HISTÓRIA DA DEFICIÊNCIA: DO MODELO BIOMÉDICO AO MODELO BIOPSICOSSOCIAL - CONCEPÇÕES, LIMITES E POSSIBILIDADES 1

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Transcrição:

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 1 HISTÓRIA DA DEFICIÊNCIA: DO MODELO BIOMÉDICO AO MODELO BIOPSICOSSOCIAL - CONCEPÇÕES, LIMITES E POSSIBILIDADES 1 Francieli Lunelli Santos (Universidade Estadual de Ponta Grossa) Resumo: Ao longo da história foram muitos os significados atribuídos à deficiência. De contextos permeados pela exclusão social, preconceito e estigmatização, passou-se pelo assistencialismo e caridade, até o estabelecimento da compreensão contemporânea que a concebe sob um enfoque inclusivo. Não se pretende aqui retomar a história da deficiência de maneira ampla, mas sim historicizá-la a partir de alguns de seus marcos teóricos. Para isso realizou-se uma pesquisa bibliográfica de teor revisionista, na qual foram identificadas três compreensões sobre a deficiência, tais sejam: o modelo biomédico, pautado por construção hegemônica dos saberes médicos a respeito do corpo, conjugando normalidade e produtividade; o modelo social, que por sua vez, contestou algumas das premissas do modelo anterior, apresentando a deficiência como constructo social; e, por fim, o modelo biopsicossocial, que engloba argumentos complementares sobre os demais, envolvendo abordagens psicológicas e sociais, além de fisiológicas. Assim, se problematiza a articulação entre deficiência, corporeidade e inclusão. Nesse sentido, discutem-se: a emergência do modelo biomédico e do modelo social; apontam-se os respectivos limites e abordagens para o entendimento do tema; e, por fim, ressaltam-se características do modelo de compreensão subsequente aos dois primeiros, denominado como biopsicossocial. O que se percebeu em comum, sobretudo ao se considerar os dois primeiros, é a dicotomia entre natureza e sociedade, o que implica, muitas vezes, numa rígida contraposição entre aspectos biológicos e aspectos socioculturais relacionados à deficiência. Palavras-chave: Deficiência, História da Deficiência, Modelo Biomédico, Modelo Social, Modelo Biopsicossocial. Introdução Apresentam-se aqui, algumas reflexões teóricas sobre o modo pelo qual as ciências estabeleceram entendimentos acerca da deficiência. Um olhar histórico para a deficiência revela que ela foi alvo de compreensões e construções epistemológicas diversas. A sociedade criou terminologias que influenciaram a maneira como a deficiência seria tratada social, política e cientificamente, através dos modelos: biomédico, social e biopsicossocial. O olhar da sociedade sobre o corpo, sobretudo, o corpo com deficiência é a questão central que permeia as três compreensões. Ressalta-se que a produção historiográfica sobre a deficiência, de modo geral, ainda é incipiente no Brasil, o que ficou evidente pela pesquisa bibliográfica realizada. Modelo biomédico e Modelo social da deficiência A construção teórica inicial sobre deficiência, que ainda respalda muitas das concepções atuais, tem origem na ciência médica. Tal compreensão, pautada pelos saberes médicos, associou, 1 Esta pesquisa foi desenvolvida com recursos do PDSE/CAPES.

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 2 deficiência e doença. Sobre esse contexto, Eucenir Fredini Rocha diz que [...] é a partir do século XIX, com o advento do patológico na medicina e nas ciências sociais, que a deficiência passa a ser também compreendida como uma patologia, na lógica científica da época, tornase passível de estudos, classificações e objeto de intervenções específicas, quanto aos principais problemas de ordem médica. É quando adquire nova expressão de sua negatividade: pertence ao universo de anomalias da natureza. (ROCHA, 2006, p. 19. Grifo no original) O modelo biomédico, em termos cronológicos, foi o modelo inaugural de interpretações e ações com relação à deficiência. Ele teria surgido a partir do desenvolvimento da sociedade industrial, marcada pela produtividade, consumo e eficiência (BARNES, OLIVER e BARTON, 2002). Contudo, recua-se um pouco mais no tempo para identificar alguns antecedentes desse modelo. Através da doutrina cartesiana, um dos produtos da ciência moderna e seus desdobramentos, estabeleceu-se uma compreensão do corpo humano enquanto máquina, ou seja, um mecanismo em funcionamento para desempenho de determinadas atividades. Em caso de incapacidade de uma dessas partes, o corpo deveria ser objeto de intervenções para retomar suas funções com base em critérios de normalidade. Segundo Joon Ho Kim, antes mesmo de René Descartes (1596-1650), Andreas Vesalius (1514-1564) tinha uma concepção próxima a essa, salvaguardadas as diferenças nos objetos analisados pelo filósofo e matemático francês e pelo médico nascido em Bruxelas. De modo geral, a visão de Vesalius era pautada por um padrão de normalidade, que rompeu com a visão holística de corpo ressignificando-o como um agregado de sistemas e peças autônomas (KIM, 2013, p. 87). De acordo com a concepção mecanicista de ser humano e de sociedade Descartes, por seu turno, afirmou que o corpo é uma máquina composta de ossos e carne [...] feita pelas mãos de Deus [...] incomparavelmente mais bem organizada e capaz de movimentos mais admiráveis do que qualquer uma das [máquinas] que possam ser criadas pelos homens (DESCARTES, 1999a, p. 81; 1999b, p. 259 apud KIM, 2013, p. 88) Sobre tais acepções, Le Breton sugere que nelas as causas de origens desconhecidas cedem perante as causalidades físicas em um mundo onde tudo é concebido segundo o modelo do mecanismo. A perspectiva teológica se apaga. A máquina fornece a fórmula desse novo sistema (LE BRETON, 2011, p. 102). Esse contexto gerou um conjunto de saberes que foram se especializando com o passar do século XVII e se institucionalizando (através da medicina e do Estado) nos séculos subsequentes. De tal modo, as deficiências tenderam a ser geridas como situações a serem curadas e os corpos tornaram-se alvo de reparos. O que deu origem às concepções de modelo

biomédico. Para este modelo, XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 3 a deficiência traz em si uma condição de impossibilidade de desenvolver determinadas habilidades ou capacidades, a impossibilidade de ser eficiente, isto é, de dar conta de um perfil de desempenho esperado e condicionado no contexto social. (OLIVER, 1990, p. 14-15) O foco do modelo biomédico 2 é tornar as pessoas funcionalmente independentes e, preferencialmente produtivas. Em decorrência disso, desenvolveu-se uma indústria em torno da reabilitação e da medicalização como resposta institucional às demandas das pessoas com deficiências das mais diversas naturezas (ALBRECHT, 2002, p. 24-25). Há que se considerar alguns resultados convenientes advindos do modelo biomédico. Até o início do século XX as práticas a que eram submetidas pessoas com deficiência tinham por base o isolamento e encarceramento, via abrigamento ou reclusão domiciliar. A partir da Segunda Guerra Mundial, com o surgimento da ergonomia, com vistas ao aumento da produtividade no trabalho, e também como parte de uma grande gama de ex-combatentes voltando da guerra com deficiências adquiridas em batalhas, a medicina aliou-se à indústria de próteses e órteses e, com isso se aprimorou a reabilitação. Por outro lado, com o Estado de Bem-Estar tornando-se uma realidade em diversos países, a proteção social acabou reforçando a abordagem e o cuidado da deficiência unicamente pelo viés da medicalização do fenômeno. Para a medicina, as incapacidades teriam causa biológica e poderiam ser até entendidas como enfermidades agudas. A causa natural demanda implicações individuais que não impactam a sociedade como um todo (ABBERLEY, 2008, p. 39). Segundo Colin Barnes e Carol Thomas, antes de 1970 o interesse acadêmico pela deficiência era respaldado majoritariamente pelo modelo biomédico. Contudo, a partir dessa década as concepções biomédicas sobre deficiência passaram a se alterar, inspiradas por la agitación política y social de la época, las personas con discapacidad comenzaron a organizarse colectivamente en grupos cada vez mayores para protestar por su encierro en instituciones residenciales y por la pobreza y la discriminación con que debían enfrentarse. (BARNES & THOMAS, 2008, p. 15) Nesse sentido, o ativismo político das pessoas com deficiência e a introdução da temática deficiência nas Ciências Sociais e Humanas passaram a questionar as bases da biomedicina no que tange à deficiência. O modelo biomédico hegemônico passou a ser criticado insistentemente. Podem ser citados como exemplos de novos movimentos sociais daquele contexto: The Disablement Income Group (DIG), em 1966 e o Union of the Physically Impaired Against 2 O modelo biomédico é mais complexo. Indica Mello que Pfeiffer (2002) distingue dez modelos ou paradigmas da deficiência. Um é o modelo do déficit, que tem três variantes, o modelo médico, o modelo da reabilitação e o modelo da educação especial, frente ao qual distingue outros nove. (MELLO, 2010, p. 3)

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 4 Segregation (UPIAS) em 1976, ambos no Reino Unido (SHAKESPEARE, 2006). Na academia emergiram reflexões respaldando as críticas ao modelo em questão. A crítica predominante ao modelo biomédico diz respeito à patologização da deficiência. De forma que, a reabilitação não visava à eliminação das diferenças, pelo contrário, ressaltava ainda mais essa condição. Com base em um padrão de normalidade de corpo, este ficava reduzido a uma série de representações, geralmente negativas, e acabavam por isolar ainda mais o indivíduo, transformando-o em quase humano. De acordo com os críticos do modelo biomédico, assegurar uma capacidade a uma pessoa não é suficiente para gerar condições para a ação. É necessário, também, preparar as condições materiais e institucionais de forma que as pessoas estejam de fato aptas a exercer funcionalidades. (DINIZ et al., 2010, p. 33) A reabilitação, por si só, não resolveria todas as demandas existentes na vida de uma pessoa com deficiência. O processo de reabilitação, pautado por uma lógica assistencialista e caritativa, e que muitas vezes atribuía ao indivíduo uma identidade deteriorada (GOFFMAN, 2004), reduzindo-o a um ser com funções comprometidas, tornava a pessoa com deficiência ser humano diminuído. De tal maneira, a teoria da tragédia pessoal, outro termo utilizado para definir o modelo biomédico, [...] serviu para individualizar os problemas da deficiência e assim deixar intactas as estruturas sociais e econômicas (OLIVER, 2008, p. 31). Dessa feita, os críticos do modelo biomédico foram contundentes a respeito das limitações do mesmo no que tange ao alcance e efetividade da reabilitação, bem como da própria medicalização da deficiência. Surgido no Reino Unido, propagado para os Estados Unidos e, a partir daí para outros países do mundo, o modelo social teoriza sobre a deficiência a partir da Sociologia. Com o passar dos anos, o modelo social ampliou-se com as contribuições do materialismo, do feminismo e do culturalismo (OLIVER, 2008, p. 19). As publicações pioneiras foram de Michael Oliver e Paul Abberley (BARTON, 2008, p. 16), também ativistas de movimentos sociais. Seus textos relacionavam teoria da deficiência, sociedade e ativismo político. Outros nomes importantes no desenvolvimento do modelo social foram Colin Barnes, Paul Hunt e Vic Finkelstein, participantes da UPIAS e adeptos da interpretação materialista da deficiência; e ainda Carol Thomas e Eva Kittay entre outros, numa abordagem feminista e culturalista. Para Oliver a proliferação de diversas construções teóricas da deficiência tem influência do contexto sócio-histórico de seu surgimento e desenvolvimento: crises econômicas, polarização da direita e esquerda quanto ao Estado de Bem-Estar, teoria marxista nas universidades britânicas, desenvolvimento do feminismo, ampliação dos espaços de discussão e novas perspectivas sobre saúde e educação (OLIVER, 2008, p. 19). Contudo, mesmo com

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 5 diversos temas sociais adentrando os espaços acadêmicos, havia ainda uma lacuna sobre a deficiência nas reflexões dos intelectuais e também em matéria de políticas públicas. Para os teóricos do modelo social, a deficiência é tanto uma experiência pessoal comum e um fenômeno global, com difusas implicações econômicas, culturais e políticas para a sociedade como um todo. Pessoas creditadas com impedimentos têm existido desde o começo dos tempos e têm estado presente em todas as sociedades (BARNES et al., 2002, p. 2. Trad. livre) Nesse sentido, a desvantagem é ocasionada por organizações e pessoas que excluem a pessoa com deficiência de qualquer participação social (THOMAS, 2002, p. 39). Ou seja, o modelo social deslocou a causa da deficiência de aspectos individuais e médicos para aspectos estruturais, sociais e, posteriormente culturais. Como bem sintetizou Mercer (2002), focalizava-se, a partir de então, a deficiência longe das maneiras pelas quais as limitações individuais [contribuíam] para a exclusão das pessoas. O que importava, doravante, eram as formas como as barreiras ambientais e culturais efetivamente [impediam] as pessoas com deficiências. (MERCER, 2002, p. 14. Trad. livre) Outra diferença importante a pontuar entre o modelo biomédico e o social é a que trata do protagonismo das pessoas com deficiência em relação às suas próprias demandas. Se para o modelo biomédico os profissionais da saúde decidem muitas coisas para as pessoas com deficiência, para o modelo social elas devem falar por si mesmas, destacando sua autonomia e independência. Anahi G. de Mello relaciona esses dois aspectos: a autonomia (controle sobre o próprio corpo e sobre o ambiente mais próximo) e a independência (faculdade de decidir por si mesma) são os dois lados da mesma moeda (MELLO, 2011, p. 6). Não são as limitações físicas individuais que impedem a participação social plena dos sujeitos com deficiência, mas sim as restrições sociais que a própria sociedade lhes imputa, o que transforma a deficiência em uma forma específica de opressão social (UPIAS, 1976, p. 4 apud OLIVER, 2008, p. 20). A opressão pode ser conceituada como um tipo de situação que coloca o sujeito numa posição inferior de outros sujeitos da sociedade simplesmente por ter deficiências, contudo as desvantagens não são nem naturais e nem inevitáveis (ABBERLEY, 2008, p. 36). Dessa perspectiva, a luta dos movimentos sociais esteve relacionada ao direito de estar no mundo da pessoa com deficiência, ou seja, o direito à presença e à acessibilidade. Segundo Diniz e Barbosa, este direito diz respeito a transitar em espaços sem tornar-se objeto de espetáculo, compaixão ou curiosidade (THOMPSON, 2009). O modelo social permitiu, seja pelo debate acadêmico com a ampliação dos chamados Disability Studies, seja por sua incorporação aos espaços políticos com a crescente visibilidade das demandas de grupos com deficiência, que uma camada considerada até então minoritária passasse

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 6 a ser notável em muitos aspectos sociais, políticos e econômicos. Como bem destacaram Diniz et al., o modelo social não nasce para desqualificar a autoridade médica sobre os impedimentos corporais, mas para denunciar o aspecto opressor da medicalização dos corpos com impedimentos (DINIZ et al., 2010, p. 50). Symone Bonfim (2009) identifica que a deficiência é compreendida a partir de duas dimensões: na primeira, o tratamento do corpo com alguma deficiência enquanto ser desprovido de capacidades e funções, na categoria de quase humano. Pertencem a tal categoria todos aqueles que não se enquadram num modelo de normalidade física imposta por um grupo social. Na segunda, a exclusão de qualquer participação em momentos decisórios na sociedade, desta decorre sempre uma posição marginal (2009, p. 20). A partir dessa dicotomia é que se estabelecem as principais críticas ao modelo social da deficiência. Existem várias vertentes desenvolvidas no interior do referido modelo. Duas delas serão caracterizadas aqui. A primeira, composta pelos pioneiros do modelo social, sociólogos com deficiência no Reino Unido e nos Estados Unidos trilharam a compreensão da deficiência a partir da vertente histórico-materialista. Para estes, a deficiência é um fenômeno estrutural de base social e econômica, no qual a sociedade restringe a participação, a equidade de oportunidades e acessibilidade da pessoa com deficiência. O foco incide sobre questões relativas à inclusão, independência, autonomia e inserção laboral, de forma que a pessoa com deficiência tenha meios para seu próprio provimento. A segunda vertente, com base nos estudos feministas, desenvolvida a partir da década de 1990, aprofunda a compreensão do modelo social com base em alguns aspectos centrais: incorporação da questão do cuidado, a transversalidade da temática deficiência, o destaque dado à subjetividade através da problematização de sua corporalidade. Os adeptos da vertente feminista do modelo social fazem críticas contundentes à biologização do corpo e à patologização da deficiência (características explícitas no modelo biomédico e ausentes de uma discussão mais intensa na vertente materialista do modelo social). O aprofundamento dessa divergência pode ser explicado pela maneira como os teóricos estabeleceram distinções entre a deficiência (social) e os impedimentos (lesões físicas), centrandose no combate às causas e efeitos dos aspectos sociais. Para Abberley, modelo social da deficiência propõe uma separação insustentável - entre corpo e cultura, entre impedimento e deficiência (ABBERLEY, 2008, p. 108. Trad. livre). Com isso, a vertente materialista reduz a importância da experiência corporal da deficiência. Para Colin Barnes, Esta abordagem não nega a significância os impedimentos da vida das pessoas com deficiência, mas concentra-se, em vez disso, nas várias barreiras, econômicas, políticas e sociais, construídas sobre os

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 7 impedimentos. Assim, a "deficiência" não é um produto de falhas individuais, mas é socialmente criada. (BARNES et al., 2002, p. 5. Trad. livre) O impedimento, na percepção dos pensadores mais recentes do modelo social, deve ser considerado parte da experiência individual e da política de deficiência. De acordo com Thomas, o modelo social relega o corpo ao domínio da medicina e o impedimento é naturalizado quando deveria ser pensado como social (THOMAS, 2008, p. 52), sendo considerado predominantemente biológico. Assim, o modelo social empurrou o estudo sobre os impedimentos para as margens dos estudos sobre deficiência, e é apenas recentemente que ele e a sociologia do corpo se combinaram para tentar traçar o caso para uma sociologia da deficiência. (THOMAS, 2002, p. 11) Outra crítica ao modelo social diz respeito à composição dos membros dos primeiros movimentos sociais: formado por homens, brancos, deficiências físicas visíveis, com instrução. Os líderes do movimento de deficiência pregam publicamente a unidade e a inclusão, mas onde estão os pobres, as pessoas de cor, os indivíduos com deficiências não visíveis e os intelectualmente deficientes? (ALBRECHT, 2002, p. 30). Albrecht critica a compreensão de que os Disability Studies compartilham de um discurso comum no qual os líderes representam todas as pessoas com deficiência e que apenas pessoas com deficiência podem efetivamente compreender a deficiência (BARNES et al., 2003, p. 9). Outro aspecto que foi problematizado na vertente materialista do modelo social diz respeito aos sujeitos que convivem mais diretamente com as pessoas com deficiência. A partir da epistemologia feminista critica-se a ausência da valorização do cuidado no modelo social; considera-se que foi esquecida nas abordagens materialistas a interdependência dos diversos sujeitos, com ou sem deficiência, como um valor humano fundamental a ser discutido, e assim, esqueceu-se, por conseguinte, a garantia de cuidado como direito fundamental (MELO & NUERNBERG, 2012). A pessoa que exerce o cuidado, que é na maioria das vezes do sexo feminino, é olvidada tornando-se invisível. As feministas do modelo social trazem à tona o papel do esforço e do zelo do ato de cuidar, destacando sua condição de exploração, ausência de políticas públicas de cuidado e proteção social a quem exerce tal função (MELO & NUERNBERG, 2012, p. 642). As questões levantadas sobre modelo social apontam para outros aspectos ligados à temática deficiência. Na discussão da opressão pelo corpo com deficiência é necessário incluir na análise variáveis como raça, gênero, idade, processo de envelhecimento e sexualidade. O ser humano com deficiência, dessa feita, deve ser entendido de maneira mais global, sem a

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 8 fragmentação da sua experiência de vida; tampouco deve ser abordado apenas a partir da pulverização de conhecimentos resultante da compartimentalização existente nas próprias Ciências Humanas. Modelo Biopsicossocial: alternativa ou complemento? Em resposta à dicotomia desenvolvida no interior tanto do modelo biomédico quanto do modelo social, sugere-se a incorporação, ao debate teórico sobre deficiência, da abordagem biopsicossocial. A autoria do modelo biopsicossocial é atribuída ao psiquiatra George L. Engel, que em 1977 escreveu o artigo The need for a New Medical Model: A Challenge for Biomedicine e, no ano seguinte, The biopsychosocial model and the education of health professional. Nessas obras discorreu sobre a necessidade de humanizar os procedimentos médicos e a ciência clínica referentes ao entendimento da relação saúde-doença, a começar pelo ensino da medicina, nas faculdades e nos hospitais-escola. Ao discorrer sobre o ensino da medicina DE MARCO indica que, em anos mais recentes, a formação em Medicina já tem contemplado o enfoque psicossocial: A integração da dimensão psicossocial ao ensino e às práticas em saúde, visando à construção de um modelo biopsicossocial em contraposição ao modelo biomédico que se cristalizou nos últimos séculos, tem ganhado impulso a partir de contribuições que emergiram de diversas áreas de conhecimento. (DE MARCO, 2006, p. 61) O modelo biopsicossocial, diferentemente do modelo social, traz à tona a importância da reabilitação e da medicalização como elementos importantes que não podem ser desprezados ou negados no entendimento da deficiência. O modelo biopsicossocial desenvolveu a concepção de que a doença não é somente unicausal como visto no modelo biomédico, mas seja vista como um resultado da interação de mecanismos celulares, teciduais, organísmicos, interpessoais e ambientais (Fava & Sonino, 2008) e também da crítica de que a relação saúdedoença é um processo, portanto sem ponto fixo, mas sim um estado. (COSTA, 2013, s/p) De acordo com Thomas, o modelo biopsicossocial é uma tentativa de conciliação dos modelos biomédico (causas e implicações físicas) e social (causas e implicações sociais, políticas, culturais). No que tange à deficiência enquanto alvo de reflexões biopsicossociais, a autora indica que urge a inclusão de reflexões sobre o bem-estar psicológico e emocional da pessoa com deficiência (2008). Nesse sentido, documentos oficiais, como os organizados pela Organização

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 9 Mundial da Saúde (OMS) 3 que orientam as ações em saúde, relacionadas à deficiência, incorporam o modelo biopsicossocial, como o CIDID-2, considerado uma síntese das abordagens médicas e sociais da incapacidade. Cada dimensão da incapacidade é conceituada como uma interação entre características intrínsecas do indivíduo e do ambiente físico e social dessa pessoa. (BICKENBACH et al., 1999, p. 1183, apud THOMAS, 2002, p. 42) Em 2002, a OMS, oficializou a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). Conforme explicam Farias e Buchalla, quanto à concepção biopsicossocial, que está incorporada neste documento: [...] esse modelo destaca-se do biomédico, baseado no diagnóstico etiológico da disfunção, evoluindo para um modelo que incorpora as três dimensões: a biomédica, a psicológica (dimensão individual) e a social. Nesse modelo cada nível age sobre e sofre a ação dos demais, sendo todos influenciados pelos fatores ambientais. A OMS pretende incorporar também, no futuro, os fatores pessoais, importantes na forma de lidar com as condições limitantes. (FARIAS & BUCHALLA, 2005, p. 189) Segundo as autoras, estabelece-se um novo paradigma para se pensar as deficiências. A diferença crucial é que a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), de 2001, considera a deficiência a partir dos aspectos sociais, ambientais, econômicos, além dos individuais e físicos. Todos esses aspectos relacionados à experiência da deficiência são considerados igualmente relevantes. Pensada assim, a classificação não constitui apenas um instrumento para medir o estado funcional dos indivíduos. Além disso, ela permite avaliar as condições de vida e fornecer subsídios para políticas de inclusão social. (FARIAS & BUCHALLA, 2005, p. 189) Oliver defende que a teoria social da deficiência é um pré-requisito para qualquer tentativa de elaboração de política social e que a opressão sobre as pessoas com deficiência deve ser definitivamente combatida (OLIVER, 2008, p. 31). Abberley, por seu turno, indica a necessidade de se [...] aplicar utilmente o conceito de opressão ao complexo formado por deficiência, incapacidade e impedimento... [Este envolveria] o desenvolvimento de uma teoria que interliga as características comuns das desvantagens econômicas, sociais e psicológicas, com uma 3 Segundo Farias e Buchalla, o modelo da CIDID descreve, como uma sequência linear, as condições decorrentes da doença: Doença Deficiência Incapacidade Desvantagem. O processo de revisão da ICIDH apontou suas principais fragilidades, como a falta de relação entre as dimensões que a compõe, a não abordagem de aspectos sociais e ambientais, entre outras. (FARIAS & BUCHALLA, 2005, p. 189)

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 10 compreensão da base material destas desvantagens e ideologias que se difundem e se reproduzem. (ABBERLEY, 2008, p. 47. Trad. livre) Já a proposta de Thomas é transcender o dualismo individual/coletivo, no qual o corpo é entendido enquanto impedimento e a deficiência enquanto opressão social (THOMAS, 2008, p. 49), a fim de compreender ambas as dimensões (cultural e biológica) como características de um único sujeito. Na crítica referente ao modelo social, ressalta-se o aspecto unilateral deste, já que confina aspectos físicos a um espaço discursivo reacionário e opressivo (HUGHES; PATERSON, 2008, p. 110). Para além da discussão que envolve a dicotomia entre modelo social e biomédico da deficiência, pensa-se que a elaboração de um novo paradigma que contemple as premissas dos dois modelos é urgente. Como bem aponta Bonfim, a reabilitação é indispensável, contudo, não é suficiente ao restringir-se apenas ao fornecimento de uma órtese ou prótese e mesmo intervenção medicamentosa. Pela análise das obras e autores elencados neste texto é imperativo elementos que eliminem as desvantagens atribuídas às práticas cotidianas da pessoa com deficiência como ampliação de possibilidades para educação formal inclusiva e de qualidade, ingresso no mercado de trabalho, apropriação e uso de diversos espaços. Em muitos aspectos, porém, pode-se dizer que na esfera pública o modelo biomédico tradicional ainda não foi superado. Todavia, a luta dos movimentos das pessoas com deficiência segue constante pelo reconhecimento de outras visões atribuídas à deficiência que não apenas mediadas pela medicalização e pela hegemonia da ciência médica. Considerações Finais Após todos os apontamentos realizados aqui, características e questionamentos levantados por teóricos a respeito dos modelos biomédico e social para o entendimento da questão da deficiência, destaca-se, primeiramente, que nenhum é substituto do outro. Entende-se que não há um único modelo de deficiência em vigência, embora, alguns dos atributos da biomedicina ainda prevaleçam mais fortemente. O que há em comum entre os três, sobretudo ao se considerar os dois primeiros, é a dicotomia entre natureza e sociedade, o que implica, muitas vezes, numa contraposição entre aspectos biológicos e aspectos socioculturais relacionados à deficiência. A deficiência ganhou novos contornos teóricos no meio acadêmico, não mais aqueles exclusivos das ciências médicas, que percebiam deficiência pela reabilitação física. A criação de novo modelo explicativo, o chamado modelo social, para o qual as desvantagens atribuídas à

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 11 deficiência tinham origem social e política, é combatente da percepção da deficiência como desvantagem biológica e tragédia pessoal. Contudo, vale lembrar que o modelo social também foi alvo de críticas ao prescindir da corporeidade da deficiência, de forma a estabelecer um dualismo que consignou o impedimento à explicação biológica e à deficiência à explicação sociológica. Acredita-se que a negação do impedimento e a atribuição da deficiência como exclusivamente social resultam na recusa da deficiência como tema multifacetado. Não se esquiva aqui da existência da opressão relacionada à pessoa com deficiência e que esta exerce limitações na vida dos sujeitos. Todavia, ressalta-se, como bem lembra Mello que mesmo diante dessa tensão entre natureza e cultura, o modelo social da deficiência promoveu a primeira guinada ao elevar as pessoas com deficiência ao status de sujeitos de direitos humanos (MELLO, 2010, p. 3). As deficiências são e devem ser consideradas resultado de fatores sociais e políticos, mas também físicos e individuais. Contudo, em hipótese alguma podem ser considerados apenas efeitos naturais inevitáveis. Para esse novo entendimento, a deficiência envolve questões políticas e sociais, e deixa de ser considerada experiência exclusivamente pessoal e familiar. Na atualidade, carece-se ainda um diálogo mais profundo entre diversas áreas do conhecimento sobre as deficiências, de modo a discutir, construir e efetivar as contribuições provenientes do modelo biopsicossocial. Referências BARNES, C.; OLIVER, M.; BARTON, L. Disability Studies Today. Cambridge: Polity Press, 2002. BARTON, L. (org.) Superar las barreras de la discapacidad. Madrid: Ediciones Morata, S. L., 2008. BONFIM, S. M. M. A luta por reconhecimento das pessoas com deficiência: Aspectos teóricos, históricos e legislativos. Dissertação de mestrado, Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 2009. COSTA, R. V. da. Atenção à Saúde: Discussão sobre os modelos biomédico e biopsicossocial. 2013. Disponível em: https://psicologado.com/atuacao/psicologia-da-saude/atencao-a-saudediscussao-sobre-os-modelos-biomedico-e-biopsicossocial Acesso: 08 abr. 2017. DE MARCO, M. A. Do modelo biomédico ao modelo biopsicossocial: um projeto de educação permanente. Revista Brasileira de Educação Médica. Rio de Janeiro, v. 30, n. 1, jan./abr. 2006. p. 60-72. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbem/v30n1 /v30n1a10.pdf Acesso em 01 mar. 2017. DINIZ, D. O que é deficiência. São Paulo: Editora Brasiliense; 2007.

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