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Transcrição:

0 NIEMEYER INATURAL Carlos Eduardo Comas Prof. arq. UFRGS, Dr. (Université de Paris 2002) Rua Comendador Rheingantz 43 Porto Alegre RS- 90450-020 ccomas@uol.com.br F 51 3332 4872 Resumo: Entendida a natureza como mundo material que existe independentemente do homem, mas onde este vive e habita, o artigo examina duas modalidades de seu impacto sobre a arquitetura de Oscar Niemeyer: um derivado de sua condição de meio de fisionomia particular e cenário de formas próprias, em que a arquitetura forçosamente se ins-creve; o outro decorrente de sua condição de matriz de formas e fonte de imagens, que a arquitetura facultativamente trans-creve. A comparação com Mies van der Rohe e Frank Lloyd Wright ajuda a contestar a idéia demasiado difundida da obra de Niemeyer como fusão entre arquitetura e natureza. Palavras-chave: Oscar Niemeyer, natureza, arquitetura moderna brasileira.

1 NIEMEYER INATURAL Entre as várias acepções de natureza, uma é de particular interesse para a arquitetura, construção extra-ordinária: a de mundo material que existe independentemente do homem, mas onde este vive e habita. Entre as várias possibilidades de impacto dessa natureza sobre a arquitetura, duas são de particular interesse para o entendimento da obra de Oscar Niemeyer: uma deriva de sua condição de meio de fisionomia particular e cenário de formas próprias, em que a arquitetura forçosamente se ins-creve; a outra decorre de sua condição de matriz de formas e fonte de imagens, que a arquitetura facultativamente trans-creve. A primeira relação é física, direta, atual e sempre efetiva, forçosa na medida em que a demanda de ar e luz é uma constante do habitar, logo não restrita a uma paisagem rural, mas extensiva à situação urbana e à recriação dessa paisagem em forma de jardim, porque, às vezes, a arquitetura também circunscreve a natureza. É relação inter-ativa e adjetiva, que implica o modo como a arquitetura aparece na paisagem nesse sentido lato, o seu jeito de tornar-se perceptível, de revelar-se ao olho do espectador. A segunda relação é mental, indireta, potencial e muitas vezes latente, facultativa na medida em que a arte possa imitar a arte ou ciência e não a vida- ou na medida em que envolve seleção no âmbito da multiplicidade de coisas que compõem a natureza. É relação substantiva, exemplar de um lado, de outro imitativa, que tem a ver com as coisas a que a arquitetura se parece independentemente da presença efetiva dessas coisas, com o aspecto que a arquitetura assume ao olho do espectador e as evocações que então desperta. Ora, a inspiração biomórfica de Niemeyer não é nenhum segredo, muito pelo contrário. Para o arquiteto, de curvas livres e sensuais é feito todo o universo, a mulher preferida inclusive. i Contudo, as curvas da mulher amada são referentes demasiado vagos, de identificação imprecisa, ao contrário dos contornos da laje do mezanino do Pavilhão Brasileiro na Feira Mundial de Nova York em 1939, decididamente amebóides. Os auditórios projetados em frente ao Ministério de Educação tem algo de caranguejo com os seus exoesqueletos nervurados. E o batistério da Catedral de Brasília é um volume ovóide, contraposto às costelas que armam o santuário. As colunas cilíndricas daquele mesmo Ministério ganham conotações arbóreas na vizinhança dos troncos de palmeiras imperiais que Burle Marx plantou. Na Casa do Baile da Pampulha, a expansão sinuosa da laje de cobertura recorda copas de árvores estilizadas num renque de colunas. As conotações arbóreas retornam com um viés mais primitivo em toda uma série de apoios bifurcados nos anos 1950: as colunas em W, V, Y e as gigantescas mãos francesas alimentam uma espécie de estruturalismo orgânico, as primeiras caracterizando o conjunto Governador Juscelino Kubitschek, as demais particularmente notáveis no conjunto do Ibirapuera. No Palácio das Indústrias, hoje Pavilhão da Bienal, o destaque é o espécime surreal que suporta as rampas internas, desenvolvidas dentro de fendas, nas lajes, de contornos labiais. A alusão antropomórfica tampouco está ausente, mas não é necessariamente feminina. A elevação tripartida é uma constante, o resultado lógico da conjugação de pilotis térreo aparente, volume prismático em balanço e coroamento por teto terraço com jogo de volumes; como se sabe, o esquema renova a

2 analogia tradicional entre a arquitetura e o corpo humano, invertendo os pesos relativos costumeiros de base e corpo. Menos comum é a semelhança entre o corpo humano e elemento arquitetônico, como nos palácios de Brasília. Mistilíneas, de elevação e seção rombóides, em relevo, as colunatas do Alvorada lembram procissão de figuras barrigudas ou bailarinas rodopiando as saias, cariátides contemporâneas, nas palavras de Stamo Papadaki. ii Em contraste, as colunatas do Planalto e do Supremo, planas como chapas recortadas, recordam atlantes a dançar na ponta dos pés, esbeltos como os atletas dos frescos minóicos. Vigiando tudo isso, mais recente, está o ideograma da visão no Novomuseu de Curitiba, o olho ciclópico feito logomarca. Nem a transação de Niemeyer com as formas naturais se reduz aos seres animados. Como o verde, a terra e a água se prestam a uma onomatopéia arquitetônica, à estilização de acidentes geográficos. A terra informa três exemplos imediatos. Na Capela de São Francisco da Pampulha, de perfil, as cascas parabólicas evocam a silhueta de cume isolado ou cadeia de montanhas, passando ao mesmo tempo por ideogramas de elevação espiritual. A cúpula nasce do chão como morro de geometria elementar para constituir o Palácio das Artes do Ibirapuera, hoje rebatizado como Oca. Para o Museu de Caracas, nada mais contundente que a pirâmide invertida que espelha, regularizada, a montanha onde se assenta, a contrapartida mais espetacular do tambor da sala de espetáculos do Cassino da Pampulha que, mirando o lago, ecoa a rotundidade do promontório onde se assenta. Nas mãos de Niemeyer, o lago da Pampulha vira uma praça molhada. Paradoxalmente, pouco mais tarde, a marquise do Ibirapuera, cobertura de praça seca, é um lago petrificado e levantado, cujos contornos evocam o lago artificial da Quinta da Boa Vista, equacionado, na melhor tradição do desenho pitoresco, por Auguste Glaziou, quase no fim do 2º Império brasileiro. A água importa também na casa do arquiteto na Estrada das Canoas. iii A piscina, buraco em plataforma artificial e artificiosa, incorpora uma rocha protuberante existente no local. O encontro entre o líquido e o minério ecoa o encontro do Pão de Açúcar com a baía de Guanabara mais abaixo. Mais sutil, talvez, a contraposição entre três lados lisos e uma frente recortada e rendada dá ao Hotel de Ouro Preto a feição de um geodo partido mostrando seus cristais. A maioria das formas mencionadas envolve uma geometria curva. iv Tanto no elogio quanto na censura a Niemeyer, é lugar comum a identificação da curva como metáfora do natural, orgânico e instintivo, do feminino e do barroco ou rococó, em oposição à reta racional, artificial, abstrata, masculina, renascentista. Admirador da curva diferente, o próprio arquiteto reitera que o ângulo reto não o atrai, "nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem". v Contudo, a polêmica reta- curva é confusa e em última instância tediosa. Estritamente falando, a validade do uso da reta ou da curva depende da situação. A ortogonalidade é geralmente mais econômica (portanto mais racional sob um determinado ponto de vista), mas nem por isso a curva é por princípio irracional ou a reta é artificial". A despeito das declarações de Niemeyer, sua obra está longe de desprezar a reta. Como visto, esta é também um ingrediente na sua evocação da natureza. O que realmente importa é o uso hábil que o arquiteto faz da convenção, quer no que respeita aos significados associa-

3 dos aos dois termos, quer no que respeita à fatura de uma figuralidade escancarada, que questiona a associação da arquitetura moderna com o abstracionismo, a arte não-objetiva e não-representativa. vi Contrariando a vanguarda européia dos anos 1920, o impacto intelectual e afetivo da obra de Niemeyer não depende só da forma intrínseca, mas também e explicitamente do conteúdo narrativo e da representação imagética. Nesta, os objetos naturais não são representados de forma plenamente realista, mas de forma estilizada, que apela para a simplificação convencional própria da historieta em quadrinhos e da caricatura. Em certo sentido, é a conjugação da referência erudita à referência popular contemporânea, ou, pelo menos, à referência aceitável ao gosto da massa, quase beirando o kitsch, respondendo talvez à pressão por um "realismo socialista". Em qualquer caso, para o arquiteto, não é de fundir arquitetura e natureza que se trata, mas de ressaltar a distância entre as duas, de insistir em sua recíproca exterioridade. A idéia de fusão entre arquitetura e natureza na obra de Niemeyer é lugar comum decididamente equívoco, como o mostra a própria casa do arquiteto. A comparação com a Casa Farnsworth de Mies e a Casa da Cascata de Wright aclara o ponto. A Casa da Cascata é uma "casa na árvore" elaborada que evoca e estende a paisagem singular e praticamente intocada em que cresce. As massas verticais de alvenaria ecoam as árvores, os balcões espelham o plano horizontal rochoso sobre o qual flutuam. A continuidade entre natureza e construção é enfática, e sua fusão cria uma arquitetura embasada literalmente na natureza. Mies concebe a sua casa como "quase nada", a versão high-tech de uma cabana primitiva. Uma gaiola de vidro sobre estacas, é tão horizontal e abstrata como o terreno alagadiço sobre o qual se pousa. Entretanto, como um navio no porto, ela não pertence especificamente ao sítio e contrasta com a massa de árvores à sua volta. A arquitetura se constrói minimizando ao máximo o contato com a natureza. A Casa da Cascata é o prédio aberto extenso que tenta emular ou fundir-se com os arredores através da irregularidade, assimetria, riqueza de texturas e contrastes de cor e claro-escuro. A Casa Farnsworth é o prédio compacto cúbico destacando-se da natureza com superfícies lisas homogêneas claramente definidas. Definida pela laje de cobertura do pavilhão social e pela plataforma mais ampla que oculta dormitórios e dependências de serviço, a casa de Niemeyer é outra coisa, a meio caminho entre essas tipologias extremas. A horizontalidade da cobertura e da plataforma desafia a plasticidade da paisagem. Como mostra a memória que registra o processo de projeto, as bordas sinuosas resultam da deformação de esquema inicialmente retilíneo, para calibrar os tamanhos de áreas funcionais distintas e suavizar a tensão entre o contexto natural e o objeto feito pelo homem. A Casa das Canoas é tão dependente do sítio como a Casa da Cascata, descontraída, expansiva, arejada e sensual enquanto a casa Farnsworth é tensa, contida, monumental, cerebral, impessoal e genérica. Contudo, Niemeyer não comparte a preocupação de Wright com massas em expansão. Sua casa parece também "quase nada" : não uma cabana primitiva, mas um toldo petrificado sob o sol subtropical, o vidro transparente e os pilotis escuros indistintos na sombra da cobertura plana. No entanto, nem o toldo superior, nem a caverna de base podem entender-se à parte da plataforma, a clareira artificial que as amarra e é o fundamento do projeto.

4 Essa clareira repousa confortavelmente sobre o terreno que mascara e abraça a rocha que aí existia, mas transforma o caráter do sítio por completo. Arquitetura e natureza estão tão enfaticamente separadas como na casa de Mies, embora uma acomodação de bordas estabeleça uma correspondência empática e uma mediação. A casa de Niemeyer tem sido assemelhada pertinentemente a um oásis, mas a própria plausibilidade da metáfora indica alienação da especificidade do meio natural e desconfiança quanto à sua capacidade nutritiva. A interação exterior-interior imediata se dá no âmbito da plataforma, não na conexão entre arquitetura e o chão de fato. Enquanto criação de mundo humano, construir, afinal, é de alguma forma um ato de violência contra a natureza, como Hannah Arendt sugere em "A Condição Humana". vii No mínimo, é o defloramento consentido dentro de um casamento de contornos. O paraíso tropical não desconhece o derramamento de sangue nem a dor. A plataforma de Canoas não é caso isolado. Seu antecedente é o chão enfaticamente limitado pela topografia, pela pavimentação e pelo ajardinamento intermediário entre a natureza propriamente dita e a arquitetura, notável em todos os projetos exemplares dos anos 1940. No Ministério, esse chão compreende a quadra inteira, incluindo a esplanada que atravessa o trecho de pilotis aberto intermediário e as bandas plantadas que prolongam o vestíbulo de público numa ponta. No Pavilhão de Nova York, o chão é o macro-lote de esquina, e a esplanada transpassa o pilotis para perfurar-se pelo espelho de água sinuoso. Na Pampulha, a praça verde ou seca destaca todo e qualquer objeto construído, com pórticos, varandas e galerias enquadrando o lago e reforçando a separação entre a paisagem natural e a intervenção arquitetônica. Já nos anos 1950, o chão se inclina sob a marquise de Ibirapuera acompanhando a caída do terreno, mas é claramente limitado pelo piso de cimento; trocando parque por selva de pedra, em pleno centro paulistano, a mesma estratégia se adota nos edifícios COPAN e Eiffel. Mais nova que a casa das Canoas, a Brasília dos terraplenos, da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes é de Lucio Costa. Mas é Niemeyer quem firma a plataforma do Congresso, com cúpulas e espaços administrativos em posição análoga ao pavilhão social e aos quartos de dormir cariocas, e é Niemeyer quem inventa a monumentalidade anti-monumental do Planalto e do Supremo, tão bem descrita por Norma Evenson: se torna máxima a consciência da expansividade do sítio e da enormidade do descampado que parece esperar fora para engolir a cidade. A insubstancialidade da arquitetura se acentua contra a imagem do vazio circundante, e faz sentir quão ousada foi a criação de Brasília. A cidade inteira ecoa a bravata dum acampamento de fronteira; o brilho do mármore e do vidro na elegância decorativa dos projetos de Niemeyer desafia o território i- nexplorado como o dourado e o veludo uma vez trouxeram um sopro de fidalguia e civilização ao oeste selvagem americano. viii Em qualquer escala, a expressividade da obra do arquiteto brasileiro não se contém tão facilmente em limites líricos e naturistas, como corretamente insinua Roberto Fernandez. ix De fato, é o estranhamento da natureza que a obra ressalta, com uma ambivalência que inclui tanto a melancolia que convém a uma situação de desterro e dépaysement, quanto a arrogância que uma ocasião de conquista pede, o fascínio e a desconfiança que assinalam uma condição americana de relevância universal. É de cultura

5 que afinal se trata e a discriminação importa, quer na leitura da intervenção passada, quer no preparo da intervenção futura. IMAGENS Acima, Casa da Estrada das Canoas (Oscar Niemeyer), abaixo, Casa da Cascata (Frank Lloyd Wright) e Casa Farnsworth (Mies van der Rohe). NOTAS

6 i Cf. epígrafe em PETIT, Jean. Niemeyer, o poeta da arquitetura. Lugano: Fidia edizioni d arte, s/d, mas provavelmente 1998 em função do último projeto apresentado. ii PAPADAKI, Stamo. Oscar Niemeyer. New York: George Braziller, 1960. iii Auguste Glaziou (1833-1906), engenheiro e botânico francês, veio para o Brasil em 1858 para coordenar a Diretoria de Parques e Jardins da Casa Imperial brasileira. A Quinta da Boa Vista era a residência de D. Pedro II no Rio de Janeiro, hoje Museu Nacional. Glaziou participou igualmente- já durante a República- da expedição que definiu o sítio da futura Brasília. iv Ver GOODWIN, Philip. Brazil Builds: architecture new and old, 1652-1942. New York: MoMA, 1943. O uso da curva não se destaca na apresentação em sociedade da arquitetura moderna brasileira, porque a curva na arquitetura moderna não é invenção brasileira. Sem remontar a Hugo Haring ou Mies, Mendelsohn ou Scharoun, os antecedentes incluem Le Corbusier, Lubetkin e Aalto. Em Le Corbusier, a curva, em termos de parede, laje ou perfuração na laje é episódio subordinado ou é deformação da reta, como nos Viadutos Habitados do Rio e Argel, além de cobertura eventual, nas casas Monol ou no auditório do terraço do Rentenanstalt. Nas mãos brasileiras, porém, a curva se solta, ganha complexidade e importância no bordo de laje, fora como dentro. Adquire mesmo natureza de estribilho, comandando toda a composição na Casa do Baile e no Hotel da Pampulha, só muito pouco menos no Pavilhão, uma parte no Cassino. Apóia a exacerbação na base do Parque Guinle de Lucio Costa e da VFRGS de Affonso Eduardo Reidy. Nesses momentos, a francofilia dá lugar à conexão inglesa, sensualista, paisagista, pitoresca, animada pelo desejo de composição intricada, variada, inovadora. v Cf. nota 1. A comparação com William Hogarth se impõe. Para este, a "linha ondulante" produz mais beleza que qualquer linha reta ou circular, "como em flores e outras formas do tipo ornamental", daí ser a "linha da beleza; a linha sinuosa, como a forma humana, tem o poder de acrescentar graça à beleza; composto por mais linhas de beleza e de graça, a "forma do corpo da mulher supera em beleza a do homem". Cf. HOGARTH, William. The Analysis of Beauty. New Haven & London: Yale University Press, 1997, pp. 41, 49, 58-9. Editado por Ronald Paulson do original de 1753. O livro é destaque na tese de concurso de Morales de los Rios pai, professor da Escola Nacional de Belas Artes do Rio. vi Forma é qualidade objetiva, cuja acepção que aqui interessa é a de configuração física característica dos seres e das coisas, como decorrência da estruturação das suas partes. Imagem é qualidade subjetiva, enquanto representação da forma ou do aspecto de ser ou objeto por meios artísticos. Ver também COLQUHOUN, Alan. Form and Figure. In.Essays in Architectural Criticism. Modern Architecture and Historical Change. Cambridge, Mass: MIT Press, 1981. p. 190-202. vii Arendt argumenta que a violência é inseparável da atividade do homem enquanto homo faber Cf. ARENDT, Hannah. The Human Condition. Garden City, NY: Doubleday Anchor Books, 1958. viii EVENSON, Norma. Two Brazilian Capitals.: architecture and urbanism in Rio de Janeiro and Brasilia. New Haven and London: Yale University Press, 1973. p. 205. ix Fernandez critica explicitamente o sensualismo como chave de explicação niemeyeriana. Cf. FER- NANDEZ, Roberto. Exceso brasileño: Niemeyer y la omnipotencia del gesto. In Summa 92, Buenos Aires, 2008, p. 123.

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