O DIÁLOGO JUDAICO-CRISTÃO NO MOMENTO ATUAL Rabino Alexandre Leone Faz alguns dias, no domingo, dia 17 de janeiro passado o papa Bento XVI visitou a Grande Sinagoga de Roma repetindo o gesto feito 24 anos atrás por seu antecessor o papa João Paulo II. Naquela ocasião, em 1986, era a primeira vez que um papa visitava oficialmente uma sinagoga, marcando assim um passo a mais na direção do dialogo fraternal entre cristãos e judeus. O gesto de João Paulo foi, em muitos aspectos, a apoteose deste dialogo travado principalmente desde a segunda metade do século XX. Vale a pena lembrar que judeus e cristãos nem sempre travaram um dialogo fraterno entre si. Na Idade Média, em geral, o diálogo se dava de modo bem diferente, na forma da disputatio, isto é da disputa teológica, como aquela ocorrida em Barcelona no século XIII entre Nahmanides, o principal rabino da cidade, e vários teólogos cristãos. Discutia-se também em tribunais inquisitoriais e de libelo de sangue. Discutia-se, mas não se conversava. É verdade que um outro tipo de dialogo, mais construtivo, também ocorreu como, por exemplo, a menção feita por Tomás de Aquino em sua obra a rabi Moisés (Maimônides) e no século XV os contatos entre os filósofos Eliah Delmedigo e Picco Della Mirandolla. Mas essas eram exceções à desconfiança que reinava em ambos os lados.
O ponto de mutação desta situação está ligado à Shoá (em hebraico genocídio) perpetrado contra judeus, ciganos e outros grupos pelos nazistas e seus colaboradores na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial e que é eufemisticamente chamado de Holocausto. Como escreveu Emmanuel Lévinas, em um fabuloso ensaio chamado Une Religion d Adultes, os judeus conheceram na própria carne durante aqueles dias a experiência da paixão, conforme narrada no capítulo 53 de Isaias e pintada de modo expressivo por Chagal. Naquela época que se vivia esta experiência, cuja amplitude religiosa marcou para sempre o mundo, protestantes e católicos laicos, padres e monges salvavam crianças e adultos judeus por toda a Europa, acolhendo-os e estendendo-lhes as mãos, mesmo ao custo de suas próprias vidas. É interessante que o dialogo tenha sido travado entre pessoas antes que pelas instituições. Nos anos cinqüenta e sessenta o dialogo judaico-cristão começou então a se desenvolver aprofundar. Do lado que cá do Atlântico, nos Estados Unidos, destacaram-se como exemplo de diálogo humanista, religioso e prático as figuras de Abraham Joshua Heschel e Martin Luther King que lado a lado, rabino e pastor, prestaram-se ao papel de liderança simbólica e ombusman ético em movimentos de renovação e crítica à desumanização e a eclipse da razão de nossos tempos. O diálogo prático dos dois chegou ao zênite nos movimentos dos Civil Rights, em prol do direito dos afro-americanos de votar, e do movimento contra a barbárie que era Guerra do Vietnam.
Do lado de lá do Atlântico, um grande passo para o aprofundamento do diálogo está ligado ao Concílio Vaticano II, que procurou renovar espiritualmente a Igreja Católica preparando-a para novos tempos. Um dos vários documentos associados àquele momento foi a declaração Nostra Aetate sobre as relações da Igreja Católica com as religiões não-cristãs, onde um destaque especial é dado às relações com o povo judeu. Na busca do diálogo, a Igreja renunciava na prática missão de converter os judeus, possibilitando assim que se criassem condições para surgirem em muitos países comissões de diálogo católico-judaico. O povo judeu não é uma igreja e não há um corpo de rabinos que tenham autoridade reconhecida sobre todos. Desse modo, a resposta judaica à Nostra Aetate apareceu na forma de documentos assinados por muitos rabinos e estudiosos. Uma primeira tentativa ainda tímida, já nos anos sessenta foi feita por iniciativa dos rabinos membros do consistório francês de tendência ortodoxa moderada. No entanto, um documento de maior peso só foi elaborado e costurado no ano 2000, a declaração chamada Dabru Emet (Dizei a Verdade) assinada por mais de uma centena de rabinos e eruditos de várias correntes judaicas, desde a ortodoxia moderado, passando pelos massortim (conservativos) até os liberais. Só ficaram de fora os setores mais fundamentalistas, que não reconhecem nenhuma forma de diálogo interno ou externo. O Dabru Emet é uma composição de várias teses que em resumo reconhecem o diálogo fraterno com o mundo cristão.
Recentemente, porém, algumas situações contribuíam para dificultar um pouco o diálogo, situações que fizeram com que muitos nos meios judaicos ficassem desconfortáveis. Alguns exemplos são: a revogação da excomunhão por parte do papa Bento XVI de um bispo que negava publicamente o genocídio nazista, a introdução na liturgia da missa da Páscoa de um trecho que fala da conversão dos judeus e, finalmente, os recentes passos que estão sendo dados para a beatificação e futura canonização do papa Pio XII, que durante a Segunda Guerra Mundial, não condenou publicamente o genocídio nazista. Como declarou Riccardo Pacifici, presidente da Comunidade Judaica de Roma, durante a visita do papa à sinagoga, se tal condenação tivesse sido realizada poderia ter o efeito de salvar vidas e que ficará como algo lacunoso em sua memória. Estas situações quase paralisaram os esforços de todos aqueles que, dos dois lados, trabalham pelo aprofundamento do diálogo, cujo símbolo foi a visita feita pelo papa bento XVI à Grande Sinagoga de Roma no último dia 17 de janeiro. O presidente da Assembléia Rabínica Italiana, o rabino Giuseppe Laras, recusou-se a participar, mas ele ficou sozinho em sua recusa. Quando o papa entrou na sinagoga, rabinos de todo o mundo e lideranças laicas de todo o mundo judaico, com exceção dos setores mais fundamentalistas, estavam lá para dar boas vindas ao papa. Também desta vez estavam presentes lideres muçulmanos moderados europeus, dando uma dimensão mais profunda àquele momento. No final venceu o diálogo.
Precisamos de um diálogo inter-religioso ativo que não busca resolver questões teológicas das diferenças de crenças, mas deve partir de pontos comuns para estabelecer esse dialogo. Em que base nós pessoas de diferentes compromissos religiosos nos encontramos? A essa pergunta Heschel respondeu: Em primeiro lugar nós nos encontramos como seres humanos que têm muito em comum: uma face, uma voz, a presença de uma alma, medos, esperanças, a habilidade de confiar, uma capacidade e sentir compaixão e entendimento, a qualidade de sermos humanos. A consciência da humanidade em comum, portanto, é a base do dialogo inter-religioso. Judeus, cristãos e membros de outras comunidades religiosas compartilham essa tarefa. Nosso diálogo inter-religioso deveria não apenas afirmar o humano, mas também buscar superar o niilismo moderno. O propósito da comunicação religiosa entre seres humanos de diferentes compromissos é o enriquecimento mútuo e o aumento do respeito e apreciação, ao invés da desqualificação do outro no que diz respeito às suas convicções com relação ao sagrado. A luta contra a desumanização é a base comum para um movimento de diálogo e de reconhecimento mútuo, uma vez que no caldeirão da sociedade moderna, como escreveu Heschel, nenhuma religião é uma ilha. A era das comunidades isoladas já passou e, se bem que cada tradição deve manter sua
identidade, a possibilidade do diálogo profundo e da troca de experiências deve ser tentada. Disso depende nosso futuro no século XXI.