A PROPÓSITO DA INTRODUÇÃO À CRÍTICA DA RAZÃO PURA DE IMMANUEL KANT



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Transcrição:

A PROPÓSITO DA INTRODUÇÃO À CRÍTICA DA RAZÃO PURA DE IMMANUEL KANT Acadêmico Neilson da Silva (PBIC-CNPq) Orientador: Prof. Adelmo José da Silva (FUNREI-DFIME) Resumo: O objetivo desse trabalho é fazer um comentário acerca da introdução à Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant. A introdução e também os prefácios da primeira e da segunda edição da Crítica da Razão Pura constituem a propedêutica para uma melhor compreensão do criticismo kantiano. Immanuel Kant assegura que a primeira fase da sua filosofia segue o exemplo das transformações ocorridas na ciência do seu tempo. Parodiando o método dos consagrados físicos modernos, Kant limita todo o nosso conhecimento à experiência sensível. Depois, seguindo o exemplo da química no que diz respeito aos processos de separação das substâncias, Kant divide o mundo filosófico em fenômeno e nôumeno. Por conseguinte, Ao descobrir que a Terra não era o centro do universo, descobriu-se, também, o verdadeiro lugar do homem no mundo do conhecimento; todavia é influenciado pela mudança de paradigma ocorrida na astronomia que Kant realiza a chamada revolução copernicana na filosofia. Kant fez com que o conceito de razão passasse por diversas modificações. O incondicionado conduz a razão à pretensão orgulhosa de obter uma unidade absoluta dos fenômenos, o que segundo Kant é impossível. A metafísica tradicional, que partia do pressuposto de poder conhecer os seus enunciados transcendentes, encontra, em Kant, a impossibilidade de demonstrar, através da razão, os seus pressupostos de natureza puramente intelectual. Palavras-chave: Razão. Paralogismo. Antinomia. 1. Introdução A metafísica, que no passado fora considerada a rainha de todas as ciências, no mundo moderno precisou de um novo conceito para se sustentar. Daí resulta a importância de Kant, pois foi ele quem dividiu o mundo filosófico em fenômeno e nôumeno. Na visão kantiana, o fenômeno é possível de ser conhecido, quando se encontra sujeito às formas a priori da sensibilidade, do entendimento e da razão; o nôumeno, Kant denomina coisa em si, não podendo, em hipótese alguma, ser conhecido, mas somente pensado. Não é dada, ao homem, a capacidade de conhecer o nôumeno, portanto, fica impossibilitado o conhecimento acerca dos diversos enunciados metafísicos: a permanência da alma, o mundo como totalidade e a existência de um ser originário. Kant não tem como finalidade negar a metafísica mas, sim, discutir a sua impossibilidade como ciência puramente teórica que visa a alcançar o incondicionado. Além disso, Kant tem o mérito de ter realizado uma síntese entre o racionalismo dogmático e o empirismo céptico, demonstrando que tanto a razão como a experiência possuem limites. De acordo com a sua filosofia crítica, aquilo que se encontra para além do mundo dos fenômenos, do universo da experiência possível, não pode, de modo algum, ser conhecido por meio das faculdades cognitivas do homem. 2. A Descoberta de Kant No tempo de Kant, o mundo do conhecimento encontrava-se diante de duas correntes de considerável destaque: o racionalismo dogmático e o empirismo céptico. Essas correntes discutiam a origem do conhecimento, porém o rigor era igualmente válido em ambas as argumentações. O racionalismo dogmático visava a conhecer seus objetos absolutamente a priori, defendia com rigor a origem do conhecimento pela razão, fundamentado no princípio das idéias inatas e no método dedutivo-matemático. Os dogmáticos acreditavam no poder exclusivo da razão e apoiavam-se nos domínios dos juízos analíticos de explicação. Assim, através do princípio de identidade, que apresenta universalidade e necessidade rigorosas, pretendiam os racionalistas demonstrar a validade e a verdade acerca dos seus pressupostos científicos. Nos juízos analíticos, pela simples análise do conceito, podemos determinar, anteriormente a qualquer experiência, o valor de verdade de uma proposição. Com isso, ao dizer que o predicado B pertence ao sujeito A como algo que está implicitamente contido nesse conceito A [KANT, 1994, p. 42], formulamos um juízo de explicação que possui uma verdade objetiva. Entretanto, os juízos de explicação dizem apenas o óbvio e nada acrescentam ao nosso conhecimento. Na proposição a bola é redonda, poder-seá considerar que o predicado redonda está contido no conceito do sujeito bola. Portanto, tal proposição é um juízo analítico, pois podemos saber a priori a verdade desse juízo sem recorrer à experiência. Todo o problema, segundo Kant, reside no fato dos juízos de explicação serem estéreis, isto é nada acrescentam ao nosso conhecimento, por afirmarem algo que já é essencial ao sujeito, provo- Metavnoia. São João del-rei, n. 1, p 84-91, 1998/1999

86 SILVA, Neilson José da. A Propósito da Introdução à Crítica da Razão Pura... cando assim um certo imobilismo no universo das relações de conhecimento, ou uma identidade do tipo a=a. Ao contrário do racionalismo dogmático, o empirismo céptico fazia severas críticas à concepção de idéias inatas e buscava compreender a ciência sempre por meio dos juízos sintéticos, a posteriori, juízos de experiência. Tais juízos são capazes de acrescentar algo ao sujeito, porque são progressivos e fornecedores de conteúdo empírico. Kant chama a esses juízos sintéticos devido ao fato de possuírem o conteúdo retirado da experiência sensível. Assim, os empiristas cépticos defendiam o conhecimento pela experiência e emitiam juízos de extensão, os quais possuem um predicado B totalmente fora do conceito A, embora em ligação com ele [KANT, 1994, p. 42]. Porém, nos juízos sintéticos, essa ligação não é pensada por identidade do tipo a=a, mas do tipo a=b. Além disso, os juízos de extensão fornecem matéria, conteúdo indispensável para toda a relação de conhecimento sintético. A questão a ser colocada é que os juízos de extensão não são universais nem necessários, uma vez que somente posso pensá-lo por indução. Quando digo que a água entra em estado de ebulição a 100º C, por mais que eu analise esse juízo não consigo, por identidade a=a, pensar o predicado contido na essência do sujeito. Tenho, necessariamente, que verificar vários casos particulares para somente a posteriori emitir tal juízo. Apesar de as duas posições conterem o argumento de maneira rigorosa, Kant encontra determinados juízos que são formados tanto pelo elemento sintético como pelo componente a priori. Nas palavras de Kant, a proposição toda mudança tem que ter necessariamente uma causa nos conduz pensá-la de modo analítico, devido ao fato de ser rigorosamente universal e necessária; porém, essa proposição é sintética a priori, porque, apesar de ser universal e necessária, o conceito de mudança somente pode ser obtido através da experiência 1. Como pudemos observar, temos de um lado o juízo analítico, que possui universalidade e necessidade, mas que é incapaz de nos acrescentar qualquer conhecimento; de outro lado temos o juízo sintético, tirado da experiência, que possui a capacidade de acrescentar conhecimentos devido ao fato de possuir um conteúdo de experiência, mas que não posso, de modo algum, pensá-lo de maneira universal e a necessária. 1 KANT, Introdução à C. R. Pura, 1994, p. 37. Kant pretende superar essa dicotomia, pois tanto uma posição como outra acabaram por deixar um abismo que divide as relações de conhecimento. As duas posições, o racionalismo dogmático e o empirismo céptico, separaram a razão da matéria, os conceitos do conteúdo. É o próprio Kant quem reconhece que sem a sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento, nenhum seria pensado. Os pensamentos sem conteúdos são vazios; intuições sem conceitos são cegas [KANT, 1994, p. 89]. O conhecimento é, para Kant, síntese a priori. Somente a síntese a priori pode reunir o fenômeno, que é intuído na sensibilidade e o conceito, que é efetivado no entendimento. O fenômeno fornece uma multiplicidade nas formas da sensibilidade e as formas do entendimento faz a síntese de maneira a fornecer a unidade. Logo, para que haja conhecimento, precisamos tanto da experiência, fornecida pela nossa faculdade de sensibilidade, como também do conceito, fornecido pela nossa faculdade de entendimento. O conhecimento como síntese a priori é possível, uma vez que ele pode dar tanto a universalidade e a necessidade rigorosa como a matéria ou conteúdo proveniente do mundo exterior. Esta é a descoberta genial de Kant: o juízo sintético a priori, que reúne o conteúdo e a forma. A síntese concretizada por Kant supera, no entanto, através dos juízos sintéticos a priori, a concepção racionalista dogmática pautada em juízos de explicação e a concepção empirista céptica fundamentada nos juízos de extensão. Porém, a filosofia kantiana tem ainda o objetivo de verificar a possibilidade de aplicação de tais juízos, ao mundo do conhecimento. Somente assim, o filósofo poderia avaliar a validade de sua descoberta e formar as bases para todo os seus pressupostos gnosiológicos. 2. 1. Os Problemas do Conhecimento: A questão aqui colocada é, no entanto, a possibilidade ou não da validade e da aplicabilidade dos juízos sintéticos a priori, no mundo do conhecimento. Segundo Kant, todo o nosso conhecimento começa pelos sentidos, daí passa ao entendimento e termina na razão, acima da qual nada se encontra em nós mais elevado que elabore a matéria da intuição e a traga a mais alta unidade de pensamento [KANT, 1994, p. 298]. São as formas a priori existentes no homem que permitem o conhecimento. Em outras palavras, a estrutura humana é constituída de tal modo que as faculdades de conhecimento possibilitam a explicação do condicionado que é fornecido pelo mundo fenomênico. É influenciado pela revolução copernica-

87 SILVA, Neilson José da. A Propósito da Introdução à Crítica da Razão Pura... na que Kant entende o sujeito como elemento unificador de todo o conteúdo fornecido pelos sentidos. Ao invés de fazer o espírito gravitar em torno das coisas, Kant mostrou que as coisas giram em torno do espírito. A natureza é, em parte, obra do homem, de sua sensibilidade e do seu pensamento 2. É fundamentado nesse princípio que Kant faz uso do termo transcendental e não do transcendente. O transcendental são as condições do sujeito e as suas faculdades a priori que possibilitam toda a relação de conhecimento. O elemento transcendente, por sua vez, é incondicionado, não pode ser objeto de conhecimento, pois ele transcende, de maneira a ultrapassar, as faculdades de conhecimento do homem. A consciência do homem permite a ele próprio estabelecer a unidade na multiplicidade fornecida pelo mundo sensível. Kant pergunta se os juízos sintéticos a priori são possíveis na matemática e na física. No primeiro caso, temos a estética transcendental que verifica se podemos aplicar os mesmos juízos à Matemática pelas formas da sensibilidade. No segundo momento, na analítica transcendental, Kant investiga se é possível aplicar os juízos sintéticos a priori à física, por meio das formas do entendimento. Na estética transcendental, Kant trata da sensibilidade enquanto faculdade que possibilita as intuições dos objetos. As formas a priori da sensibilidade são o espaço e o tempo existentes no sujeito. O espaço existe objetivamente para ordenar as coisas existentes fora do sujeito. O espaço não existe nas coisas e sim no homem. O tempo, da mesma maneira, existe no sujeito e tem como função ordenar internamente as intuições. O mundo exterior é caótico e as formas a priori da sensibilidade, o espaço e o tempo são, portanto, a condição para a realização de qualquer experiência. Assim, as sensações podem ser intuídas uma ao lado de outra (espaço) ou uma colocada antes ou depois de uma outra (tempo). Fora destas duas formas a priori universais e necessárias da sensibilidade não é possível conceber nenhuma experiência 3. Portanto, para Kant, a intuição empírica é a apreensão imediata das sensações ordenadas nas formas a priori do espaço e do tempo. Na intuição do espaço podemos desenhar as figuras da geometria, como na intuição do tempo podemos construir os números com a adição de sucessivas unidades 4. O que é importante notar é o fato de que a intuição não conceitua o 2 CHALLAYE, 1966, p. 196. 3 SCIACCA, 1968, p.189-90. 4 Idem. objeto; ela é, unicamente, uma primeira fase do processo cognitivo. É da noção de espaço e de tempo que verificamos a possibilidade de se aplicarem os juízos sintéticos a priori à matemática. Quando pensamos a proposição 7+5=12, à primeira vista iludidos pela garantia da sua universalidade e necessidade poderíamos pensar que ela é analítica a priori. Porém, por mais que analisemos o conceito da soma desses fatores, jamais encontraremos o seu produto. Portanto, temos que superar estes conceitos, procurando a ajuda da intuição correspondente a um deles, por exemplo os cinco dedos da mão [KANT, 1994, p. 47]. Poder-se-á considerar que o espaço e o tempo que permitem a matemática são a priori, mas os mesmos sem as coisas não fazem sentido. O espaço sem os objetos é vazio de conteúdo, o tempo sem a seqüência sucessiva dos dados não é capaz de fazer nenhuma síntese. Segundo Kant, as intuições puras da sensibilidade, o espaço e o tempo, possuem uma realidade empírica quando se referem aos fenômenos e uma idealidade transcendental por existirem no homem como formas da sua sensibilidade independentemente das coisas exteriores. Com isso, podemos concluir que é possível a Matemática como ciência, pois ela admite que lhe sejam aplicados, com rigorosa validade, os juízos sintéticos a priori através das intuições puras da sensibilidade, o espaço e o tempo. Na analítica transcendental, Kant trata do entendimento enquanto faculdade que possibilita a formação dos conceitos. O entendimento representa uma segunda fase na marcha do conhecimento. Existe a sensibilidade que pode intuir mas que não é capaz de conceituar. Há o entendimento que é capaz de conceituar mas que não é capaz de intuir. No entanto, para que haja conhecimento, conceitos e intuições não podem separar-se de modo algum. O Mito da Caverna de Platão propõe a existência de dois mundos, o sensível e o inteligível, entretanto, na concepção de Georges Pascal, em Kant, não existe outro mundo que não seja o sensível; e é isto, precisamente, o que toda a análise do entendimento irá demonstrar 5. Através do entendimento, Kant deseja explicar como seriam possíveis os juízos sintéticos a priori na Física, ou seja, como é possível a Física como ciência, como síntese a priori. Ao estabelecer as relações acerca das doze categorias, (totalidade, pluralidade, unidade, afirmação, negação, limitação, substancialidade, causalidade, ação recíproca, realida- 5 PASCAL, 1996, p. 61.

88 SILVA, Neilson José da. A Propósito da Introdução à Crítica da Razão Pura... de, necessidade e possibilidade), Kant procura demonstrar que a Física é a aplicação dos conceitos do entendimento aos objetos fornecidos pela intuição. O primeiro passo do conhecimento, as formas a priori de primeiro grau, denomina-se intuição e a segunda fase do processo, ou seja, as formas a priori de segundo grau, chama-se categorias do entendimento. O que garante à Física, universalidade e necessidade rigorosas são, no entanto, as próprias categorias. Para Kant, o mundo exterior é desordenado e é, portanto, o homem o detentor das faculdades que possibilitam, de certo modo, a organização dessa realidade. No tempo de Kant, os progressos das ciências experimentais eram visíveis e concretos. Com isso, o filósofo demonstrava um certo otimismo, tendo em conta as revoluções científicas. Tal conclusão pode ser compreendida como uma tentativa de superação do ceticismo empirista e do dogmatismo racionalista. Kant ao demonstrar a possibilidade de uma ciência dos fenômenos, fundamentada nas formas da sensibilidade e do entendimento, verifica a possibilidade do conhecimento dos vários objetos limitados pela experiência sensível. Assim, a filosofia kantiana termina por resolver, segundo o seu sistema, a problemática essencial do conhecimento, ou seja, a validade e a aplicabilidade dos juízos sintéticos a priori na matemática e nas ciências naturais. Ainda que Kant tenha operado uma verdadeira revolução na gnosiologia, o seu objetivo principal não consiste em fundar uma teoria do conhecimento, mas completar seu sistema filosófico investigando a natureza dos enunciados da metafísica. Portando, fica ainda uma indagação: é possível aplicar juízos sintéticos a priori à metafísica? Em outras palavras é possível uma metafísica como ciência? Kant agora pretende saber quais são os limites da razão humana. 2.2. Os Problemas da Metafísica: Kant expõe, na Crítica da Razão Pura, a dialética transcendental, que trata da impossibilidade da metafísica como conhecimento do nôumeno. Na ordem das condições, a tentativa arrogante de completar de modo absoluto a unidade dos fenômenos leva a razão a buscar o incondicionado e ultrapassar os seus limites, chegando assim, a uma ilusão natural, conhecimento aparente e inevitável. Poder-se-á até mesmo considerar que as idéias de alma, tratadas na psicologia racional, as idéias de mundo, discutidas na cosmologia racional, e as idéias de Deus, demonstradas pela teologia racional, não podem de modo algum ser explicadas pela racionalidade. Para se entender, com precisão, o problema geral da metafísica, precisamos compreender a diferença existente entre fenômeno e nôumeno. O primeiro é, para Kant, a coisa tal como ela nos aparece, o indeterminado, que constitui os vários elementos do mundo sensível ou fenomênico, é aquilo que as faculdades cognitivas do homem podem perceber e trazer à unidade dando origem ao conhecimento. Ao segundo, Kant denomina coisa em si, coisa incognoscível ou ser de pensamento, que não pode, em hipótese alguma, ser conhecido. Para que haja conhecimento, o objeto não pode ser desprovido de conteúdo; o nôumeno é uma idéia da razão que não se sujeita às formas inseparáveis da sensibilidade e do entendimento humano. Ora, se o nôumeno não é objeto de conhecimento, também não podemos aplicar a ele os juízos sintéticos a priori. A crítica de Kant estabeleceu que tais juízos somente podem ser aplicados ao mundo sensível; são válidos unicamente para objetos de conteúdo concreto. Os limites do conhecimento são, portanto, a experiência sensível. A metafísica como ciência é impossível; diz Kant: o fato da metafísica até hoje se ter mantido em estado tão vacilante entre incertezas e contradições é simplesmente devido a não se ter pensado mais cedo neste problema, nem talvez mesmo na distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos. A salvação ou ruína da metafísica assenta na solução deste problema ou numa demonstração satisfatória de que não há realmente possibilidade de resolver o que ela pretende ver esclarecido [KANT, 1994, p. 49]. No tempo de Kant, a metafísica já estava renegada a segundo plano e foi justamente o seu fracasso que deixara aberto o caminho ao ceticismo. As pretensões de se conhecer o incondicionado conduz, necessariamente, a infinitas contradições. Para demonstrar os paralogismos, argumentos contraditórios, acerca das idéias de alma e de Deus, e as antinomias, conflito entre duas afirmações demonstradas ou refutadas com igual rigor, referentes à idéia de mundo, Kant estabelece que se alguém dissesse que todo corpo cheira bem ou não cheira bem, então ocorre uma terceira alternativa, ou seja que ele de modo algum cheira (emite odores), e desse modo ambas as proposições conflitantes podem ser falsas [KANT, 1988, p. 80]. Com isso, Kant pretende apontar toda a contradição existente nas proposições que tentam afirmar certos conhecimentos metafísicos acerca das coisas em si mesmas. Kant comporta-se como crítico severo diante da Psicologia Racional, pois esta acredita ser possível conhecer a alma destituída do corpo. Kant demonstra quatro paralogismos cometidos pela

89 SILVA, Neilson José da. A Propósito da Introdução à Crítica da Razão Pura... psicologia racional. Segundo Adolfo Bonaccini, O paralogismo principal é aquele que se refere à substancialidade da alma, depois de demonstrada que a alma é substancia o psicólogo racional deriva analiticamente a simplicidade, a personalidade e a imortalidade da alma 6. A Psicologia Racional transforma a unidade subjetiva da consciência, que serve de fundamento às categorias, em substância de existência objetiva 7. Apesar do espírito possuir uma função unificadora das representações, é um paralogismo acreditar ser possível o conhecimento dele separado do corpo. Somente seria possível deduzir analiticamente e a de modo a priori as proposições da psicologia racional se o homem fosse possuidor de uma intuição intelectual, o que é impossível. Todo o nosso conhecimento supõe uma síntese a priori e as idéias de alma não encontram nenhuma experiência que lhes possa ser adequada. Logo, não é possível provar a realidade ou irrealidade da alma, se é mortal ou imortal; a alma não é objeto de conhecimento, mas um ser de pensamento, um nôumeno ou coisa em si. Apontando as antinomias Kant rejeita a Cosmologia Racional, a qual visa a explicar o mundo exterior enquanto totalidade. É humanamente impossível tal pretensão, pois não podemos saber absolutamente nada acerca da origem do universo, se ele foi ou não criado no tempo e no espaço, se é finito ou infinito. Quando tentamos pensar tal explicação somente conseguimos chegar a antinomias. Instaura-se o conflito da razão consigo mesma. Não sabemos se a matéria é, ou não, composta de elementos simples e incomponíveis; se é possível ou impossível que haja causas livres não causadas por outras causas; se há ou não há um ser necessário do qual dependam as realidades contingentes 8. Não possuem nenhum fundamento os argumentos acerca das idéias de mundo; é falaciosa e contraditória toda proposição emitida para afirmar qualquer conhecimento acerca do cosmos como totalidade. Depois de consideradas todas essas questões, Kant demonstra ainda o paralogismo, que diz respeito à idéia de Deus. O ser originário na perspectiva kantiana serve de fundamento primeiro, ou mesmo de primeiro princípio, a toda ordem existente no universo. O filósofo argumenta que são equivocadas todas as provas da Teologia Racional. Kant apresenta três provas: a ontológica, que parte de puros conceitos do entendimento para chegar à idéia de perfeição 6 BONACCINI, 1996, p. 60. 7 CHALLAYE, 1996, p. 194. 8 Idem. absoluta e demonstrar, analiticamente e totalmente a priori, a existência de um ser originário; a cosmológica, que acredita ser possível provar a existência de um primeiro princípio de modo a posteriori partindo do ser contingente para chegar ao ser absolutamente necessário; a físico-teológica, que pretende afirmar a posteriori, partindo da ordem e harmonia do universo, a existência do ser originário como uma espécie de inteligência ordenadora. É rejeitada, por Kant, a prova a priori ontológica da existência de Deus. O criticismo de Kant demonstra que quando pensamos um ser (sem defeitos) mantém-se sempre o problema de saber se existe ou não [KANT, 1994, p. 505]. Considerando o conteúdo a posteriori como limite do conhecimento, compreende-se que na filosofia de Kant a realidade é uma categoria do intelecto que somente possui validade rigorosa quando aplicada aos fenômenos. Num uso puramente teórico desta categoria, na busca da demonstração de um nôumeno, a razão extrapola seus limites e cai em contradição. A prova ontológica é falaciosa por confundir a existência da coisa com o simples conceito da coisa [Idem]. O ser absoluto constitui uma idéia da razão que ultrapassa os limites da experiência sensível e encontra-se muito além do entendimento humano. Ao partir do mundo natural a prova cosmológica, fundamentada no princípio de causalidade e correspondência, nos faz pensar que ela é a posteriori. Ela estabelece que se existe o contingente tem que existir o necessário e ainda o absolutamente necessário. Kant demonstra que a prova cosmológica começa no mundo sensível mas não permanece nele. Essa demonstração faz uso da experiência a posteriori do mundo natural para dar unicamente um primeiro passo a saber para se elevar para se elevar à existência de um ser necessário em geral. O fundamento da prova nada nos ensina acerca dos atributos desse ser; então a razão afasta-se [KANT, 1994, p. 508] completamente do mundo sensível para buscar a conclusão do raciocínio a partir dos puros conceitos do entendimento. O paralogismo se completa quando é demonstrado que o conceito puramente intelectual do contingente não pode produzir nenhuma proposição sintética como a da causalidade, e o princípio desta só no mundo sensível encontra significação e critério para sua aplicação [KANT, 1994, p. 511]. Abandonando o mundo sensível, a demonstração cosmológica comete o mesmo devaneio da prova ontológica operando a síntese do raciocínio de modo puramente intelectual. A prova cosmológica que se gabava de operar a sua síntese de modo a posteriori, é uma prova a

90 SILVA, Neilson José da. A Propósito da Introdução à Crítica da Razão Pura... priori ocultada. Partindo da ordem harmonia e hierarquia dos seres do universo e ainda do princípio de causalidade, a prova físicoteológica busca fundamentar seu raciocínio de modo a posteriori. Segundo Kant, esta demonstração entra facilmente em conflito consigo mesma quando percebemos que todas as leis da passagem dos efeitos para as causas e até mesmo toda síntese e toda extensão do nosso conhecimento em geral reportam-se unicamente à experiência possível, por conseguinte a objetos do mundo dos sentidos e só com referência a estes podem ter uma significação [KANT, 1994, p. 519]. A observação permite-nos estabelecer, acerca da regularidade do movimento natural das coisas, uma grandeza que seja causa primeira deste processo da passagem dos efeitos para as causas, ou seja, uma grandeza absoluta que serve de sustentáculo a toda a cadeia ordenada e justaposta de elementos do mundo natural. O princípio da causalidade fortalece a convicção da possibilidade de existência de um ser originário para fundamentar a totalidade deste ordenamento. Após considerado tudo isto, a razão cai novamente em contradição quando infere apoditicamente poder conhecer esta grandeza, bem como afirmar de modo incontestável a existência real do ser originário. A demonstração da existência de uma primeira causa ou primeiro princípio constitui o passo decisivo para a razão formular a síntese e fazer surgir o paralogismo que faz esta prova cometer a mesma contradição da demonstração cosmológica. Kant diz que a segunda e terceira provas podem ser imediatamente descartadas, pois elas subentendem a primeira. Kant demonstrou ser possível transitar da prova físico-teológica à cosmológica e desta para a demonstração ontológica. Podemos anunciar dois pontos relevantes a partir do que ficou demonstrado; como pudemos observar a prova ontológica é uma ilusão da razão entre os puros conceitos do entendimento e no que concerne às outras duas provas Kant entende que o princípio da causalidade é válido somente no âmbito dos fenômenos. As provas cosmológica e físico teológica que se dizem a posteriori, são provas a priori disfarçadas de a posteriori. Portanto, nenhuma prova da existência do ser originário possui força demonstrativa sem conduzir a razão a infinitas contradições. Sendo Deus um nôumeno, não posso afirmar ser concreta a sua existência, uma vez que não tenho como aplicar meu conhecimento sintético a priori a objetos desprovidos de matéria ou de qualquer conteúdo sensível. A filosofia kantiana, então, vem demonstrar que os objetos da metafísica são seres noumênicos, que se encontram para além do mundo da experiência possível. A razão especulativa é um princípio de unidade. Leva o entendimento a unificar, a sistematizar, o esforço satisfatório quando se aplica ao mundo dos fenômenos. Mas, num uso teórico, a razão procura ultrapassar o mundo dos fenômenos; daí a ilusão metafísica 9. Segundo Kant, iludida de que as moléculas de ar impedem a sua livre trajetória no espaço, uma ave poderia pensar que no vácuo ela pudesse voar melhor; entretanto, seria debalde tal pensamento, pois no vácuo, sem a resistência proporcionada pelas partículas de ar, a ave jamais voaria. A razão tem a crença de que pode pensar melhor saindo do mundo sensível, mundo dos fenômenos, para chegar ao incondicionado; porém, o que acontece é a ilusão de se ter alcançado o conhecimento dos objetos noumênicos. Nesse sentido, o que acontece, quando o homem tem essa intenção, é o fato de sua razão cair no vazio. 3. Considerações Acerca Da Filosofia Crítica De Kant A crítica kantiana termina por concluir a possibilidade de dissolver, com o seu método, até mesmo a mais sólida e sutil Filosofia. Não resta dúvida de que o propósito de Kant foi, em suma, elevar a crítica ao seu mais alto grau. Somente a crítica é capaz de cortar pela raiz o materialismo, o fatalismo, o ateísmo, a incredulidade dos espíritos fortes, o fanatismo e a superstição, que podem tornar nocivos a todos e, por último, também o idealismo e o ceticismo, que são sobretudo perigosos [KANT, 1994, p. 30]. A atualidade da filosofia kantiana não se resume, unicamente, na tentativa de superar o racionalismo dogmático e o empirismo céptico, pois ela tem ainda a pretensão de propor uma forma de razão que proceda criticamente sem passividade. O que chamamos crítica, em Kant, tem fundamental importância para o universo do conhecimento, pois ela acaba por descobrir na razão um uso regulador que é, portanto, o reconhecimento da impossibilidade de se atingir os objetos cuja natureza é desprovida de conteúdo material. Na busca de resposta para esse problema, o próprio kantismo entende que a questão essencial levantada pela Crítica da Razão Pura é unicamente a de saber até onde posso esperar alcançar com a razão, se me for retirada toda a matéria e todo o concurso da experi- 9 CHALLAYE, 1996, p. 194.

91 SILVA, Neilson José da. A Propósito da Introdução à Crítica da Razão Pura... ência [KANT, 1994, p. 7]. Ora, a natureza humana é constituída de tal modo que não nos permite conhecer os objetos noumênicos da razão especulativa. Quando a razão tenta elevar à unidade os elementos ou seres de pensamentos, ela de modo algum consegue seguir seu caminho sem cair, inevitavelmente, nos erros, em argumentos sofísticos e sem fundamentos. Talvez a razão, segundo Kant, se encontre diante do seu compromisso mais difícil, o conhecimento de si mesma [KANT, 1994, p. 5]. Acerca da razão, poder-se-á considerar que a crítica conduz à constituição de um tribunal que lhe assegure as pretensões legítimas e, em contrapartida, possa condenar-lhe todas as pretensões infundadas; e tudo isso não por decisão arbitrária, mas em nome das suas leis eternas e imutáveis [Idem]. A metafísica não pode conhecer com legitimidade e com validade as coisas em si. Portanto, segundo Kant, a razão deve, necessariamente, ser entendida como crítica de si mesma. De modo algum é possível uma metafísica como ciência, e isso somente a crítica é capaz de concluir. Assim, o dever da Filosofia era dissipar a ilusão proveniente de um mal-entendido, mesmo com o risco de destruir uma quimera tão amada e enaltecida [KANT, 1994, p. 6]. No entanto, somente a crítica é capaz de evitar que a razão ultrapasse o universo da experiência, o mundo dos fenômenos. Para além do mundo sensível nada pode ser demonstrado ou conhecido, nem a existência, nem a não existência de seres noumênicos. Certamente a metafísica deve ter algum significado para o universo da ética, mas seus seres de pensamento não podem ser, de modo algum, objetos de conhecimento. Conclusão Em se tratando de Filosofia, nada se pode afirmar apoditicamente acerca do mundo inteligível, é o que Kant nos ensina. Do ponto de vista metafísico, a Crítica da Razão Pura teve como finalidade demonstrar os paralogismos e as antinomias acerca das idéias da razão. Kant, em momento algum, demonstra a impossibilidade da metafísica em geral; afinal, no campo da ética, ela possui um inestimável atributo. É no universo do conhecimento, que a metafísica teve absurdas pretensões, entre elas a tentativa de, por meio da razão, elevar-se ao incondicionado. A crítica surgiu como uma espécie de instrumento para demonstrar a impossibilidade da metafísica enquanto ciência. Tal crítica deve, necessariamente, acompanhar todo conhecimento, bem como os seus pressupostos gnosiológicos, para que o homem nunca ultrapasse os limites exigidos pela experiência. O problema da razão, segundo Kant, tem sido, de fato, tentar conhecer objetos transcendentes que somente podem ser pensados, objetos que estão para além da realidade sensível, muito além do universo condicionado pela experiência. A razão deve preocupar-se não com o mundo noumênico, mas tão somente com o mundo dos fenômenos. Diante da tentativa debalde de elucidar questões transcendentes, a razão se esquiva conseguindo somente cair em argumentos falaciosos e errôneos. Referências Bibliográficas BONACCINI, Juan Adolfo. Acerca da Segunda Versão dos Paralogismos da Razão Pura. Anais de Filosofia, São João del-rei : FUNREI, n. 3, p. 59-66, Jun. 1996. CHALLAYE, Félicien. Pequena História das Grandes Filosofias. Tradução e notas de Luiz Damasco Penna e J. B. Damasco Penna. Rio de Janeiro : Nacional, 1966 DELEUZE, Gilles. Para Ler Kant. Tradução de Sônia Dantas Pinto Guimarães. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1976. KANT, Immanuel. Crítica da Razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão; Introdução e Notas de Alexandre Fradique Morujão. 3. ed. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura: outros Textos Filosóficos. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1987 - V. II (In: Coleção - Os Pensadores n. 25). PASCAL, Georges. O Pensamento de Kant. Introdução e tradução de Raimundo Vier. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. SCIACCA, Michele Frederico. História da Filosofia: do Humanismo a Kant. Tradução de Luís Washington Vita. 3. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1968.