem remorso por não poder provar nem a existência nem a inexistência de Deus. E o remorso é parte integrante do medo, também uma forma de controle. Destaco que a religião não entra claramente no texto, coloco 2 COSTA, Marina Camargo; COSTA, Iná Camargo. http://www.algumapoesia.com.br/drummond/drummond20.htm 3 O Estado de São Paulo, 19/10/1986
como uma forma de associação ao modo de vida burguesa essa, sim, citada pelo autor. A partir da estrofe 11, a esperança final que percorre a maioria 4 dos poemas do livro, finalmente aparece: O medo, com sua física, tanto produz: carcereiros, edifícios, escritores, este poema; outras vidas Que apesar de estar imerso nessa sociedade, é possível se libertar. Como um poema ou como outras formas de vida não descritas ou ainda não descobertas. Ou simplesmente como escritor, como ele próprio que, mesmo com medo, arranjou sua forma de liberdade, de coragem escrever. Tenhamos o maior pavor. Os mais velhos compreendem. O medo cristalizou-os. Estátuas sábias, adeus. Adeus: vamos para a frente, recuando de olhos acesos. Nossos filhos tão felizes... Fiéis herdeiros do medo, eles povoam a cidade. Depois da cidade, o mundo. Depois do mundo, as estrelas, dançando o baile do medo. 4 Para citar um exemplo, o poema O Elefante. É possível verificar neste poema, que é uma alegoria do fazer poético, que apesar do mundo parecer egoísta e não receptivo à arte, o poeta continua com esperança e no seu último verso garante: amanhã recomeço.
Por fim, as duas últimas estrofes do poema dão continuidade a este sentimento de esperança. Ao olhar para frente, Drummond diz que a solução não está no passado, nem nos mais velhos. A esses, já cristalizados de medo, um adeus. Seus herdeiros também já estão cristalizados, levantando seus muros de medo, até as estrelas. Mas ao terminar com o verbo no gerúndio dançando - impera uma continuidade, uma sucessão. Que não será essa a geração que viverá sem estar baseada no medo, mas ainda virão outras. As outras vidas, os outros poemas, que não mais dançarão o baile do medo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante todo o poema, tivemos contato com diferentes tipos de sentimento denominados de medo. Do medo das próprias ideologias ao medo da morte. Medos que dialogam com os principais aspectos que regem um ser humano e social medo existencial, medo político, medo da morte. Ao dedicar o poema ao sociólogo Antonio Candido, e citar uma passagem de Plataforma de uma geração, onde Candido critica diretamente Gilberto Freyre, que via na formação social do Brasil as relações muito mais harmônicas do que conflituosas, o que ele discordava, fica claro já neste momento a linha de pensamento de Drummond quanto a formação do Brasil. Para chegar a esse medo o qual o escritor fala, podemos vir mais para frente da História, e relembrar as eleições presidenciais de 2002. Em uma propaganda eleitoral conhecida e repercutida até hoje, a atriz Regina Duarte afirma ter medo de Lula (Luis Inácio da Silva), então candidato a presidência, e do que ele poderia fazer com as conquistas do Plano Real. Lula, do Partido dos Trabalhadores, era acusado de comunista e nazista, como tudo sendo parte de uma mesma coisa. O medo como sentimento ligado ao comunismo não era novidade, e já não era em 1945, ano de publicação de A Rosa do Povo. Drummond, até então comunista, nos leva a crer que fez referência a esse medo alimentado e perpetuado por uma classe que, na verdade, tinha medo de que fosse instalado um sistema político, na visão do escritor, mais justo. A manutenção da ordem é feita pela classe dominante, que tem medo da inversão dessa ordem, do que pode vir se os historicamente oprimidos reverterem o processo. O medo dos que se mantém oprimidos e não revertem esse processo, por acreditarem que é necessária a ordem dominante para sua existência. O medo dos que se rebelam, mas se mantém na clandestinidade, por medo de morrerem. Benjamin situava o capitalismo como uma religião não expiatória mas culpabilizante se, por exemplo, ela fornece mandamentos de preservação do vivo não fumarás, não beberás, etc. e gera dessa maneira uma espécie de hipocondria generalizada, por isso mesmo deixa o sujeito na
angústia, à falta de uma ética do desejo, enguiçado quanto a um sentido que sustente sua vida, em busca de um balizamento que regule o seu gozo. Como conduzir sua vida? Executar determinadas escolhas em função de quê? (VANIER, Alain. 2006) 5 Levando em consideração o cenário político, as convicções do autor e os elementos do texto, é possível concluir que Drummond nos fala do medo como a ferramenta utilizada para o controle social. Podemos encontrar em Hannah Arendt 6 (1958/1961-1983) a associação do medo com os sistemas totalitários e com o capitalismo. O consumo é a mola propulsora para a angústia, que mantém o medo da liberdade ao transformar o outro no seu objeto de preenchimento. Seja na moda, seja nas relações entre os seres. O capitalismo e suas extensões são o que alimentam O Medo de Drummond. 5 VANIER, Alain. 2006 http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s1516-14982006000200009&script=sci_arttext 6 ARENDT, H. (1951-1968/1972) Les origines du totalitarisme, 3 vol. Paris: Seuil.