Determinação do estado morfodinâmico praial no momento da observação a partir de fotografias de longa exposição Flavia Moraes Lins de Barros1 1 Mestranda de Geografia PPGG / UFRJ Laboratório de Geografia Marinha - Dep. de Geografia da UFRJ (flaviamlb@br.inter.net) Abstract The aim of the present paper is to present a method for the identification of the morphodynamic state as a complement to the visual observation and quantitative determination. The technique, inexpensive and of easy application, consist in the utilization of a photographic camera with a fixed and very small aperture in order to allow long time exposures. Cameras with and without lens (pin hole) can be used. For this purpose a plastic cap with a very small hole (about 0,03 cm) is fixed in front of the objective or directly to the camera. The hole is more than six times smaller than the smallest aperture of a common diaphragm (f:16) in order to allow expositions for several minutes. This technique registers the position of the bars where the wave breaking occurs and therefore the identification of the morphodynamic state of the breaker zone. The technique was tested at several beaches of Rio de Janeiro and the results proved its efficacy for the identification of surf zone's morphological features. Palavras-Chave: morfodinâmica praial 1. Introdução O perfil topográfico de uma praia apresenta variabilidade complexa em função principalmente do clima de ondas e das características granulométricas. Embora muitos estudos vêem sendo realizados na tentativa de compreender esta dinâmica, a resposta morfológica de uma praia às condições oceanográficas ainda não é completamente conhecida. Dentre os diversos modelos de classificação e previsão do estado morfodinâmico das praias o mais aceito e conhecido internacionalmente foi elaborado por Wright e Short (1984) para praias com regime de micro-maré (até 2 metros). Tal classificação identifica seis estados morfodinâmicos e propõe um parâmetro para previsão do estado modal, isto é, o estado mais recorrente em uma determinada praia. Outros estudos mais recentes apresentam novas técnicas e parâmetros visando, ao invés da previsão do estado modal, a classificação morfodinâmica das praias no momento da observação (Lippmann e Holman, 1990; Muehe, 1998). Tais estudos refletem a necessidade de maior precisão na determinação do estado morfodinâmico, seja através da melhor compreensão da relação entre a morfodinâmica e os diversos parâmetros envolvidos (clima de ondas, sedimentos, topografia) ou de novas técnicas de observação das feições submersas. Neste último caso, com o objetivo de melhor identificar a morfologia e localização dos bancos de areia submersos próximos à zona de arrebentação Lippmann e Holman (1990) sugerem uma metodologia de obtenção de imagens por sensoriamento remoto. Baseando-se em tal metodologia o presente trabalho tem como objetivo apresentar uma técnica de observação do estado morfodinâmico, complementar a observação visual e aos parâmetros matemáticos. Ao contrário daquela apresentada por Lippmann e Holman (op. cit.) a técnica sugerida neste artigo apresenta baixo custo e fácil aplicação. Acredita-se com isso contribuir na identificação das feições morfológicas da zona de surfe e na determinação do estado
morfodinâmico das praias no momento da observação. 2. Modelos de Previsão e Classificação de Estados Morfodinâmicos de Praias O modelo proposto por Wright e Short (1984) reconhece os seguintes estados morfodinâmicos: dois extremos (refletivo e dissipativo) e quatro intermediários. Resumidamente, o estado dissipativo é caracterizado por sedimentos finos, gradiente topográfico da face da praia baixo e zona de surfe larga. O estado refletivo, ao contrário, apresenta geralmente sedimentos com maior diâmetro, alto gradiente e ausência de zona de surfe. A passagem do estágio dissipativo para o refletivo ocorre pela migração do banco de areia em direção à costa, formando quatro estágios intermediários. O estado seguinte ao dissipativo é chamado de banco longitudinal e se caracteriza pela presença de um banco de areia paralelo à costa marcando o início da zona de arrebentação. Entre a costa e o banco encontra-se uma calha. A zona de surfe neste estado é menor do que no anterior. O terceiro estado, nomeado de banco e calha, se caracteriza pela presença de cúspides na face da praia e no banco de areia que se encontra separado da praia por um canal, ora largo, ora mais estreito. No estado bancos transversais o banco de areia se conecta à praia em alguns trechos, formando bancos transversais à costa. Entre um banco e outro se formam fortes correntes de retorno que atravessam a zona de surfe, espraiandose após esta. O estado de terraços de baixa mar se aproxima das características refletivas. O banco de areia na maré baixa encontra-se exposto formando um terraço separado da face da praia por um pequeno canal. O gradiente topográfico é bem maior se comparado aos outros estágios intermediários. Wright e Short (1984) determinam ainda que uma praia tende a apresentar um estado modal que depende do ambiente. Os autores afirmam que o estado da praia é função da altura e período da onda e do tamanho do sedimento. A partir desta afirmação os seis estados foram relacionados ao parâmetro Ω de Dean, que incorpora as características da onda (altura na arrebentação) e dos sedimentos (velocidade de decantação). Muehe (1998), em contrapartida, através do acompanhamento de medições oceanográficas e sedimentológicas em diversas praias do estado do Rio de Janeiro, constatou pequena correspondência entre o estado morfodinâmico no momento da observação e aquele determinado pelo parâmetro de Dean. O autor (op. cit.) demonstra haver pouca correlação entre a velocidade de decantação dos sedimentos e os parâmetros de ondas no caso das praias dissipativas e intermediárias e formula a hipótese de que a comparação dos parâmetros de onda na zona de espraiamento e os parâmetros de ondas na zona de arrebentação representa uma abordagem mais diagnóstica do estado morfodinâmico no momento da observação do que o parâmetro de Dean. Desta forma, um novo parâmetro denominado delta ( ) é sugerido pelo autor para determinação do estado morfodinâmico no momento da observação no qual são associados o coeficiente de dissipação, isto é, a perda de energia da onda durante seu deslocamento e o coeficiente de regime de fluxo dado pela relação entre o período da onda (T) e o período do espraiamento na face da praia (Tespr). Buscando uma nova classificação morfológica das praias, Lippmann e Holman (1990) desenvolveram uma técnica de sensoriamento remoto - time average imaging of incident wave breaking - com a qual é possível estimar a localização das cristas dos bancos submersos. A partir da interpretação de imagens de longa exposição (10 minutos) da zona de surfe, obtidas por filmagem de vídeo passando posteriormente por um sistema de processador de imagem, Lippmann e Holman (op. cit.) sugerem alterações no modelo apresentado por Wright e Short (1984) identificando oito estados morfodinâmicos.
3. Material e Método A técnica proposta no presente trabalho consiste na utilização de uma câmera fotográfica manual, um filme com velocidade baixa (ASA 100), uma tampa opaca com um orifício no centro de aproximadamente 0,03cm, um disparador automático e um tripé. Duas diferentes formas de utilização da câmera fotográfica foram testadas: a) utilizando uma lente normal de 55mm e incorporando a esta a tampa opaca; b) utilizando o aparato opaco no lugar da lente (este tipo de câmera sem lente é denominado na língua inglesa de Pin Hole). Nas duas formas a passagem de luz deverá ocorrer apenas através do pequeno orifício. Desta forma, a entrada de luz na câmera será muito reduzida o que permite empregar um tempo de exposição maior do que uma câmera fotográfica usual. A menor abertura do diafragma de uma lente normal (f:16) possui aproximadamente 0,2 cm. A redução deste valor para 0,03 cm permite o aumento do tempo de exposição em mais de seis vezes. Portanto, em um dia de sol em que é preciso com a lente normal e o filme ASA 100 aplicar, por exemplo, uma velocidade de 1/125 segundos e abertura do diafragma f:16, na lente com o orifício de apenas 0,03cm será possível expor a câmera por aproximadamente 0,5 segundo para obter uma fotografia com a mesma qualidade. Tendo em vista que para o alcance dos objetivos não é exigida uma qualidade em termos de cor e nitidez muito elevada, e dependendo da claridade do dia e do local a ser fotografado, é possível empregar um tempo de exposição de vários minutos (foram empregados até 4 minutos). Para que a câmera fotográfica permaneça sem movimento é necessário a utilização do tripé e do disparador automático. A revelação das fotografias foi realizada em meio comercial comum. Após a revelação as fotografias foram escaneadas e através do programa Photoshop 6.0 da Adobe foram transformadas em preto e branco e ajustadas quanto ao brilho e contraste. O objetivo do emprego da longa exposição é registrar em uma mesma fotografia a arrebentação de uma série de ondas (o número de ondas dependerá do período destas e do tempo de exposição). Com isso, será registrado também o contraste da intensidade de luz entre o local mais recorrente da arrebentação das ondas e o de "não-arrebentação" permitindo, então, identificar o padrão espacial da arrebentação das ondas. Como fora constatado por Lippmann e Holman (1989) o local de arrebentação corresponde aproximadamente a posição do banco de areia o que, por sua vez, está diretamente relacionado ao estado morfodinâmico das praias. As fotografias de longa exposição foram realizadas nas praias do Foguete, localizada na cidade de Cabo Frio, Massambaba, em Arraial do Cabo, Recreio e Barra da Tijuca, ambas na cidade do Rio de Janeiro. As duas primeiras praias vêem sendo monitoradas através de perfis transversais desde 1995 pelo grupo de Geografia Marinha da UFRJ (Muehe et al., 2001). 4. Resultados No momento da fotografia foram observadas na praia do Foguete ondas de 1,2 metros de altura e período de 7 segundos. Na fotografia com 2 minutos de exposição (Foto 1a) observa-se uma quase contínua mancha clara indicando uma zona de surfe larga com várias arrebentações, características estas típicas do estado denominado por Wright e Short (1984) como dissipativo. Nota-se que a fotografia com longa exposição revela informações sobre o padrão de arrebentação das ondas diferentes da fotografia tirada instantaneamente (câmera normal) (Foto 1b).
Foto 1a - Praia do Foguete, Cabo Frio - RJ Exposição de 2 minutos utilizando uma câmera Pinhole. Foto 2b - Praia da Massambaba, Arraial do Cabo RJ. Câmera normal. A fotografia retirada na praia do Recreio com 1 minuto de exposição (Foto 3a) revela a presença de um banco longitudinal. Observa-se ainda uma interrupção neste banco o que pode estar relacionado às correntes de retorno. Foram observadas no momento ondas de 0,5 metro de altura e período de 12 segundos. Foto 1b - Praia do Foguete, Cabo Frio - RJ Câmera normal. Na praia da Massambaba foram observadas no momento da fotografia ondas com 1,5 metros de altura e período de 6 segundos. A fotografia desta praia com exposição de 2 minutos revela o padrão de arrebentação que indica a presença de banco longitudinal e banco transversal (Foto 2a) sugerindo uma praia no estado de Banco Transversal segundo a classificação de Wright e Short (1984). banco transversal Foto 3a - Praia do Recreio - Rio de Janeiro. Exposição de 1min utilizando uma câmera com lente normal e a tampa opaca. banco longitudinal Foto 3b - Praia do Recreio - Rio de Janeiro. Câmera normal. Foto 2a Praia da Massambaba, Arraial do Cabo - RJ. Exposição de 2 minutos utilizando uma câmera Pinhole.
Finalmente, na praia da Barra da Tijuca, a fotografia com 2 minutos de exposição (foto 4a) revela a presença de bancos transversais intercalados por canais onde as ondas não arrebentam. Porém, como é possível observar na fotografia, os bancos transversais não estão conectados ao póspraia, o que pode indicar o início do processo de transição para o estado de banco e praia de cúspides. Foto 4a Praia da Barra da Tijuca Rio de Janeiro Exposição de 2 minutos utilizando uma câmera PinHole. Foto 4b Praia da Barra da Tijuca Rio de Janeiro Câmera Normal 5. Conclusões Os primeiro resultados do uso de fotografias de longa exposição mostraram a eficácia desta técnica para a identificação das feições morfológicas da zona de surfe. O fato do filme permanecer exposto à luz por um tempo longo torna possível registrar o padrão de arrebentação de uma série de ondas o que não ocorre em uma fotografia instantânea. Desta forma, acredita-se que a técnica sugerida neste artigo pode auxiliar as pesquisas que visem compreender melhor a morfologia das praias, sua dinâmica e a variabilidade diante as mudanças das condições oceanográficas. No entanto algumas limitações, também encontradas na técnica apresentada por Lippmann e Holman (1990), devem ser listadas. Em primeiro lugar a técnica só pode ser realizada quando a ondulação é forte o suficiente para formar uma zona de arrebentação gerando um contraste de luz na fotografia. Pelo mesmo motivo nos dias muito nublados ou com chuva não é possível obter fotografias com boa qualidade. Além disso, nem todas as praias apresentam locais elevados e com bom ângulo para posicionar a câmera de forma adequada para a fotografia. Por fim, as praias refletivas não são bem representadas nas fotografias tendo em vista a ausência de zona de arrebentação característica deste estado. É importante novamente frisar que a técnica sugerida neste trabalho apresenta custo muito baixo diferentemente daquela apresentada por Lippman e Holmann (1990) que exige a utilização de uma câmara de vídeo e um programa de computador sofisticado para o processamento das imagens. Em trabalhos futuros outras experiências serão realizadas visando melhorar a técnica apresentada. Pretende-se ainda incorporar a fotografia de longa exposição ao monitoramento de diversas praias do estado do Rio de Janeiro o qual já vem sendo realizado pelo laboratório de Geografia Marinha da UFRJ a partir do levantamento de perfis topográficos. 6. Bibliografia LIPPMANN, T. C. e HOLMAN, R. A. 1989 Quantification of sand bar morphology: a video technique based on wave dissipation. Journal of Geophysical Research, vol. 94: 995-1011. LIPPMANN, T. C. e HOLMAN, R. A. 1990 The spatial and Temporal Variability of Sand Bar Mophology. Journal of Geophysical Research, vol. 95 NO. C7: 11.575-11.590.
MUEHE, D. 1998 Estado Morfodinâmico praial no instante da observação: uma alternativa de identificação. Revista Brasileira de Oceanografia, 46 (2): p. 157169. MUEHE, D.; FERNANDEZ, G. B.; SAVI, D. C. 2001 Resposta Morfodinâmica de um Sistema praia-antepraia a oeste de cabo Frio exposto às tempestades de 2001. In: VIII CONGRESSO DA ABEQUA. Boletim de Resumos. Mariluz, Imbé, RS, 2001, p. 63-34. WRIGHT, L. SHORT, A. D. 1984 Morphodynamic Variability of Surf Zones and Beaches: A Syntesis. Marine Geology, 56: p 93-118. Este trabalho foi realizado no âmbito do projeto Geomorfologia e processos morfodinâmicos da plataforma continental interna e ante-praia no estado do Rio de Janeiro desenvolvido pelo laboratório de Geografia Marinha da UFRJ aprovado e financiado pelo CNPq (processo nº 470792 2003/05).